Estão feitas as apresentações
Pena que o fim de semana desportivo se tenha finado com 90 minutos de purgatório futebolístico. Quase sem um pingo de poesia, se exceptuarmos alguma prestidigitação miccoliana.
Dito assim, parece uma puerilidade. A banda desenhada não são os comic strips, as tiras do jornal, as histórias em quadradinhos dos super-heróis da Marvel, do Tio Patinhas e do Zé Carioca, do Super-Homem, Homem-Aranha, Batman e outras patetices? Não estou a ter apenas uma regressão infantilóide?
Quem acha isto não é só da Geração de 60: cristalizou nos anos 60. Ter uma opinião destas é o equivalente a achar que o rock moderno são os Beatles ou o cinema moderno é Bergman (para dar um exemplo sueco, embora não mudo!).
Nas últimas duas décadas, a BD (à falta de melhor termo) evoluiu profundamente. Longe vão os tempos dos patéticos heróis com super-poderes. Nos anos 80 as histórias evoluiram e começaram a ser conhecidas por graphic novels. Hoje, não é exagero classificar as melhores como arte gráfica. Vou dar os meus cinco exemplos favoritos. Mas asseguro que poderia dar outros tantos.
Art Spiegelman. O seu Maus, em dois volumes, é a narrativa mais arrepiante de Auschwitz que alguma vez li (e já li muitas, de This way for the gas, ladies and gentlemen, de Tadeusz Bororowski, a Auschwitz: a doctor’s eyewitness account, de Miklos Nyiszly (que funcionou como assessor de Mengele), a Death Dealer, autobiografia de Rudolf Höss (o kapo de Auschwitz), a várias obras de Primo Levi. Ao seu lado a Lista de Schindler é quase um documentário do Canal História. A quem não acredita, recomendo que se retire um dia, isolado, com os dois volumes, sem interagir com nenhuma alma humana. Eu fi-lo, e chorei como nunca na vida. O In the shadow of two towers, relato gráfico da psicose que o 11 de Setembro lhe provocou, é também impressionante (embora noutro sentido).
Frank Miller. Provavelmente o meu artista gráfico preferido. O seu Sin City, em 7 volumes, e o 300, sobre a batalha das Termópilas, tiveram um efeito único na História da Arte. Foram realizados filmes (o 300 actualmente em exibição) que não são meramente baseados nos livros: o seu objectivo é imitar os livros de Banda Desenhada. As cenas filmadas pretendem, não necessariamente ser realistas, mas reproduzir os quadros da banda desenhada. E são muito mais interessantes assim. É todo um novo paradigma de Arte. O cinema tenta reproduzir, e não meramente basear-se, na literatura gráfica. Já agora: Frank Miller também recriou Batman - mas um Batman humano, velho e que se tentea reinventar depois da Geração de 60.
Neil Gaiman. Gaiman é o protótipo do artista muiltifacetado. Inglês, escritor de ficção, poemas, contos e romances como American Gods ou Anansi’s Boys (com um bizarro e mágico sentido das coisas), argumentista de filmes como Mirrormask, a obra da sua vida é sem dívida a criação do mundo onírico e mágico de Sandman, uma banda desenhada que cria um universo mítico que se entrelaça com o mundo real com uma complexidade que considero apenas comparável ao de Tolkien e que conquistou diversos prémios literários. Note-se: prémios literários. Neil Gaiman é o argumentista, não o desenhador. A sua obra é fantástica: prolonga-se por mais de 2000 páginas e 10 anos. Começa a ser disponibilizada em Portugal pela Devir.
Fables. Um produto colectivo (Willingham, Medina, Leihaloha, Hamilton) que é o herdeiro, no século XXI, do Sandman de Neil Gaiman. É impossível descrever em poucas palavras uma ficção deste género. Mais uma vez, a sua complexidade narrativa e psicológica é tal que já vai no 8º volume, e continua. Também a Devir nos começa a trazer esta obra de arte.
100 Buletts, de Brian Azzarello e Eduardo Risso. Eu adoro o noir. Li todo o Philip Marlowe do Raymond Chandler (várias vezes), e vi os filmes com o Humphrey Bogart a fazer de Marlowe. É a única coisa que acho comparável a 100 Bullets, que tem personagens igualmente gráficas e um enredo muito mais denso.
BD, uma coisa infantil? Think again. É como achar que a música pop é o iéié dos anos 60. Como dizia há alguns anos uma astróloga da nossa praça, “Não julgue à partida uma Ciência que desconhece”. Neste caso, não julgue à partida uma Arte que desconhece. Tudo isto é um novo meio, é literatura, é arte. A 8ª Arte.
Let the Crescent in
A questão da adesão da Turquia à comunidade Europeia é para mim um assunto que desperta razões e emoções nem sempre alinhadas.
Começo por afirmar que a minha posição inicial sobre o tema e que ainda não reformulei é a de concordância em relação à dita adesão.
De facto parece-me importante nos dias de hoje ter a possibilidade de fazer ingressar no nosso espaço europeu um país como a Turquia que se tem batido denodadamente por preservar a separação do poder laico em relação ao poder da religião sobre o estado. Dir-me-ão que a maioria da população turca tem uma matriz social e religiosa bastante distinta da que prevalece nos países europeus e que a sua inclusão no nosso seio acarretará uma desvirtuação dos valores que nos têm caracterizado. Pois não necessáriamente, se tal evolução se der no sentido da inclusão desses 70 milhões de pessoas, permitindo-lhes um acesso mais democrático à livre circulação e debate de ideias, o que em minha opinião é a melhor forma de combater o isolacionismo e ultramontismo que caracterizam qualquer forma de fundamentalismo religioso ou outro.
Do ponto de vista económico, e na perspectiva de um completo leigo, parece-me fazer sentido nos dias que correm de inapelável e diria mesmo saudável globalização juntar esta massa crítica e esta enorma fatia de mercado á nossa existente união. Do pouco que me é dado conhecer da realidade da Turquia parece-me existir uma fatia pequena mas poderosa da população, mais afluente e influente, que se rege por padrões tão ocidentais quanto os nossos, dinâmica e empreendedora tanto cultural como económicamente e que poderá garantir o sucesso de semelhante operação se devidamente apoiada.
Votar ao ostracismo um país que, ainda que de forma inconstante ou não homogénea, demonstra estes desígnios parece-me no mínimo pouco prudente ou mesmo uma perigosa falta de visão ou ousadia políticas.
Quanto à matriz cristã fundadora dos príncipios, valores e da realidade europeia tal como a conhecemos ainda hoje, também aí o argumento contra me parece limitado. Mesmo a nível supranacional a separação entre o estado laico e o religioso deve prevalecer sem que com isso nos ‘canibalizemos’ e sejamos levados a aderir a valores ou condutas que consideramos menos próprias de sociedades ditas evoluídas. Aqui sim, a franca e afirmada supremacia dos nossos valores quando exercidos de forma cordata e sedutora prevalecerá como acontece nas relações com outros países fora do eixo Europa/América, como é o caso da China, Índia e outros quejandos.
É verdade porém que esta posição enferma de várias fragilidades assentes em outras tantas interrogações.
Ao elaborar este meu raciocínio confio e presumo que este será o curso esperado e que o preço que teremos que pagar não venha a ser demasiado elevado. Refiro-me não tanto aos argumentos económicos de um pequeno país como o nosso infelizmente ainda tão dependente da ajuda externa da comunidade (muito por culpa nossa que temos vindo a desbaratar e a absorver mais por interesses particulares, mesquinhos e tantas vezes venais os dinheiros comunitários) mas mais aos argumentos securitários que apregoam a grande fragilidade a que estaremos sujeitos dando assim o flanco ao temível fundamentalismo islâmico.
Também aqui não possuo uma resposta cabal que me deixe totalmente confortável. O meu ‘gut-feeling’ é no entanto que este mesmo argumento poderá constituir exactamente a melhor arma para os trogloditas que despudoradamente se têm apoderado do destino dos milhões de almas que vivem sob o seu jugo, fundamentalmente por poderem garantir um continuado estado de obscurantismo e consequente ausência de informação e esperança a essas populações.
Um factor final que me parece de importãncia primordial: Esta adesão, claramente defendida pelos EUA por razões estratégicas que se me afiguram fáceis de entender, poderá ela mesmo vir a ser grandemente torpedeada pela obstinada política de confrontação que os mesmos EUA têm vindo a desenvolver na era Bush. De facto a détente na região do Médio Oriente para a qual os mesmos EUA tanto poderão contribuir será, a meu ver, uma pedra de toque para garantir o sucesso ou insucesso desta evolução.
Olhando com atenção para o actual governo, não se descortinam facilmente ministros que mostrem preocupação genuína com as coisas europeias (talvez com a excepção do da Agricultura). Trata-se de um governo com uma agenda essencialmente nacional, demasiadamente satisfeito com as conquistas na política caseira e com pouca ambição de dar cartas em Bruxelas. Essa falha não tem sido muito notada na imprensa, o que significa provavelmente que a maior parte de nós pensa que a politica europeia não tem importância.
Ora isso é um erro. É um erro compreensível neste pequeno e periférico país, mas é um erro sério. Nas vésperas de Portugal assumir a presidência do Conselho Europeu, será talvez conveniente recordar a importância da política europeia para a política nacional. A maior atenção que se dê a essa questão não traz benefícios imediatos, pois a conjuntura não é favorável. Mas será porventura conveniente pensar que essa pode ser uma das vias da retoma económica do País.
A história da integração europeia tem um traço genético muito importante, que é o de que as fases de maior abertura dos mercados são geralmente acompanhadas por políticas de compensação dos efeitos negativos dessa abertura nas economias menos desenvolvidas. A abertura dos mercados tem de ser um objectivo último de qualquer governo, uma vez que traz sempre beneficio para a soma das partes. Todavia, existem algumas limitações na capacidade das economias mais atrasadas em se adaptarem a mercados mais concorrenciais. Isso decorre de algo fácil de entender: a adaptação requer investimentos e conhecimentos, factores relativamente escassos nos países mais atrasados.
O principio das politicas públicas de compensação à abertura esteve na génese da integração europeia. A CECA, de 1951, serviu à reconstituição dos mercados de carvão e de aço dos seis países fundadores, o que implicou o fecho de fábricas na Bélgica para permitir à Alemanha, mais eficiente, o aumento da produção e da exportação. Ora esse passo foi seguido de um outro: o de compensações financeiras, sobretudo de origem alemã, que ajudaram à criação de novas ocupações para os operários belgas dispensados das fábricas encerradas. A CEE, cujo tratado fundador de Roma agora se celebra, seguiu o mesmo caminho que desde logo se manifestou na PAC e nas ajudas financeiras à Itália meridional, medidas hoje mal vistas mas muito úteis à época. Saltando uns anos, encontra-se o mesmo tipo de politicas de compensação aquando da adesão da Irlanda e do Reino Unido, em 1973. Pouco depois, foi criada a política regional das Comunidades que visava, precisamente, ajudar à conversão das economias desfavorecidas, da Irlanda e de algumas regiões britânicas. A lista de exemplos não acaba aqui. Em 1979, a Irlanda aderiu ao Mecanismo das Taxas de Câmbio (percursor da moeda única) depois de ver assegurado o reforço das ajudas financeiras. A adesão da Grécia à CEE, em 1981, também foi seguida de transferências financeiras. E, claro, o exemplo mais conhecido, da adesão de Portugal e Espanha, em 1986, e dos chamados pacotes Delors de ajudas financeiras que se lhes seguiu.
Esta vaga de politicas europeias de cariz social-democrata de ajuda aos mais pobres foi de certo modo passada para segundo plano por causa da preocupação com a estabilidade cambial e monetária que levou, a partir do inicio da década de 1990, à criação da União Económica e Monetária. A criação da UEM e do Euro tornou-se premente a partir do momento em que a crescente liberalização dos mercados pôs em risco o equilíbrio das balanças de pagamentos nacionais. O Euro também foi uma medida que trouxe maior controle dos Estados sobre o mercado e por isso também está no código genético da UE (os verdadeiros monetaristas preferem várias moedas em concorrência) e era uma medida urgente. Mas implicou o aumento da concorrência entre os Estados membros e a redução da capacidade de intervenção dos governos nas economias nacionais.
Ora, desta vez, o aumento da concorrência não foi acompanhado por medidas adicionais de apoio às economias mais fracas. As politicas de coesão, como também são conhecidas, continuaram. Mas o importante notar é que não foram reforçadas, ao contrário do que aconteceu em ocasiões anteriores de aumento da concorrência.
As condições actuais para se pedir o reforço das politicas de coesão não são porventura as melhores, uma vez que há mais países a precisar de ajuda e uma vez que a economia europeia está a crescer devagar. Todavia, se as opiniões públicas nacionais são um elemento crucial do desenho das politicas europeias, é tempo de o governo português, porventura em diálogo com outros governos interessados, chamar atenção para a necessidade de se dar maior atenção à politica europeia de ajuda aos países mais necessitados. Agora não é cedo para se começar a preparar a mudança necessária e talvez a melhor forma de o fazer é falar dela. Em suma, a “estratégia de Lisboa” devia ser outra.
Nada como uma noite eleitoral. Desta, e para já, seis notas soltas.
Em primeiro lugar, o impressionante nível de afluência às urnas. Numa Europa descrente e distante da participação política, 85% é algo verdadeiramente marcante (para alguns comentadores, reconciliação tributária do recente aprofundamento da experiência referendária).
Em segundo lugar, a emergência de uma nova geração. De protagonistas (o esforço dos que não eram novos foi parecê-lo 'a outrance'), mas também de discursos (com novos temas, novos enfoques, novos estilos) e de métodos (neste aspecto, o papel da internet nas campanhas de Sarcozy e de Ségolène foi eloquente).
Em terceiro lugar, a centralidade do tema da mudança. De maneiras diferentes, os três candidatos mais votados apostaram na urgência de mudar a política e de refundar a República.
Em quarto lugar, a expansão do arco democrático à custa do esvaziamento de propostas não sistémicas (exemplo paroxístico, o resultado de Sarcozy em prejuízo de Le Pen).
Em quinto lugar, a substancialização do discurso em torno de valores e de projectos de sociedade. Sarcozy e Bayrou foram, neste aspecto, as grandes referências. Ségolène, coitada, foi apenas o que podia ser: uma encenação, frouxa e vazia como todas as encenações que não são mais do que isso (Montebourg, há que reconhecer, merecia ter dado a cara por alguém mais consistente).
Em sexto lugar, a tónica de uma ideia sobre França e o apelo ao envolvimento directo dos Franceses na construção do futuro (na sua intervenção, em cima dos primeiros resultados, Sarcozy falava em sonho…). Depois de décadas de perda económica, social e cultural, a França ameaça poder vencer uma enquistada crise de confiança. Há um voluntarismo patriótico no ar e, com ele, uma mobilização que espreita. Mas agora longe da vulgata nacionalista dos radicais: é outra coisa, inclusiva, focada numa ideia de projecto, enquadrada pela integração europeia… É algo novo e a que importa estar atento, porque é bem capaz de vir a dar frutos.
Mas, para já, vamos ver o que dá o piscar de olhos de Sarcozy ao centro e ao centro-esquerda. Muito mais decisivo, certamente, do que as meras contas que possa fazer com Bayrou…
De manhã, ao acordar, há um momento de verdade que nos faz o dia. É então que emergem a alegria ou a mágoa, o entusiasmo ou o quebranto, a felicidade ou a decepção. Queiramos ou não, gostemos ou não, de manhã a vida é o que é, sem disfarces nem contemplações.
Ora, confesso-vos que tenho acordado muito pouco exuberante. Não gosto do que vejo e oiço, não gosto do estado a que chegou a coisa pública, não gosto da lucidez com que percebo a medida em que há muito se anunciou a inevitabilidade de tudo.
Em Portugal, não é o pequeno que incomoda. Mas o pouco. A avassaladora falta de nível da nossa agenda colectiva. A mediocridade dos protagonismos. A irrelevância das discussões. E, claro, a absoluta ausência de projecto.
Portugal mergulhou num ciclo de perda consistente, que não consegue romper. Investe em propagandas fátuas, proclama voluntarismos bacocos, mas não arranca, não empreende, não desenvolve.
Num país de matriz autoritária, as elites nunca tiveram um papel politicamente relevante fora do jogo formal do poder, no Estado e nos partidos. Aliás, os actores institucionais sempre preferiram uma sociedade civil incipiente e fragmentada, incapaz de criar dinâmicas susceptíveis de funcionar de fora para dentro do sistema.
Portanto, a nossa noção de elite política reduziu-se à sua expressão mais estrita. Infelizmente, em tudo coincidindo com a mais pobre e a mais triste. A elite política confunde-se com aqueles que, em cada momento, são os actores da política formal. Pior, esgota-se neles.
Mas, lamentavelmente, a mais evidente implicação de tal estatuto parece escapar aos espíritos destes privilegiados. A responsabilidade – a sua responsabilidade específica – é um conceito etéreo, porventura lido em algum livro (ou recensão, que o ar do tempo vai mais para aí…), mas totalmente insusceptível de densificação prática. Nem um vislumbre de preocupação com a referência que deveriam ser, com o exemplo que teriam de consubstanciar.
Daí que se permitam tudo. Daí que tudo se vá tolerando. Episódios impensáveis há vinte anos são matéria de degustação quotidiana no nosso actual espaço público. Políticos, comunicação social e eleitores anónimos encontram-se neste fórum da modernidade, em que o calor da discussão se inflama em proporção directa com o esquecimento do país.
Infelizmente, poucos se deterão na circunstância de nada disto acontecer por acaso ou de repente. São muitos anos de demissão e de consentimento, num processo paulatino que não pode deixar sossegada a consciência de nenhum de nós.
E, quando digo nós, quero dizer isso mesmo. Nós que, de fora, nos insurgimos, mas não fazemos da nossa indignação um princípio de acção. Nós que não assumimos a responsabilidade de fundar a esperança numa diferença que urge.
Manhã após manhã, nessa incontornável hora de verdade, vou-me perguntando: será que ninguém sente o imperativo de permitir mais e melhor aos milhares de portugueses normais, que trabalham e pagam impostos, que gostam do seu país e que, por isso, querem e precisam de acreditar no futuro?
Que alegria, ver alguém escrever sobre Matemática! Obrigado, Alexandre. Ficaria moralmente em dívida se não atropelasse os meus timings e deixasse de escrever HOJE, dia em que se completam três séculos sobre o nascimento do maior matemático de todos os tempos.
Leonhard Euler (1707-1783) foi muito provavelmente o maior génio matemático de todos os tempos. Foi indiscutivelmente o matemático mais produtivo de sempre, em quantidade e qualidade. Publicou mais de 850 artigos científicos, bem como muitas dezenas de livros, nas grandes Academias de Ciências da época, em todos os ramos da Física e da Matemática do seu tempo. Na verdade, há ramos inteiros da Física e da Matemática (no século XVIII a distinção entre estas ciências é difícil; a Matemática é criada à medida dos problemas físicos tratados) fundados por Euler, da Teoria Analítica de Números à Dinâmica de Fluidos, e ainda hoje ensinados nas Universidades de todo o mundo como ele os abordou.
Não existe nada na história da Ciência que se assemelhe remotamente à inacreditável produtividade de Euler. Uma boa medida desta produtividade é a seguinte: aquando do segundo centenário do seu nascimento, em 1907, foi constituída na Suíça a Comissão Euler, encarregada de organizar a publicação das obras completas de Euler, a chamada Opera Omnia. Tarefa titânica: cem anos, 76 volumes e 30.000 páginas depois (cada volume tem entre 300 e 600 páginas), a publicação das obras completas de Euler ainda não está concluída!
A vida científica de Euler foi um permanente dilúvio matemático. Durante as seis décadas da sua vida adulta, mesmo em circunstâncias muito difíceis, Euler concebeu, descobriu e escreveu Matemática a um ritmo muito superior àquele que pode ser sequer lido por um ser humano. Só se pode contemplar uma obra de tal forma esmagadora com um grande sentimento de humildade e quase incredulidade.
Euler viveu aqui.
Em termos de qualidade científica, Euler foi por um lado um cientista universal – trabalhou em todos os grandes problemas da Física e Matemática da sua era – e, por outro lado, tudo aquilo que produziu revela uma capacidade de penetração para além de qualquer ser humano antes ou depois dele.
Euler fez um oceano de contribuições fundacionais para o Cálculo diferencial e integral, equações diferenciais ordinárias e parciais, Teoria de Números, Geometria, Álgebra, Mecânica de partículas, Hidrodinâmica, Astronomia, Topologia e Teoria de grafos.
O espírito genial de Euler transformava pedras em ouro matemático. Por exemplo, a Teoria de grafos nasce, nas mãos de Euler, de um problema de salão que lhe foi colocado em S. Petersburgo e de que provavelmente o leitor já ouviu falar – as pontes de Königsberg. E o Sudoku que jogamos hoje é um pequeno exemplo de construção de objectos cuja teoria Euler fundou em 1782, os quadrados latinos, a propósito do problema dos 36 oficiais (que se diz ter-lhe sido proposto por Catarina, a Grande, czarina da Rússia).
Geralmente um grande cientista fica imortalizado por uma contribuição central na sua carreira: a Gravitação de Newton, a Lei de Gauss, a Hipótese de Riemann, a Relatividade de Einstein. Mas, se um matemático referir no abstracto o “Teorema de Euler”, ninguém poderá sequer saber de que ramo da Matemática está ele a falar, tal a abrangência do seu legado científico.
Observe-se a quantidade de descobertas científicas com o seu nome que ainda hoje se ensinam nas Universidades de todo o Mundo. Os ângulos de Euler na dinâmica do corpo rígido. As equações de Euler-Lagrange no Cálculo de Variações. Os integrais de Euler. A característica de Euler. A função de Euler φ(n). A constante de Euler. As equações de Euler da Mecânica dos Fluidos. A linha de Euler de um triângulo. Os produtos de Euler (mais famoso dos quais o da função ζ, mais tarde chamada “de Riemann”, mas que deveria ter também o nome de Euler). A fórmula da soma de Euler-Maclaurin. A fórmula de Euler para os números complexos. E assim por diante... esmagador.
“O” Teorema de Euler não existe. Euler foi grande demais para se identificar por um resultado. Lagrange, o seu único aluno, ele próprio matemático de primeira categoria, escrevia aos seus contemporâneos “Leiam Euler, leiam Euler! Ele é o Mestre de todos nós”. Já agora, o número de descendentes científicos (alunos de alunos de alunos...) de Euler é 37735.
Euler nasceu perto de Basileia, na Suíça, em 1707. Em 1726 a czarina Catarina I, viúva de Pedro o Grande, convida Euler para integrar a recém-criada Academia das Ciências de S. Petersburgo. Lá ficará até 1741, altura em que (já tendo perdido um olho) parte para Berlim, onde integrará a Academia das Ciências de Frederico II. Lá ficará um quarto de século; nessa altura, já considerado o maior cientista europeu, decide voltar para S. Petersburgo, onde prossegue a sua prodigiosa actividade científica. No entanto sofre em 1771 um rude golpe que terminaria a vida produtiva de um ser humano normal: perdeu o olho esquerdo, ficando assim quase totalmente cego.
Mas Euler não parecia deste Mundo. Ao que se diz, terá declarado “assim tenho menos distracções”. E tinha razão: inacreditavelmente, quase metade da sua produção científica (mais de 400 trabalhos) data desa segunda estadia em S. Petersburgo. Trabalhava com assistentes, um dos quais seu filho, e tinha um quadro gigante no seu escritório, onde escrevia em letras enormes que mal conseguia ver.
A sua memória era prodigiosa; conseguia realizar cálculos intricadíssimos dentro da cabeça e ditava-os aos seus assistentes. Além das centenas de memórias científicas, assim escreveu livros sobre Álgebra, Cálculo Integral ou Óptica. Neste período a sua produtividade científica média era de um artigo por semana!
A 18 de Setembro de 1783 Euler estava no seu escritório a trabalhar sobre a órbita de Urano, recentemente descoberto. Sofreu então um acidente vascular cerebral – uma morte rápida e indolor. Ficou a sua monumental obra, cuja publicação ainda hoje está por terminar.
Se a Literatura teve Shakespeare e a Música teve Mozart, a Matemática teve Euler. Euler é um dos seres humanos que nos eleva acima do plano mortal, e com quem nos sentimos honrados de partilhar o mesmo planeta.