segunda-feira, 31 de março de 2008

Às gerações e gerações...


Há um ano imaginei, no princípio da Primavera, que persistentes longos dias, quentes e luminosos, iriam encher a minha esperança pelo largo Verão a fora. Imaginei dias duplos, com tempo para tudo, e sem tempo a perder. Imaginei, que um horizonte novo pode estar sempre para despontar, se nos soubermos colocar a jeito de o ver, de o seduzir, de sermos seduzidos por ele. Haverá íman mais poderoso que a esperança, estampada no nervosismo da novidade?

Há um ano imaginei que alguma coisa poderia mudar se pelo menos eu conseguisse mudar-me. Imaginei forças novas, novos ímpetos, um calor que ajudaria a vencer o inverno e o desconforto, que pudesse até aquecê-lo e, assim, também gostar dele e da sua teimosia, que nos endurece os ossos e os músculos e nos torna hirtos e inflexíveis.

O Verão a pairar sobre os nossos espíritos habituados a pensar o belo, o bom e o que autenticamente conta para uma felicidade que se ama, nas imagens fugidias, por ser fugidio o nosso espírito, que não consegue abarcar num instante de brilho toda a beleza do mundo que se esconde no mundo que se vê.

Ver e amar, ver e pensar, e continuar a amar e a pensar, apesar de tudo nos fugir. Excepto o passado, excepto a memória que se reflecte no futuro, excepto a memória que nos faz ter saudades do que sonhámos e não do que vivemos. Porque em nós a posse é fugaz. Se o pudermos compreender talvez saibamos rejubilar com reflexos que nos revelam tudo o que desejamos e sorrir perante a sua evanescência.

— Volta, pirilampo, volta, Primavera, volta, juventude!
— Volta, Ó sensação de recomeço! Quem não recomeça morre!
— Gritem isto pelos campos e pelas cidades para que os homens não se esqueçam!
— Gritem que o ciclo recomeça em círculos cada vez mais etéreos e aprazíveis!
— Não se deixem perder, por favor, nas lamas e nos lodos de que o vosso corpo não se pode desprender!
— Deixem esse nevoeiro mefistofélico, em que Invernos cruéis vos tentam embeber e afogar!
— Deixem tudo o que vos tirar a sensação da leveza da borboleta, da fragilidade da papoila, da incorporalidade da areia!

— Exalem a vossa alma como um sopro enxameado de um destino, maior que o dos deuses de barro quebradiço, que ingloriamente se partem pela sua falsa rigidez!
— Lembrem-se que as gerações são essa mesma renovação, que vencendo o tempo, embelezam o jardim, que persiste florido e, todos os anos pela primavera, insiste em demonstrar que aí está para nossa salvação.

As palavras que lavramos são para a memória futura, são para que um dia se possa dizer de alguém, de algum lugar, de alguma coisa, que por ali passou a humanidade, por ali passou uma procura e que ali houve um momento de esperança que justificou toda uma existência.

De tudo o que nos falta há sempre uma palavra para o lembrar. Por isso pensamos, falamos, escrevemos.

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domingo, 30 de março de 2008

Cabeça Cortada

Há mais uma razão para ir a Los Angeles. O J.Paul Getty Museum acaba de adquirir em França, por uma soma que se estima superior a 30 milhões de euros, um quadro pintado em 1892 e que já ninguém via desde 1940. Era, dizia-se, o «mais famoso Gauguin que nunca niguém tinha visto».
Em « Arii Matamoe », Paul Gauguin pintou a cabeça decapitada de um homem colocada sobre uma almofada imaculada. «Terminei agora uma cabeça de canaca cortada, bem arranjada em cima de uma almofada branca num palácio da minha invenção, guardada por mulheres também de invenção minha. Parece-me uma bela peça de pintura» escreveu o pintor a um amigo.
Neste quadro de morbidez e luto – que evoca a cabeça cortada de João Baptista – retrata-se um ritual fúnebre que estava já em via de extinção. Arii designa um chefe ou um nobre e Matamoe significa «os olhos que dormem».
O quadro vai reforçar a colecção de Impressionistas e Pós-Impressionistas do Museu, juntando-se a 3 outras pinturas de Gauguin que estão já no Getty Center.
Vale a pena visitar o Getty Center, a uns minutos de carro de Westwood, o «meu bairro » de L.A. Acesso fácil, espaços abertos onde as colecções respiram, e jardins magníficos à volta. Ainda assim, não escapo à inevitável nostalgia portuguesa de que o que era bom era o que estava «antes», e tenho pena que esta nobre e sangrenta cabeça não vá para a velha villa de Malibu, juntar-se a outras anacrónicas cabeças gregas e romanas.
Foi lá que vi, pela primeira vez, estes dois surpreendentes Degas, cuja coreografia me impressionou mais do que «outros bailados» do pintor. Degas em Malibu, num cenário kitsch, onde se chega pela famosa Pacific Coast Highway.















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O rei está nu


No Público de hoje, António Borges dá uma entrevista importante. Em primeiro lugar, pelo interesse do que diz. Depois, pelo simples facto de dizer. Finalmente, pela circunstância em que assumiu dizer.

Dos impostos e da política orçamental aos grandes investimentos públicos, da realidade empresarial à promiscuidade que define o controlo dos interesses económicos, do empreendedorismo ao papel do Estado e à reforma da administração pública, do sistema bancário aos modelos de regulação e supervisão, de Portugal à Europa e aos Estados Unidos, António Borges revela competência, espírito crítico e visão. Sabe do que fala e torna-o evidente. O que, neste tempo de ignorância atrevida, feito de trivialidades redondas e pretensiosas, sempre bastaria para que a leitura constituísse um verdadeiro bálsamo.

Mas há mais. E não menos relevante. António Borges não foge aos temas difíceis, nem molda o seu discurso às regras da conveniência mundana. É muito mais imprudente do que habitualmente são os entrevistados. E, não se subestime, muito mais corajoso.

Refere-se à oposição e ao PSD sem cerimónias. «A oposição – diz – não existe e está completamente descredibilizada». E continua: «o PSD atravessa uma fase muito má, que não é de agora». Sobre Luís Filipe Menezes, mais adiante, refere: «é um erro, um lapso do PSD. E julgo que não vai durar». Depois disto, nem sequer se furta à dificuldade que ensombra a possibilidade de construir uma alternativa de futuro: «não são só as regras. É um conjunto de factores que tornam limitadas as escolhas».

No entanto, reserva ao Governo a parte mais letal e grave da sua entrevista. Sem papas na língua, torna público o facto de o Ministro da Economia, Manuel Pinho, lhe ter comunicado a cessação imediata de todos os contratos com a Goldman Sachs, no dia seguinte ao fim-de-semana do Congresso do PSD (Pombal, 2005), em que fora crítico das políticas governamentais. No mesmo tom, sem medo, confessa ter sido mais tarde intimado a um pedido de desculpas, aparentemente devido ao mesmo Ministro da Economia, como forma de se retractar da oposição que havia manifestado no âmbito da mudança da presidência da EDP, há cerca de dois anos. Aqui, de novo, sob cominação de nunca mais haver «trabalho para a GS em Portugal» - e esclarece, «aliás, como nunca mais houve».

Em três páginas de um jornal de domingo, António Borges confronta-nos com o país que somos. Um país entregue a um Governo autoritário, incapaz de perceber o sentido da liberdade e do seu exercício responsável, intolerante para com aqueles que perfilham uma visão diferente da realidade, implacável para com a opinião crítica. Um país entregue a uma oposição em auto-destruição, arrogante também ela no seu patético autismo. Um país incapaz de merecer a democracia que conquistou há quase 40 anos. Um país que desperdiça o seu potencial criador e falha consistentemente o desafio do desenvolvimento.
No entanto, nessas mesmas três páginas, António Borges deixa-nos um fundamental elemento de esperança. A esperança nas pessoas e no poder da sua intervenção política, militante e cívica. Em momento de silenciamento acrítico e cúmplice, António Borges falou. E disse o que não é costume dizer-se (isso mesmo evidenciou Manuel Pinho, já esta tarde, nas pungentes declarações feitas a propósito desta entrevista…). Sem medo das consequências. Antes, para o mal e para o bem, dispondo-se a elas.

Ora, na minha perspectiva, é disto que Portugal precisa. Que pessoas credíveis levantem a voz e a façam ouvir. Que digam alto o que muitos sabem em surdina. Que mobilizem os que estão fartos e querem mudar de vida.
O país não vai bem. Mas é preciso que alguém tenha a coragem de o gritar. Como um dia, no meio da multidão, alguém gritou: «o rei vai nu!».

Termino, como António Borges. É preciso gente «completamente nova». É urgente «uma maneira de fazer política completamente nova». E é imperativo «aparecer uma vaga de fundo que permita mudar».

Post Scriptum – Faço o meu registo de interesses, deixando dito que subscrevi a moção apresentada ao congresso do PSD, em 2005, que tinha António Borges como primeiro subscritor. Depois disso, só me lembro de ter estado com ele uma vez, num almoço que, ao acaso, reuniu um pequeníssimo grupo de congressistas com fome e sem mesa marcada, no intervalo do congresso de Lisboa. Hoje, gosto de o ver regressar assim. Com coragem, com ideias e com vontade de participar.

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Ao João Luis Ferreira

Caro João,
Agradeço-lhe não só a apreciação simpática do meu post, meio vivencial, meio godardiano, mas sobretudo a cuidada análise em profundidade a que o submete e que entra em territórios aos quais, em geral, procuro fugir.
O que separa os nossos “discursos”, chamemos-lhes assim, diferença que, segundo o João, eu marquei com uma indesmentível pontinha de irritação (amistosa, creia), é uma incapacidade minha para toda e qualquer meta-linguagem.
Não lhe vou dizer que “não se pode” falar de cinema a partir da conceptualização e da abstracção. Talvez mesmo eu conseguisse, se fizesse um esforço. Mas a preguiça arrasta-me, como uma doce vertigem, para a “doxa”, para o mundo de sentidos e de artefactos, de sombras e cavernas que são os olhos trementes da Lilian Gish no “Lírio Quebrado”, as portas que se abrem e se fecham atrás de John Wayne no “The Searchers”, a saia branca que esconde as elegantíssimas pernas de Cyd Charisse quando dança no parque em “The Band Wagon” .
E minto, não é só a preguiça, é também uma escolha intelectual. Tenho uma certa resistência (pudor?) em converter a euforia dessas sensações em conceitos absolutos. Eu gosto da caverna e escuso-me, por mais exaltante que seja a viagem, a bater as asas em direcção ao “mundo das ideias”.
É a mesma incapacidade que me dificulta uma clara tomada de posição nos debates cívicos e políticos que a Sofia Galvão muitas vezes, e bem, aqui nos propõe. Consigo pronunciar-me sobre a proibição do tabaco, sobre o caso BCP ou sobre a Guerra do Iraque (os meus prognósticos em todos estes casos atingiram índices de erro que até o Guiness se proíbe de registar), mas não consigo colher nesses factos e na sua discussão as “essências” que olhares mais atentos deles retiram – uma decadência de Portugal ou do Ocidente, para ir a tópicos mais batidos. Para sermos filosoficamente anedóticos: o meu “logos” não consegue desaguar nesse “nous”.
O João talvez diga, e talvez o assista alguma razão, que o que tenho é medo!

Invoco em minha defesa Wittgenstein:
“«Tenho medo» pode, por exemplo, ser dito simplesmente como uma explicação do meu modo de agir. Então isto está longe de ser um gemido, pode mesmo ser dito sorrindo.”
E é com este sorriso que me permito fugir outra vez às grandes sínteses estéticas, éticas ou políticas. Confessada a minha incapacidade, nada me impede de protestar com veemência o direito (e a necessidade) de outros, mais dotados e mais audazes, produzirem “sentidos últimos” ou grandes princípios de significação, seja a partir do bailado de Gene Kelly no “Singin’in the Rain”, seja da decisão de Sócrates reduzir o IVA.
Se for o João a fazê-lo, não deixarei de o ler com renovado prazer.

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Correio do Leitor: Carta a Manuel S. Fonseca

Caro Manuel:

O seu post de ontem é uma excelente deambulação pelo que de mais adequado e próprio caracteriza o cinema. Entre os sonhos de uma juventude germinante, e no seu caso mergulhado na sensualidade luxuriante de um continente onde um certo isolamento (como as ilhas distantes) devolve o homem às suas pulsões mais puras e idílicas, cair-lhe na frente, diria, na frente de uma alma curiosa, ávida e meditabunda de adolescente, uma revelação em cinemascope, trazendo notícias de um mundo que existe — o esplendor do universo feminino—, que materializa uma imagem do desejo que sente, é um momento marcante para toda a vida futura.

O cinema trouxe-lhe uma revelação e o Manuel fez dele um amigo de viagem. O encontro com a sua alma gémea fez dele (o cinema) um sacerdote que testemunhou a autenticidade e pureza das intenções que 30 anos de casamento estável não deixam negar. Por isso, o cinema e a vida para si não têm limites definidos em que um comece e outro acabe com clareza.
No post que escrevi sobre cinema e que, então, me pareceu irritá-lo, por detrás da sua boa educação, que é da sua natureza, e do seu estilo literário, que aprecio com sinceridade, escrevi precisamente sobre estes dois aspectos do cinema (registo e substituição): ou seja, substituir a realidade, através do registo das imagens que fascinam e criam ilusão, por uma ficção desejada e que gera o próprio universo em que vivemos estampado num imaginário em que nos revemos.
A presença do cinema e de uma cultura de imagem que atravessou tão poderosamente o século XX, e em novos termos se reformula no século XXI, não deixou nem deixa ao homem contemporâneo muito espaço para que não faça de si mesmo uma espécie de actor no mundo real que vive no mundo da ficção. Muito poucos são indiferentes ao efeito de espelho que o cinema incrustou no nosso imaginário. Em muitos momentos da vida nos sentimos como se estivéssemos num filme, temos necessidade de contar o que nos acontece como se estivéssemos a contar um filme, vemo-nos em situações que nos parecem cinematográficas. E, porque não dizê-lo, muitos sentem uma alegria irrecusável nessa sensação. É como se pudessem ser os heróis que não são senão para si próprios. O poder do registo dá uma sensação de imortalidade e quase ninguém quer ficar de fora.
Porém, talvez valesse a pena pensarmos sobre o lado perverso e manipulador que esta aparente inocência trás consigo. Viver através de uma imagem ou de um ambiente ficcional é uma evasão que penso ser o que a Agustina Bessa-Luís escreveu no texto que então citei. É recusar a individualidade para viver por interposta pessoa.
Viver pela imaginação é uma constante do homem já que não há realidades objectivas e desocultadas. Mas viver pela imaginação é viver concebendo e congeminando um futuro que vamos construindo e não nos aparece feito nem definitivo. O perigo das imagens é que elas nos prendem, e quem ficar refém dessas imagens que nos prendem, por não estar preparado para as ver ou se não tiver uma certa consciência da liberdade individual que nos caracteriza e distingue uns dos outros, dissolve-se num igualitarismo de massas e numa espécie de homem abstracto ao qual, ainda há dias, o Manuel referiu como capaz das maiores barbaridades. Como bem atestam os efeitos dos anúncios de televisão, o cinema não consegue expurgar-se de uma certa subliminaridade que comunica ou activa regiões recônditas e ignoradas do nosso ser. É esse o seu perigo: o não-explícito que gera prosélitos.
No seu caso, como o seu post bem pode atestar, não houve esse risco, ou se houve ele foi superado pelo que mais importa. Não foi o cinema que lhe deu 30 anos de casamento estável, foi sim, o facto de o Manuel e a rapariga do vestido de seda encarnado se amarem e terem nas cumplicidades do crescimento do amor não a origem mas as portagens desse amor. Por isso, também, terão saído do ecran e vivido na realidade.
Um abraço
João Luís

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sábado, 29 de março de 2008

O Marxismo ainda não morreu

Em que é que os defensores da guerra do Iraque basearam as suas posições, desde há cinco anos? Em factos? – Não, basearam-nas em ideologias, teorias, analogias, comparações insuficientemente fundadas de histórias passadas, muita retórica e muita verborreia. Em que é aqueles que criticam agora essa defesa se baseiam? – É simples: em factos. Baseiam essa crítica na observação do que entretanto se passou e os factos são tão gritantes que nem vale a pena perder tempo em enumerá-los.

Pode dizer-se que este confronto de posições é injusto, uma vez que uns falaram antes dos factos e outros depois. Que assim seja, mas a veracidade dos argumentos nada tem a ver com justiças. Que não tivessem falado.

Para não fazermos o mesmo que os outros, temos o dever de reconhecer que o assunto não está totalmente encerrado, todavia. Quem defendeu a guerra pode ainda argumentar que a situação contrafactual seria pior, ou seja, que no caso de a guerra não ter sido feita, o Iraque e o mundo estariam pior. Mas é preciso alguma lata para enveredar por esse caminho e hoje a discussão já não se centra aí.

Aqueles que defenderam a guerra neste canto insignificante do mundo não incorreram em nenhum delito, pois apenas emitiram opiniões que não tiveram influência no decurso dos acontecimentos, dada a insignificância. Mas deviam ter agora um momento de reflexão e talvez fazer o que muitas vezes pedem que outros façam quando erram: demitir-se das funções a partir das quais cometeram os actos em causa.

Responsabilidades terão aqueles que defenderam a guerra mas cujas posições tiveram efeitos. Mas desses só a História poderá tratar.

Dito isto, é preciso acrescentar que é relevante colocar em cima da mesa a hipótese de que George W. Bush não perdeu de facto a guerra. Para isso é todavia necessário sair do quadro em que esta questão foi debatida pelos publicitas belicosos.

Bush perdeu a guerra do Iraque quando se confrontam os resultados com as intenções declaradas, à cabeça das quais se contava a democratização do país (o cúmulo do absurdo surgiu quando se comparou o Iraque com a Alemanha de 1945). Todavia, a verdade é que Bush ganhou a aposta em pelo menos 4 frentes importantes. A primeira é que mostrou ao mundo como o governo dos EUA consegue o apoio do Senado e do povo para entrar em guerra. Depois, mostrou como consegue ir para a guerra fora do quadro da ONU e com aliados de peso, incluindo o Reino Unido, a Austrália e a Polónia. Uma terceira vitória prende-se com a demonstração da facilidade com que os EUA conseguem fazer a guerra sem que isso afecte de forma determinante a economia nacional. Finalmente, está a conseguir com que a produção de petróleo no Iraque seja privatizada, saindo assim da alçada do controlo de um governo longínquo e da OPEP.

Tudo o que se passou, passou e o que as pessoas já sofreram, no Iraque e em outros países, não pode ser mudado. Será que este triste episódio vai servir ao menos para matar mais um bocadinho as formas marxistas de pensamento, que nos dizem que o mundo é para mudar pelos iluminados? Será difícil, dada a resistência da ideologia mais perniciosa do século XX.

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sexta-feira, 28 de março de 2008

Fazer coisas belas a mulheres belas

Não dei um passo na vida em que não tropeçasse num filme de Jean-Luc Godard. Só o vi uma vez, no Forum Picoas. Genial e cabotino, Godard a fazer, como se esperava, de Godard. Ninguém se queixou. Nem eu me queixo dos filmes dele, cujo confessado programa é o de rimar homens com mulheres, o cinema com a vida. E disso, juro-vos que gosto.
Para Godard os filmes têm princípio, meio e fim, não necessariamente por esta ordem. De trás para a frente, esquerda para a direita e vice-versa, foi como lhe vi a obra. Pierrot le fou primeiro, em Luanda, ainda adolescente. No cinema Miramar, que já por si – esplanada aberta sobre a baía – era o triunfo natural do cinemascope. Nunca tinha visto nada tão amplo e radioso, “a natureza filmada com panorâmicas, a morte em plano fixo”. As imagens convidavam a fugir de casa, a atravessar rios e viver à beira da água. Pierrot ensinava a viver e viver era caminhar sempre ao longo da praia. De preferência, ao lado de uma mulher de beleza hipnótica e violenta que dissesse: “Qu’est-ce que j’ peux faire?... j’sais pas quoi faire”.
Reencontrei Godard no Lobito, estava ele nos “anos Mao” e eu em êxtase revolucionário e independentista. Sabe Deus porquê, exibia-se no Flamingo (esplanada também, mas de costas voltadas para o mar) o Weekend. Perdidos no cosmos, Unita e Mpla preparavam dias e noites de facas longas, em que se iriam trucidar fraternalmente, e Godard, no mais longo travelling da história do cinema, filmava carros destroçados, feridos ensanguentados, corpos a arder. À minha volta havia um mundo em desagregação. No filme, Godard obrigava-me a ver, de cabeça levantada, terroristas revolucionários que praticavam o canibalismo. Onde é que começava o cinema, onde é que acabava a vida? Foi a primeira vez que escrevi sobre um filme.

Devo a Godard trinta anos de casamento estável. Já em Lisboa, lembro-me de rever Pierrot com uma rapariga de seda vermelha. Levei-a a ver A Bout de Souffle e Une Femme est Une Femme. A câmara filmava fascinada a beleza formidável e milagrosa de Jean Seberg e de Anna Karina. Vi que o cinema é fazer coisas belas a mulheres belas; percebi que a vida só podia ser igual. E eu e a minha rapariga de seda vermelha ardemos na noite como o último par romântico de Pierrot. Juntos vimos, fechados numa sala da Gulbenkian, todos os episódios de Six Fois Deux. Suportámos, estóicos, offs intermináveis sobre a luta de classes enquanto a imagem apenas mostrava uma pescada morta sobre um prato. Com essa ciência, nada nos podia já separar. Li então, e por atacado, tudo o que Godard escrevera nos Cahiers. Jamais o cinema voltará a ser escrito assim. Como jamais a história do cinema será filmada como o foi, de A Bout de Souffle (extraordinária homenagem ao cinema americano) às Histoires du Cinéma. E talvez ninguém volte a filmar as mulheres como esse míope e misógino filmou a nuca rapada de Seberg, os lábios de Karina, os olhos de Wiazemski com cinzentos de Velasquez, as coxas, o belo cu de Bardot.
Mais tarde, Godard subiu ao céu, e entre céu e terra filmou - Puissance de la Parole - Deus e a Virgem Maria. Foi a última vez que me bati por ele. À porta da Cinemateca, Je Vous Salue Marie, ajudei como pude, ombro a ombro com a PSP, para que os meninos de Abecassis não impedissem a sessão.

Temo, ingrato e preconceituoso, embirrrar com o homem. Mas só os filmes dele se fundiram com a minha vida. Só com eles sonhei, amei e lutei como se fossem o maravilhoso e último canto da vida. Cinéma, mon beau souci.

Publicado hoje no "Público", só por causa da amizade cúmplice do Mário Augusto.

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O grau zero - III

«A Câmara de Lisboa aprovou a recondução da ex-vereadora do PSD Marina Ferreira à frente da empresa municipal de estacionamento EMEL, duas semanas depois de o seu nome ter sido chumbado. (...) A votação foi repetida depois de dois sociais-democratas que haviam sido colegas de vereação de Marina Ferreira terem ajudado a vetar a sua recondução. Estavam a substituir os vereadores que nesse dia tinham faltado à reunião de câmara, e que agora viabilizaram o seu nome.»
Público, 28 de Março de 2008, p. 29

Não comento sequer. Julgo que não será preciso.

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Mais terapia à borla



Já vos falei aqui das vantagens terapêuticas do weirdnews. Junto-vos (copiando indecentemente a ideia do magnífico Guia Terapêutico de Cinema do «nosso» Pedro Marta Santos) mais um compósito com resultados garantidos. Voltei a tomá-lo ontem à noite, chama-se Korkalen (no original de 1921), pode comprar-se aqui, e a patente está registada em nome de um tal Sjöström (autor maior da farmacologia sueca muda) que adaptou um principio activo de Selma Lagerlöf . Garanto-vos que nunca mais deixarão de acreditar na capacidade de redenção dos hominídeos.
Eu deixei-me embalar de tal forma pelos efeitos do fármaco que acordei cheio de esperança no Dr. Menezes e no Sr. Ribau.

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quinta-feira, 27 de março de 2008

Chapéus há muitos...

Edificante a cena em que Cavaco Silva na Ilha de Moçambique recebe como presente um cofió e pergunta com a sua simplicidade: para que serve? É um chapéu?
E a sua Maria responde com ternura:é para pôr na cabeça.
Com um Presidente tão descontraído não temos que nos preocupar. Estamos bem entregues concerteza.

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O campeonato Europa-América

Ontem Jean-Claude Trichet, presidente do BCE, fez um discurso optimista sobre o estado da economia europeia. Deve ser verdade, vinda essa interpretação como vem de um homem pouco dado a optimismos, até por dever do cargo que ocupa. Há problemas, claro, decorrentes sobretudo da valorização do Euro e dos riscos de inflação, mas parece que as coisas não estão muito mal. Nada do que se passa garantidamente com a economia norte-americana. Nesta senda, as noticias sobre a economia portuguesa também não são das piores, embora aqui os optimismos tenham de ser mais comedidos.

Ora isto leva a uma pergunta e a um comentário:

1) Afinal, onde está a esclerose da Europa e a absoluta necessidade que esta tinha de mudar para o “modelo” (as aspas é porque modelos destes não existem) americano? Quem sempre fala disso está com a viola um pouco no saco – mas terá seguramente no futuro outras oportunidade de a tocar porque a verdade é que estes campeonatos são de altos e baixos, ao longo dos anos.

2) Se Portugal vier a confirmar que consegue crescer nos próximos anos, será a primeira vez, desde os gloriosos anos 1960, que o fará com uma moeda forte e com algum equilíbrio nas contas públicas.

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A aluna, a professora e o telemóvel

Venho ainda falar do triste episódio que, há poucos dias, numa escola secundária do Porto, aparentemente opôs uma professora e uma aluna na disputa de um telemóvel. Digo aparentemente, porque a realidade pode bem ser outra. Na verdade, talvez não fosse mau olharmos para tudo aquilo como a disputa de uma professora e de um telemóvel pela atenção de uma aluna.
À primeira vista, de facto, as imagens divulgadas no YouTube mostram a professora e a aluna agarradas a um telemóvel, que cada uma parece desesperadamente querer só para si. O filme, porém, não conta a história toda. Porque a história começa, como todos os dias em todas as escolas acontece, com uma professora que, ensinando uma qualquer disciplina numa qualquer sala de aula, constata que uma aluna não a ouve, absorta que está no mundo do seu telemóvel. Ora, é para reganhar a atenção desta aluna que a professora lhe tira o telemóvel, dando origem ao conflito de que as imagens depois dão conta.
Isto é importante, porque assim posta a questão, não pode já tratar-se como se fosse um excesso inusitado de uma adolescente problemática. Ao contrário – e por mais que dizê-lo seja politicamente incorrecto – é bom reconhecer que a aluna também tem razão (sublinho: também). A verdade é que a questão que se põem diariamente os nossos alunos é esta: A quem ouvir? A quem prestar atenção? E o facto do telemóvel ser, por um lado, omnipresente, e, por outro, instintivamente mais atractivo do que a professora, revela bem o imenso investimento que nele todos despositamos e ao qual os alunos, obviamente, não ficam alheios.
Para além do divertimento intrínseco do telemóvel – a que a maioria dos adultos parece também não resistir e com o qual a professora não pode, de facto, competir –, é bom reparar como os meios de comunicação insistentemente impõem o seu uso: «Fale! Fale a 10 cêntimos por minuto! Fale a 5 cêntimos por minuto! Fale a 3 cêntimos por minuto! Fale de graça! Mas fale! Fale sempre! Fale agora! E envie mensagens todo o dia! Envie mensagens toda a noite! Esteja ligado a todo o mundo. Exista!»
Ao limite a mensagem é esta: Existimos através do telemóvel e sem ele, ao contrário, não existimos. Trata-se, além disso, de uma existência não só divertida, mas excitada e sempre nova. Ali controlamos (esta é uma outra ilusão, a do “contacto” com o mundo e do subsequente “controle” sobre o mundo) toda a informação. Tudo por ali passa. Tudo ali se passa: A vida privada (nossa e dos outros), a vida pública, a literatura e o desporto. Ali temos música; muita música; toda a música. Ali temos filmes, cinema, televisão. Ali falamos, discutimos e amamos. Ali vivemos e morremos. Todos os dias, 24 horas por dia.
Esta mensagem – a que os adultos não são de todo imunes, mas que às crianças, obviamente, mais afecta – é claramente reforçada pela maioria dos pais, que cada vez mais precocemente dão aos seus filhos telemóveis, nos quais creem encontrar uma ajuda para a sua tarefa de ser pais. Quem não ouviu já, ao vivo ou por interposta pessoa, a história de um pai, ou de uma mãe, dizendo ao professor do seu filho, ou filha, que durante a aula quer que este tenha o telefone ligado para assim poder saber sempre onde ele está? E quantos pais não se entregam a uma estranha sensação de segurança por saberem que os seus filhos têm um telemóvel quando, à noite, vão para sabe-se lá?
Ora, contrariamente ao que às vezes se diz, as crianças, de facto, aprendem. Por isso é que, desde sempre, vão à “escola”. O que não se pode é pretender que esta ensine com palavras o contrário do que com actos se faz cá fora. Na verdade, quantos pais não atendem os telemóveis interrompendo uma conversa com os seus filhos? Quantos adultos não calam os seus amigos para atenderem uma chamada? Quantos de nós não falamos com alguém enquanto mandamos a outrém uma mensagem? E quantos professores não atenderam já telemóveis nas aulas, perante a plateia atenta dos seus alunos? E quantos políticos não atendem os telemóveis durante os legítimos discursos dos seus pares?
É por isto que vos digo que a aluna também tem razão. A professora? Obviamente, tem toda. Mas a aluna também tem razão. Ela fez o que viu fazer. Fez aquilo que aprendeu. E quem ensinou fomos nós. Somos nós, portanto, que estamos em causa, no tribunal para onde vai esta criança (não deveria, aliás, ser sempre assim?): Quem queremos ser e que mundo queremos construir? Como vamos distinguir nas coisas diferentes graus de importância? Como vamos estabelecer relações sociais de confiança e de respeito? São estas as questões que suportam esta disputa de uma professora e de um telemóvel pela atenção da sua aluna.
Convenhamos, no entanto, que é uma luta desigual. Basta para isso lembrar que se todos falamos disto é porque o acontecimento foi filmado por um telemóvel. E se toda a sociedade está de acordo, ao que parece, quanto aos indispensáveis benefícios do uso permanente dos telemóveis, é a escola que, mais tarde ou mais cedo, vai ter que mudar, talvez no sentido da famosa máquina de ensinar, proposta, já a meio do século XX, pelo psicólogo norte-americano Burrhus Frederic Skinner. Os filhos dos nossos filhos, quem sabe, talvez já venham a aprender por mensagens de sms.

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quarta-feira, 26 de março de 2008

O grau zero II

No site da internet do Correio da Manhã de hoje, dia 26 de Março, mesmo no fundo da página principal, em cima do anúncio “mulheres procuram homens”, aparece uma caixa com o título “você decide”, hoje dedicada ao tema “será que o divórcio de Menezes vai mesmo avançar?”, onde nos pedem para “votar” num dos dois pequenos círculos que aí vemos com a inscrição “sim” e “não” (ver aqui).
Pela confusão que um órgão de comunicação social assim estabelece em torno do que verdadeiramente possa ser a participação democrática, aliada à intromissão grosseira e despropositada que o mesmo faz naquilo que é obviamente da esfera da vida privada, quero aqui claramente classificar este acto como imoral.

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II. Bessarione, Concetta Bianca

O cardeal Bessarion, personagem do século XV é o exemplo mais simbólico deste movimento. Seria exagerado dizer que foi ele quem trouxe a cultura helénica para a Europa. Como vimos esta foi sempre sendo trazida e ou mantida ao longo dos tempos. Nem sequer a moda dos estudos gregos foi criada por ele. Já exista erudição helénica na Europa, e sobretudo na Itália onde ele se implantou.

Mas Bessarion é um caso a vários títulos significativo. E significativo tanto mais quanto é esquecido e nunca citado.

Sacerdote bizantino de Niceia, sai do império pouco antes da queda de Constantinopla. Se muitos dos seus correligionários saíram para o espaço ortodoxo, tentando fazer de Kiev e mais tarde de Moscovo novos centros de cultura bizantina, se outros se resignaram a ficar, Bessarion aposta na união das igrejas ocidental e oriental.

Percebendo que a o cristianismo divido era a sua principal fraqueza, percebendo que o pólo de desenvolvimento da civilização era na Europa ocidental que se encontrava e não em zona ortodoxa, toma uma opção arrojada, a de se unir ao catolicismo. Escusado será dizer que este passo não lhe valeu só amigos. Escusado será dizer que desde sempre se colocou o problema da sinceridade da sua opção.

Irreleva. Para além do passo religioso, civilizacional e político, fica Bessarion sobretudo como o símbolo, embora não o único factor, da recepção da cultura grega pela Europa ocidental. A sua chegada e dos tesouros que com ele trouxe, tanto da patrística grega, como da herança grega clássica, o movimento que incentivou de estudos helénicos, são a principal marca que deixou à Europa.

Por isso, quando o homem público nos fala da importância dos árabes para a recepção da cultura grega, e sobretudo, esta sim completamente falsa, da relevância turca para este movimento, apenas podemos acreditar numa coisa: na sua ignorância. De cada vez que nos sentirmos gratos aos gregos, devemos pensar um pouco em Bessarion. Esse sim foi enzima que fez expandir pela Europa o milagre grego.



http://www.internetbookshop.it/libri/Bianca+Concetta/libri.html


Alexandre Brandão da Veiga

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Rumo à fichagem ou a saga dos "intolerable acts"

Dias depois da divulgação da notícia de que o fisco considerava a celebração festiva de um casamento uma "oportunidade tributária", estou mais e mais preocupado.
Não apenas pela prática instaurada, que abaixo qualificarei, mas pela indiferemça que ela suscita.
A perseguição sistemática dos registos de casamento e a organização de um questionário sobre os festejos de casamento para efeitos de controlo fiscal não é apenas ridícula, é intolerável. Uma festa de casamento, qualquer que seja o número de convidados ou a indumentária, não consubstancia um facto tributário. Uma coisa é controlar, aleatoriamente ou por sector, as empresas de "catering", os profissionais de fotografia, as casas de moda, as "gift shops", as garrafeiras e adegas. Uma coisa é, na multitude dos contribuintes possíveis, fiscalizar, por rotina ou por suspeita, as contas de um ou vários "casais por acaso recém-casados". Outra, totalmente diferente, é eleger o casamento - a dimensão festiva, eminentemente pessoal - numa "espécie" de facto tributário autónomo e próprio, aglutinador de uma série de "operações económicas" (para usar a expressão cúmplice de Francisco Louçã). Trata-se de uma inadmissível intromissão na mais privada esfera privada. Cada um casa se quiser, quando quiser e como quiser. Com festa ou sem festa, vestido ou despido, com água, vinho ou refresco. E o Estado, que nada tem a ver com as uniões de facto, com os nascimentos, baptizados ou novas formas de família, nem com os seus festejos - por maiores ou glamorosos que sejam -, também não há-de ter nada que ver com os matrimónios (clássicos ou vanguardistas).
O que tudo isto revela - e, por isso, se mostra incomensuravelmente grave - é uma enorme apetência pelo controlo social, pelos mecanismos de controlo social. O Governo - este governo em particular - replica e multiplica os exemplos de vontade de controlo da vida cidadã.
A rolo compressor fiscal continua em marcha. Mais preocupado com os detalhes da vida quotidiana do que com a larga face oculta da fuga. Os detalhes da vida quotidiana não dão apenas dinheiro, dão informação. Rumo à "fichagem".

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terça-feira, 25 de março de 2008

Catilina Contra Revolucionários

Mulher da tribo Mursi, Etiópia, 2000, Peter Grasser
"Tanto amor à Humanidade abstracta, gerou muito ódio e rancor contra o humano concreto."

O mérito da frase é de um blogger para-angolano (que se auto-define como "Pouco Mais do Que Ninguém").

Andando à procura de referências ao "Holocausto em Angola", descobri-o quase por acaso aqui e ainda por cima a falar do meu amigo João. Subscrevo o aforismo e aconselho o blog.

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Sex Toys

Depois de ler o que li aqui, levei o joelho ao chão e atrevi-me a esta parnasiana declaração de amor no novo site PnetHomem (publicidade vergonhosa) para que estão todos convidados.
O Meu Corpo Reclama-te
Eu já merecia. Nunca tive nem uma úlcera, mas vou agora ter os meus 15 minutos de glória. Julgo ter descoberto a solução para a crise do ensino em Portugal. A solução surgiu-me, de braços abertos, vinda de França, de onde, e com as cegonhas, vêm todas as maravilhas.
«O meu corpo reclama-te» confessou, por carta, uma professora ao presidente Sarkozy. Vivendo em Grande-Synthe, uma comuna de Dunquerque, esta "sô tôra" há mais de um ano que escreve cartas de um acrisolado amor ao ex-marido de Cécilia. E nem o recente casamento do garboso Nicholas com a doce Bruni lhe arrefeceu a paixão. As missivas entravam pelo Elysée como bandos de andorinhas esvoaçantes. Primeiro tímidas, depois com bicadas mais insistentes e calorosas. A professora confessava a Nicholas que a temperatura da sua electiva afinidade se estava a tornar «extremamente explosiva». A terna docente avisou mesmo Sarkozy que cada centímetro da sua pele era já pura «nitroglicerina» e que, a encontrá-lo, o seu amplexo o fundiria num mar de «anthrax».
Os irresistíveis 40 anos desta senhora de Grande-Synthe impeliram-na a um passo mais e, de repente, começam a chegar ao palácio presidencial graciosos embrulhos contendo a mais rendada lingerie – imagino fios dentais, wonderbras e, se me desculparem um pessoalíssimo fetiche, ligas de púrpura – a que se sucedeu a exaltada volumetria de alguns sex toys.
Será que este exemplo gaulês não sugere uma viragem estratégica aos cem mil professores portugueses que vieram fazer jogging (estou a brincar, juro que estou a brincar!) a Lisboa? E não me digam que a nossa ministra não é inspiradora. Toda a mulher tem uma graça milenar que reclama pelo menos um soneto parnasiano.
«O meu corpo reclama-te» disse ela a Sarkozy. Poderá o nobre corpo docente nacional dizer menos do que isto? Estou certo de que o dirá até com uma poética que os oximoros terroristas da pós-balzaquiana de Dunquerque não atingem. Antevejo o Ministério da Educação incendiado por fogos que ardem sem se ver. E esperam-se arrebatamentos tão líricos como os desta outra volta camoniana: «Menina formosa e crua / Bem sei eu / Quem deixara de ser seu / Se vós quisereis ser sua.»
Agora sim, caros professores, mostrem que a vossa paixão é a escrita: estão abertas as avaliações.

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Sobre a Escola...

A professora Eugénia vestia-se sempre de castanho. Esta particularidade e o seu raro sorriso são duas das mais fortes recordações da escola primária. O edifício já não existe, foi demolido para dar lugar a uns acessos para a ponte Vasco da Gama, mas aquela escola, que sempre conheci como “tipo Salazar” – 4 salas e dois pisos ligados por uma imponente escada de madeira – guarda ainda hoje a responsabilidade de me ter ensinado a ler, a escrever, a contar e, acima de tudo, a ter um forte respeito pela Escola.

A professora Eugénia, que se vestia sempre de Castanho, tinha um ritual diário que nos fazia tremer. Todos os dias de manhã a pergunta fatídica: “quem não fez os trabalhos para casa?”, era recebida com um misto de ansiedade, medo e brio. Do lado direito da sua secretária uma tímida fila começava a formar-se. Nem sempre eram os mesmos, mas todos acabavam por a integrar. E os olhos já semicerrados de lágrimas viam a gaveta mesmo por cima do seu colo abrir de onde era retirado o pedaço de madeira que iria cruzar-se com a palma da mão num estridente. TRÁS!

Não sou apologista do uso da força ou da violência na educação. Existem inúmeras maneiras de conseguir ter mão de ferro com mão de veludo. Mas também existem limites. E todos os que são pais, se nunca o fizeram, já muitas vezes pensaram num açoite para resolver muitos problemas (não faço parte daquela nova maioria que se revê nos modernos livros de educação infantil).

Mas porque é que existe indisciplina nas escolas?

1- A maior parte dos problemas de indisciplina não tem origem na escola mas na família. O respeito pelos professores, ou melhor, a falta de respeito, começa em casa. Perante a incapacidade dos seus filhos, os pais atiram a culpa sobre os professores, o ensino, e claro o Estado. A culpa nunca é das crianças e muito menos deles. Basta ouvir as declarações de Albino Almeida (dirigi a CONFAP – Confederação Nacional das Associações de Pais), ao afirmar que o caso mediático da jovem da escola do Porto é um caso isolado para perceber que este senhor vive num outro mundo que não o nosso. Um problema claro de falta de autoridade do Estado.


2- Os professores hoje não têm qualquer mecanismo para conseguir punir os alunos. Não há faltas a vermelho, não há alunos expulsos, não se chumba, não há processos disciplinares. É possível assim conseguir autoridade? Claro que é, mas só para alguns muito poucos. E esses, os melhores, estão em escolas privadas, onde não é por acaso que existem tão poucos problemas de disciplina?

3- Porque muitos dos professores não se importam. Aquela professora do Porto interrompeu a aluna e tomou uma atitude. Mas quantos olham para o lado e nada fazem? Muitos, muitos mesmos. E muitos, quase 100 mil dizem, vieram até Lisboa protestar contra as avaliações, mas sobre a indisciplina na escola nada fazem.

Por falar em avaliações, repararam que se deixou de falar da ministra da Educação? Pelo menos alguém suspirou de alívio nesta confusão toda.

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I. Bessarione, Concetta Bianca

Dois lugares comuns são perenes e endémicos no homem público:
a) A cultura grega veio para a Europa por via árabe
b) A Turquia como herdeira de Bizâncio (?) foi veículo de cultura grega.

O homem público odeia a complexidade e consequentemente a verdade, e por isso entra em apuros sempre que quer dizer mais que duas frases de seguida. A recepção da cultura helénica (as recepções) é múltipla e por múltiplas formas se manifestou. A França recebeu sangue bizantino com o casamento no séc. XI de Henrique I com Ana de Kiev, descendente dos Porfirogénitos. O seu filho Filipe I deu sucesso ao nome de Filipe, que ainda se encontra nos Filipes reis de Portugal (por vias complicadas demais para expor aqui). Entre os alemães o imperador Otão II no séc. X casa-se com Theophanu Sklerina, também de sangue Porfirogénito.

O Leste e Centro europeus estão repletos de sangue bizantino e de trocas intelectuais com os bizantinos, e com a múltipla cultura helénica que deles foi recebida.

De igual forma existe uma continuidade de contacto com a cultura helénica, sobretudo na península itálica. O Sul de Itália, Aquileia, Veneza, a Calábria mantiveram sempre contactos constantes com o Oriente grego. Isto para não esquecer Roma, onde a cultura grega esteve sempre presente, de forma mais ou menos activa. Basta ver que as ordens de tipo basilida permaneceram activas até à época Moderna pelo menos em Itália.

Primeira verificação: existe uma continuidade de ligação e de recepções da cultura grega, autónoma e sem intermediação, por parte da Europa.

Mas a verdade é que muita da recepção por via árabe não é, ao contrário do que se julga, muçulmana. Vem de origem árabe, ou melhor, arabizada, mas frequentemente cristã. É o caso da fundamental “teologia de Aristóteles” (obra em verdade de Plotino), que foi essencial para a reconstrução da teologia medieval.

Sem demérito para a recepção por via árabe, que foi relevante na filosofia e na ciência, esta tem de ser enquadrada neste contexto. É incompleta, porque não abrangeu a arte e a literatura gregas. É relativa, porque não foi nem a única, e muito menos a principal, fonte de ligação ao mundo grego.

Já a segunda afirmação que pulula na cabecita do homem público é rotundamente falsa. O império otomano não herdou a cultura grega superior, apenas a expulsou. E se foi veículo, foi-o no mesmo sentido em que Hitler contribuiu para a cultura americana ao expulsar judeus, democratas e aristocratas. A expulsão ou o exílio voluntário doa maiores expoentes da cultura grega em Bizâncio foi enriquecer as culturas ortodoxas e a cultura ocidental.

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As estratégias da liberdade




Não posso evidentemente deixar de ficar satisfeita por em tão curto espaço de tempo verificar que umas escassas considerações, sem qualquer pretensão filosófica (não fique o Gonçalo Moita preocupado), tenham gerado tamanha violência. Num espaço aonde em meu entender seria saudável e mesmo essencial posições e convicções intelectuais “claramente distantes”, acaba de se gerar uma onda de indignação porque existe alguém que entende que o princípio da liberdade é a fé e não a crença.
Lamento contrariar o vosso entendimento mas ao contrário do que expressa o João Luis Ferreira é exactamente a capacidade de termos fé em algo que não se concretiza em histórias de um “Jesus Cristo” que consubstancia a liberdade, a diversidade, o “desconsenso”. Esse é um compromisso com a nossa inteligência e com a nossa participação social e não, como sugere o João, uma fuga ao compromisso.
Lamento, mas a realidade que está por trás desta liberdade que proponho, é sem dúvida aquela que obriga os antípodas a sentarem-se à mesma mesa.
Quando o universo saiu do Nada (que os gregos já chamavam de “Kaos”), sempre ficou a dúvida do porquê de ter sido criada a possibilidade de ser possível evoluir dos macacos até ao que somos. Só que o descer das árvores implicou que passássemos a ver rente ao chão e jamais tivemos horizontes das copas que permitem ver o Sol antes de tal ser possível às formigas. E, por isso, a inteligência que fomos desenvolvendo deixou de vislumbrar o além senão quando podemos subir ao cimo dos montes, o que é cada vez mais difícil quando se vive na cidade envolvido pela “civilização”. É preciso um certo retorno às origens para nos libertarmos, voltando um pouco ao nosso primitivismo. Aí sim, podemos voltar aos medos que nos fazem acreditar em Deus, ou a ter necessidade disso.
Eu quero continuar a poder subir ao cimo dos montes e a ter a liberdade de ter um Deus que não me julgue pelas minhas crenças mas sim pela minha fé.

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Até já.

O Gonçalo Magalhães Colaço decidiu interromper a sua colaboração com o Geração de 60. Sem ele ficamos mais pobres. Por isso mesmo e porque no Geração de 60 não há «lados de fora» ficamos à espera do seu regresso.
Até já.

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A cobardia

Muito apreciado na modernidade é esta aparentemente benéfica pluralidade de opiniões em convívio saudável. Quando vemos pessoas reunidas mas verificamos como estão intelectualmente distantes, interrogamo-nos sobre o que autenticamente as une.

No tempo das ideologias o proselitismo em torno deste ou daquele gerava acotovelamento e filas para engrossar hordas de apoiantes. Talvez sempre, na história, tenha havido razões para estar de algum dos lados de qualquer conflito declarado ou latente.
Também, sempre uma maioria silenciosa permaneceu em silêncio sem se manifestar. Quer dizer, sem se comprometer. O seu silêncio deu aos que se manifestaram uma legitimidade que a manifestação dessas maiorias silenciosas teria abafado ou relativizado.
Porém, a hipocrisia desta nossa pretensamente livre sociedade contemporânea fez medrar e desenvolver-se o espírito descomprometido das maiorias silenciosas levando a que as próprias manifestações sejam expressão de uma unanimidade (não há nada mais descomprometido do que ir num rebanho protegido pela sua própria multidão e sem qualquer risco) para a qual o espaço público parece estar definitivamente reservado.
Chegamos ao limite suportável dessa unanimidade social.

Expressão disto, é o post da Helena Forjaz, onde quase se indigna, por entender não ser compreensível (seria diferente dizer que não compreendia) como é que uma pessoa bem formada e informada (a avaliar pelos cargos que ocupa) sendo livre e não estando coagida, se decide pela conversão pública à igreja una, católica e apostólica. O que está implícito na forma de entendimento de Helena Forjaz é que, neste estado perfeito que é a democracia actual, plural e desassombrada, o que se deve fazer, por ser o que se deve entender, isto é, que a evolução das mentalidades deve reduzir a crença, ou qualquer manifestação religiosa, ao consenso de um pensamento único, socialmente reconhecido e que enquadre essa “realidade sociológica” que é a religião a uma expressão psíquica, por enquanto, tolerável pelos atavismos do passado ainda não devidamente higienizados que estão na origem e no desenvolvimento da nossa civilização, mas que o saber definitivo da definitiva democracia irá debelando e aniquilando com mais informação e mais comunicação dos valores do politicamente correcto, aceitável ou tolerável.

Noutro plano bem diferente, a Sofia Galvão, aproveitou o significado do dia e “postou” com a propósito sobre a Páscoa para nos lembrar que nesta quarentena que se iniciou na quarta-feira de cinzas e culminou no dia de Páscoa, é suposto celebrar a ressurreição de Cristo e não a ressurreição do ócio que leva milhares de pessoas, indiferentes ao significado do acontecimento, a esquecerem, a evadirem-se, a não enfrentarem o que se lhes apresenta. Desperdiça-se, assim, no nosso tempo, a reflexão mais decisiva sobre o destino do homem nos dias mais importantes do calendário cristão.

Na celebração a que assisti, na homília, o padre explicou que o cristianismo se apresenta através de sinais discretos ligados ao quotidiano mais simples e mais humilde e que ninguém esperasse provas da existência de Deus porque não é dessas evidências que é feita a revelação de Deus mas pelos sinais que os corações puros vêem. Como João, o discípulo amado, que viu, quando entrou no sepulcro os panos que cobriam o corpo de Jesus espalmados no chão e o lenço que lhe envolvia a cabeça enrolado de outra forma, e logo começou a crer. O que João viu e logo começou a crer foi na ressurreição de Cristo, a reconstrução em três dias do templo conforme o Mestre lhes tinha falado. A ressurreição de Cristo é a garantia de ressurreição de todos os homens. Nada mais importante nos podia ser anunciado. Entre as alegrias e os tormentos de que padece, o homem, procura sempre a salvação. Pode-lhe chamar paz interior, serenidade, consciência tranquila, mas tudo se resume a uma palavra: salvação. Porém, procurando isso, o homem, recusa todas as formas de iniciação nesse desígnio e, por isso, atormenta-se e padece de sofrimentos que alegrias breves não anestesiam.

O homem contemporâneo, filho da modernidade e da soberba do racionalismo iluminista, rejeita tudo o que lhe convém para acabar a queixar-se de tudo o que lhe acontece. A Sofia Galvão cita G. Vatimo, que recentemente deu uma entrevista ao jornal Público, na qual, mesmo não reconhecendo a verdade onde ela está, reconhece que o seu lugar por ser o seu lugar (o lugar da Verdade) em que ele Vatimo não acredita, é, só por si, uma expressão de plenitude e que a sua ausência é a expressão tenebrosa e apocalíptica do vazio.
Entre uma visão sociológica da religião (que implica a sua identificação com alienação) e a visão da Verdade como real e ideal, presente na essência das nossas vidas, que há de comum?

Por isto, perguntamo-nos: o que une pessoas que vêm dos antípodas para se sentarem à mesma mesa? Que comungam, afinal? Que preço pagaremos pelos compromissos que nos silenciam e anulam? Ou viver em Paz implica anularmo-nos para evitarmos conflitos e guerras? Restar-nos-á misturarmo-nos no meio dos rebanhos das inócuas e acéfalas maiorias silenciosas e ali ficarmos à espera que a morte nos venha buscar? Ou será que apenas, temos medo de lutar, medo da solidão, medo de viver?
Se assim for, teremos inventado um sinónimo para politicamente correcto: cobardia.

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segunda-feira, 24 de março de 2008

Magdi Allam






Há muitos anos que conheço a personagem. Subdirector do Corriere della Sera, um conceituado jornal italiano, podia-se não concordar com ele, mas sempre o achei sério e corajoso. Muito mais corajosos que os que com linguagem mole defendem da boca para fora a liberdade pedindo calma. Como se a liberdade fosse uma figura mole já adquirida para todo o sempre sem carecer de defesa efectiva.

É esta a Europa da liberdade religiosa que os multiculturais pretendem. De um lado cristãos que, convertidos ao Islão vivem livremente e proclamam a sua conversão. Alegria, há liberdade. De o outro muçulmanos que convertidos ao cristianismo têm de viver ou clandestinos ou com guarda-costas. É bom saber que voltaremos a ter cristianismo das catacumbas. Já o tínhamos em países árabes e turcófonos. Passamos a tê-lo na Europa. Uma liberdade sob protecção policial, eis o conceito de liberdade que os vários “BB” (não cito nomes: como sobejamente disse, não imortalizo medíocres) dos anos noventa nos deixaram como herança.

Não é uma questão de gosto, mas de lucidez. Uma sociedade cai sob as suas próprias contradicções. E esta é uma das fissuras pelas quais é ferida a ideia de democracia.

http://notizie.alice.it/notizie/cronaca/2008/03_marzo/23/la_notizia_della_conversione_di_magdi_allam_fa_il_giro_del_mondo,14362721.html?mod=frame&provid=14

http://www.corriere.it/Primo_Piano/Cronache/2007/08_Agosto/20/allam-egiziano-convertito-cristianesimo.shtml

http://www.repubblica.it/2008/01/sezioni/esteri/benedettoxvi-20/battesimo-magdi-allam/battesimo-magdi-allam.html?ref=kwhpt2

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Tibete, religião e política

Uma simples nota para registar a atitude do Dalai Lama na crise do Tibete. Onde muitos gostariam de ver uma posição extremada, encontram "tão-só" uma afirmação radical (radicada). Onde muitos esperavam um grito de revolta, descobrem um enigmático estender de mão. Nem todos percebem, mas um líder religioso que é (ou se sente) governante, dá sempre primazia ao seu carisma espiritual. E não cede, como alguns excogitam tronitruantemente, ao cálculo político.
Em tempos não muito longínquos, também num território sobre ocupação, muitos criticaram a visita de João Paulo II à Indonésia e a Timor. E o seu suposto silêncio. E a ausência do beijo da terra na descida do avião. Mas essa visita supostamente silente revelou-se decisiva para o fim da ocupação, para a chamada de atenção para o drama ali vivido. Foi o rosto da cumplicidade humana com um povo em sofrimento. Há silêncios que falam.
Impressiona-me a profunda humanidade e fraternidade do Dalai Lama para com as mulheres e os homens chineses e a China (não o Governo). Todos compreenderiam um apelo ao boicote dos Jogos Olímpicos, uma especial tolerância para com uma violência espontânea de gente oprimida.
Mas dele ouve-se sempre uma abertura ao diálogo, ao espaço próprio de cada povo, mesmo entre ocupantes e ocupados.
Os homens de boa-vontade nunca recusam falar com os pecadores, sejam os mais miseráveis ou os mais poderosos. O reino deles não é deste mundo.

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De philosophia

Muito se tem aqui falado, nalguns dos últimos posts, sobre filosofia. Ora, sendo eu formado em filosofia (não confundir com informado em filosofia), senti-me finalmente na obrigação de dizer alguma coisa sobre o assunto, que resumirei em muito breves pontos.

1. Começo por esclarecer que não pretendo aqui dizer o que entendo por filosofia. Embora tenha já algum pensamento consistentemente elaborado sobre o tema – o qual será, aliás, este ano publicado pela Imprensa Nacional no âmbito de um escrito mais vasto dedicado a Francisco Suárez –, não consegui resumi-lo em menos de trinta páginas. Dizendo isto, quero que saibam duas coisas: a primeira, que o que brevemente se seguirá se inscreve em caminhos mais amplos; a segunda, e para quem tal possa interessar, que em filosofia sou suareziano.

2. Afirmar-me seguidor de Francisco Suárez, porém, não é afirmar que a sua filosofia é verdadeira e as outras são falsas. Em rigor, não há filosofias falsas. Afirmar-me suareziano é reconhecer que, dadas as minhas próprias circunstâncias, o pensamento de Francisco Suárez se constitui para mim como um acesso privilegiado ao ser. E este é o primeiro equívoco que gostaria de prevenir: a filosofia é primordialmente um acercamento do ser! A questão da verdade é posterior, tanto de um ponto de vista ontológico, como de um ponto de vista gnoseológico. Não cabendo aqui o desenvolvimento deste ponto, valha a citação de São Tomás, que, justamente no De veritate, diz que «a verdade se funda no ser.»

3. O segundo ponto que quero notar é que, apesar deste “acercamento do ser” ser de algum modo comum a todos os homens, tal não significa que todos os homens sejam filósofos. Dizendo de outro modo: a filosofia é natural ao homem, mas o homem não filosofa naturalmente. Ao contrário, a filosofia é uma ciência que implica uma aplicação metódica e continuada da mente sobre o seu objecto próprio, o qual, na expressão de Suárez nas Disputationes metaphysicae, é o "ente real", isto é, o ser tomado na sua máxima universalidade e contracção.

4. Esta absoluta universalidade do seu objecto, presente em todos os entes que são ou que podem ser, faz com que a filosofia não seja uma ciência como as outras. Na verdade, a máxima abstracção do seu objecto adequado implica que o sujeito que conhece não possa ser excluído do seu próprio conhecimento, pelo que a filosofia não pode ter o carácter objectivo próprio das restantes ciências. Daqui resulta o terceiro aspecto que quero notar: a filosofia não serve objectivamente para nada. Por isso devemos estar sempre atentos aos gritos daqueles que, como Marx, pretendem que tudo já foi dito, pelo que à filosofia cabe agora a tarefa de transformar o mundo. Não! A filosofia não é solução para os problemas do mundo, porquanto o ser, considerado na sua totalidade, não é objectivamente redutível à condição de coisa, pois que transporta sempre consigo a intenção daquele que na própria realidade se questiona.

5. Dizer que a filosofia não serve objectivamente para nada, porém, não equivale a dizer que ela é absolutamente inútil. Ao contrário, como diziam os escolásticos, ela é muito útil para o "perfeccionamento da mente" (nela considerados o intelecto e a vontade). E é por isso que a filosofia, para além de ciência, é também sabedoria, permitindo àquele que filosoficamente se questiona no seio da realidade descobrir o seu sentido e dar razão desse sentido. Daí que se lhe venha chamando, desde os gregos, “amor da sabedoria”, ainda que tal amor e tal sabedoria – insisto – não sirvam para nada no quotidiano mundo das coisas.

6. Dizer que a filosofia não pode nem deve servir para transformar o mundo, por último, não é o mesmo que dizer que ela não é importante também para o próprio mundo (contra aqueles qu a pretendem importante apenas de um ponto de vista pessoal). Ao contrário, julgo-a, neste sentido, importantíssima, enquanto aproximação à realidade sem a qual não é possível estabelecer qualquer relação verdadeira entre a inspiração divina própria dos sábios e a observação das coisas própria dos cientistas. Dito de um outro modo, a filosofia é o saber que, captando o ser no seu vir a ser, descobre o sentido que liga o espírito e a matéria, assim permitindo a relação entre os saberes religioso e científico, que com ela constituem as três formas autónomas da razão humana conhecer a realidade.

Para acabar, e ainda que o corrector ortográfico instalado no meu computador insista em trocar gnoseológico por ginecológico, espero sinceramente que estas breves linhas possam ajudar a esclarecer todos aqueles que, como eu, desejam filosofar, aos quais deixo agora todo o espaço para pensar.

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domingo, 23 de março de 2008

The Dream Is Over - Os Beatles e a Filosofia

É impossível falar dos anos 60 sem logo associar como constituindo-se com a década dos Beatles, como impossível é falar dos Beatles sem logo pensar na década do Séc. XX em que tudo mudou, a década que tudo mudou.

M.Antonioni, Blow-up, 1966
M.Antonioni, Blow-Up, 1966
Tudo? Tudo mesmo?

Bem, se não dermos a esse tudo um sentido absoluto, quase poderemos dizer que sim, que, de um certo ponto de vista, i.e., do ponto de vista do entendimento do mundo e da consequente atitude perante esse e nesse mesmo mundo, de facto, mudou. Encurtando razões, afigura-se-nos, inclusive, não exagerarmos muito se afirmarmos terem esses efervescentes, loucos, quiméricos e furiosos anos 60, visto nascer, ou terem mesmo criado, uma nova Mundovisão, se assim podemos dizer, Mundovisão para a qual o contributo dos Beatles foi também, no mínimo, decisivo.

Todos estamos recordados, por certo _ as gerações mais antigas por testemunho directo, as mais recentes por conhecimento histórico mínimo _, da polémica gerada em torno da bombástica afirmação de John Lennon segundo a qual os Beatles eram mais populares do que Jesus. Estava-se em 1966, os Beatles encontravam-se prestes a iniciar aquela que viria a ser a sua última tournée nos Estados Unidos e, afinal, também a última da sua carreira. As palavras de Lennon, sem causar particular comoção em Inglaterra ou na Europa em geral, logo fizeram explodir os ânimos dos sulistas norte-americanos, exaltando-se a ponto de queimarem os seus discos e demais memorábilia, em verdadeiros Autos-de-Fé, sem faltar sequer as inevitáveis fogueiras públicas de purificação, com o Klu Klux Klan a expressar, por seu lado, a intenção de os atacar, sem misericórdia, caso mantivessem o plano de prosseguirem com os espectáculos em solo americano. As hostilidades não se ficaram no entanto pelo Sul e pelo Ku Klux Klan, disseminando-se um pouco por toda a parte e levando à necessidade de John Lennon ter de se explicar, em acto de contrição e desagravo, numa entrevista preparada para o efeito e transmitida pela televisão, em cadeia nacional, para esclarecer e defender os Beatles das acusações de comunistas, satanistas e estarem a realizar uma verdadeira lavagem ao cérebro à juventude.

John Lennon lá teve que se explicar:«Não sou contra Deus, contra Cristo, contra a Religião. Eu não disse que somos maiores ou melhores. Acredito em Deus mas não como uma coisa, não como um velho no céu. Acredito que aquilo que as pessoas chamam Deus é algo que está em todos nós.[...] Lamento ter feito aquela declaração. Jamais tive a intenção de ser anti-religioso. Pelo que li, ou observei, parece-me que o cristianismo está a perder preponderância, a diminuir de significado para as pessoas.»

As explicações foram bem aceites. As ameaças, mesmo de morte foram retiradas. A guarda manteve-se mas, feita nova avaliação dos riscos, entendeu-se poder dar-se início à digressão. Como esperado, mais um êxito retumbante. No entanto, a pressão a que estiveram sujeitos os Fab Four, foi demasiada e, o passo seguinte, foi o completo e definitivo abandono de quaisquer espectáculos ao vivo.

Mais tarde, John Lennon e Paul McCartney haviam de confessar estarem já cansados desses espectáculos em que a histeria se tornava tão ensurdecedora que chegavam a não se ouvir a si mesmos, sucedendo até, numa determinada ocasião, a guitarra de george harrison ter estado desligada mais de vinte minutos sem que alguém desse por isso.

M.Antonioni, Blow-Up, 1966

M.Antonioni, Blow-Up, 1966

Era ainda 1966 e, depois do regresso, da paragem dos espectáculos ao vivo, remetidos a estúdio, haviam de produzir aquela que é considerada vulgarmente a obra-prima, um marco decisivo, na história da música pop do século XX, o arquifamoso «Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band».

O episódio da polémica em torno das palavras de Lennon, de «serem mais populares que Jesus», dá já uma boa nota do ambiente da época e, mais do que isso, a resposta, um excelente exemplo de um dos pontos-chave da «filosofia» dos Beatles, ou seja, da ideia de um Deus interior, marcando desde logo as razões de um tão vincado e acentuado sentido da individualidade expressa em múltiplas canções e de múltiplos modos.

Um dos exemplos disso mesmo é «All You Need is Love» que se tornaria em espécie de hino de toda uma geração: «There’s nothing you can do that can’t be done/there’s nothing you that can’t be sung... Nowhere you can be, that isn’t where you’re meant to be». All you need is love, evidentemente, numa quase reactualização do dito de Santo Agostinho: «Ama e faz o que quiseres». Mas a facilidade de real individuação, de afirmação de verdadeira individualidade, é aparente, como não deixa de lembrar, uma vez mais John Lennon, em «Strawberry Field Forever»: «Living is easy with eyes closed / Misunderstaning all you see / It’s getting hard to be someone...».

Muito se especulou dever-se esta fase dos Beatles, especialmente o «Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band» e o «Magical Mystery Tour», à experiência psicadélica, iniciada com um encontro com Bob Dylan em que este lhes terá aberto a mente para a marijuana, passando mais tarde, após a leitura do livro, «A Experiência Psicadélica: Um Manual Baseado no Livro Tibetano dos Mortos», do não menos famoso Tomothy Leary, à LSD, tal como se entendia ser disso mesmo subtil confissão e testemunho, «Lucy in the Sky with Diamands».


M.Antonioni, Blow-Up, 1966

M.Antonioni, Blow-Up, 1966

Não se afigura que o acentuado sentido da individualidade se deva a tais experiências, tanto porque, como verdadeiros artistas, impossível seria assim não ser, como porque esse mesmo sentido se encontra já bem vincado desde início, como testemunha o seriíssimo «Nowhere Man», de «Rubber Soul», ou ainda o belíssimo, «Eleanor Rigby» («where all the lonely people come from»), do revolucionário Revolver, embora numa perspectiva de raciocínio bastardo, se assim se pode dizer, ou demonstração por absurdo.

Fosse como fosse, não nos podemos esquecer que estávamos nos anos 60, nos anos do existencialismo, nos anos da fúria do valor de «tudo experienciar acima de tudo». A experiência com as drogas ter-lhes-ão, com certeza, «libertado» a mente e acentuado também a busca de um aprofundamento espiritual, busca e procura vinda igualmente desde início mas agora ainda mais constante, mais urgente, para usar uma expressão muito da época, mesmo que seguindo os menos ortodoxos caminhos, se necessário, como o tom exótico, obcecante e hipnótico de «Within You Without You», de George Harrison, repleto de cítara e envolto em oriental deslumbre e encantamento, atesta, sublinhando bem: «People who gain the world but lose their soul / they don’t know; they don’t see», ou ainda, o mais tardio «Inner Light», também de Harrison. Por outras palavras, não obstante todas e as mais diversas experiências, os Beatles nunca perderam o sentido da realidade, se assim se pode dizer, mesmo quando tal poderia parecer suceder.

George Harrison, inclusive, sabia bem a que descaminhos uma errada procura de espiritualidade por via psicotrópica poderia conduzir. Como relatou mais tarde, numa das suas visitas a S. Francisco, passeando em Haight-Ashbury, não encontrou qualquer grupo de exploradores hippies de uma nova espiritualidade mas, tão só e simplesmente, bandos de jovens, sem casa, completamente viciados, puros viciados, sem qualquer outro pensamento que não o de um contínuo consumo sem qualquer sentido nem elevação.

John Lennon, podia escrever o magnífico e muito estudadamente absurdo «I Am the Walrus», meio surrealista, meio completamente louco, mas também de uma estranha lucidez, entre o puro místico e o puro luciferino, é certo, mas, ainda assim, de uma inegável lucidez. E para além disso, mesmo a experiência indiana com Maharishi Mahesh Yogi, terminando como terminou, ou seja, nada bem, como relatado em «Sexy Sadie», não seria uma experiência totalmente em vão.

Quem possui um verdadeiro sentido da individualidade e autenticidade, um sentido de busca de verdadeira espiritualidade e liberdade, não se deixa trair facilmente, e os Beatles tinham tudo isso. Uns mais acentuadamente que outros, em alguns desses aspectos, é certo, mas igualmente válido para todos no seu conjunto, tal como os dois álbuns seguintes aos devaneios mais psicadélicos de Sgt. Peppers e Magical Mystery Tour, o White Álbum e, sobretudo, o magnífico mas também sempre algo subvalorizado Abbey Road, vieram provar.

De qualquer modo, o terceiro elemento, ou aspecto, decisivo que gostaríamos de destacar, foi, como referido, o apurado sentido de liberdade que sempre manifestaram desde início e que permeia toda a sua discografia. Liberdade artística, antes de mais, com certeza, mas também liberdade num sentido mais político, tendendo, por vezes ou quase sempre até, para um plano mais revolucionário, mesmo no estrito sentido político, mas nunca num sentido marxista, i.e., nunca aceitando a necessidade de uma revolução violenta para mudar o mundo, como o próprio tema «Revolution» deixa bem explícito. A revolução, a mudança do mundo, só poderia, só poderá, advir pelo despertar das mentes e pelo amor. O Amor que está adormecido, como diz ainda George Harrison naquela que é uma das composições mais admiráveis de toda a discografia dos Beatles, «While My Guitar Gently Weeps», e que constitui, como alguém também afirmou, «a mais promissora cura para o egoísmo e desespero em que a humanidade se encontra, na actualidade, submergida».

Claro, sobre os Beatles podíamos fazer «posts» ou «postais» e «postais», eventualmente criar até um Blogue exclusivo como, certamente, não deixará já de haver. Mas tudo isto, toda esta rememoração, veio a propósito de um livro publicado em finais de 2007 em língua portuguesa, numa edição brasileira da Madras, e originalmente em 2006, exactamente intitulado, «Beatles and the Philosophy», em edição da Open Court Publishing. Uma obra colectiva onde se congrega os vários contributos de outros tantos eminentes professores de filosofia, religião e demais disciplinas, de várias Universidades dos Estados Unidos.

É uma obra séria que vale realmente a pena ser lida. Não apenas para mostrar, pelas aproximações heideggerianas, sartrianas, wittgensteinianas, hegelianas, entre outros devaneios, até mesmo aristolélicas, como os Beatles foram tão sábios como nem eles alguma vez suspeitaram, mas, acima de tudo, para retornarmos, por momentos, a esses míticos e simbólicos anos 60, anos em que o mundo, de facto mudou, anos de todos os excessos mas também anos em que tudo parecia, de facto, possível, ao alcance do sonho, e em que um mais fundo sentido de Individualidade, Liberdade e busca de uma real Espiritualidade, em síntese, busca também de uma verdadeira Autenticidade, ficaram a marcar, definitivamente, a nossa época.

Importa não esquecer no entanto que os Beatles, se tiveram a importância que tiveram, foi acima de tudo e antes de mais, por terem sido, mais do que filósofos, como no livro se defenda, com sobriedade, a verdade seja dita, extraordinários músicos, inovando, rasgando e expandindo, sem limites e de modo inimaginável, os cânones, formas e possibilidades da designada música popular. Os Beatles não surgiram de geração espontânea, os anos 50 tendo visto já o aparecimento do Rytm’n’Blues e do Rack’n’Roll com os Chuck Berry, Elvis, os Jerry Lee Lewis e, acima de todos e mais proximamente, até de um Eddie Cochran, entre tantos e tantos outros notáveis, para além, é evidente, de movimentos como o da Beat Generation, de Kerouac a Ginsberg e Burroughs, para mais não citar. Mas os Beatles, desde início, afirmaram uma singularidade, uma individualidade, uma força únicas, e, claro, são os autores tanto do experimental «Tomorrow Never Knows» quanto do fabuloso, «A Day in the Life», uma das músicas mais perfeitas de sempre, onde música e letra se conjugam de modo supremo. Quase casualmente, o tema abre com uns acordes de guitarra acústica, logo depois, entra, forte, o piano, a marcar a tensão em contido crescendo: «I read the news today oh boy / About a lucky man who made the grade / And though the news was rather sad / Well I just had to laugh / I saw the photograph / He blew his mind out in a car / He didn't notice that the lights had changed / A crowd of people stood and stared / They'd seen his face before /Nobody was really sure / If he was from the House of Lords. / I saw a film today oh boy / The English Army had just won the war / A crowd of people turned away / But I just had to look / Having read the book. / I'd love to turn you on ... ». John Lennon soletra a vida, a pressão da actualidade mas, não obstante a tão íntima proximidade de tudo e, o grande alheamento. E depois, a orquestra, em uníssono crescendo caótico, numa sobretensão de nervos a estilhaçarem-se e, abruptamente, em mudança de plano, entra Paul, sincopado, num despertar activo, ofegante: «Woke up, fell out of bed, / Dragged a comb across my head / Found my way downstairs and drank a cup, /And looking up I noticed I was late. / Found my coat and grabbed my hat / Made the bus in seconds flat / Found my way upstairs and had a smoke, / And somebody spoke and I went into a dream». E retorna o tema inicial _ vidas, aparentemente sem sentido: « read the news today oh boy / Four thousand holes in / Blackburn, Lancashire / And though the holes were rather small /They had to count them all / Now they know how many holes it takes / To fill the Albert Hall. / I'd love to turn you on». Síntese perfeita. Como sempre, o apelo a despertar. A Luz não reside no bulício do dia-a-dia, embora, para as almas verídicas e despertas, tudo possa ser tão simples como o mais simples da via, «Here Comes de Sun», ou «Something», mesmo quando não sabemos bem o que seja isso que nos «move».

Entretanto chegavam os anos 70. Altamont e Woodstock marcavam o fim de uma época de inocência e os próprios Beatles colocavam um ponto final na sua carreira, prosseguindo, cada um , a sua via.

Paul McCartney, o talentoso melodista, a quem os Beatles devem alguns dos seu maiores êxitos, de «Yesterday» e «Michele» a «Hey Jude» e «Let it Be», foi muito feliz, formou, depois de um razoável primeiro álbum a solo, os Wings, com a sua Linda, voltou às muitas digressões, encharcou-se de novo em êxito e dinheiro, mas nada de realmente significativo sobreveio aos idos dias.

De Ringo Star ninguém esperava muito. Ainda teve um êxito assinalável, e merecido, com o single «It Don’t Come Easy», mas, a aprtir daí, não obstante continuar a gravar, de quando em vez, ao longo dos anos, vários álbuns, significativa memória não se regista também.

George Harrison, desde sempre o mais inquieto e sério no sentido espiritual, produziu, ainda em 1970, um fabuloso triplo álbum, «All Things Must Pass», onde se encontra, para além de clássicos como o «My Sweet Lord», um brilhante «Beware of Darkness». De todos, George sempre foi o mais virtuoso, a quem os Beatles devem, devem, de facto, alguns dos seus melhores e mais extraordinários temas, embora, por características pessoais e posição no grupo, sempre haja mantido uma atitude mais discreta e menos proeminente. Foi quem inaugurou também, pelas melhores razões, a moda dos Concertos de Beneficência, com o triplo «Concert for Bangladesh», para ajudar esse longínquo país arrasado por mais uma inundação devastadora, juntando amigos como Ravi Shankar, Bob Dylan, Eric Clapton e um sempre surpreendente Leon Russel que viria a marcar a data com uma assombrosa interpretação do «Jumping Jack Flash» dos Stones. Depois, continuou a produzir bons álbuns e belíssimas canções, como «Faster», mas sem todavia voltar a conseguir realmente alcançar o brilho único e o magistral fulgor inicial de «All Things Must Pass».

John Lennon, o génio irrequieto que mais terá contribuído para que os Beatles viessem a ser os Beatles que todos temos na memória e imaginação, começou uma nova vida perdendo-se, antes de mais, em alguns uns devaneios com a sua Yoko mas, cedo, acabaria por editar dois extraordinários álbuns, «John Lennon and Plastic Ono Band» e «Imagine». Depois os tempos tornaram-se irregulares, a vida atribulada, chegando a tirar uma licença sabática durante alguns anos e, quando regressou, pouco antes de ser assassinado, não deixando de ser o John Lennon mas o daimon estava apaziguado. No entanto, é ainda a John Lennon que devemos o fecho dos anos 60, com uma das suas mais belas e comoventes canções, «God», onde o primeiro verso reza exactamente assim: «God is a concept by wich we measure our pain», seguindo-se a famosa litania do « I don't believe in magic / I don't believe in I-ching / I don't believe in Bible / I don't believe in Tarot / I don't believe in Hitler / I don't believe in Jesus / I don't believe in Kennedy / I don't believe in Buddha / I don't believe in Mantra / I don't believe in Gita / I don't believe in Yoga / I don't believe in Kings / I don't believe in Elvis / I don't believe in Zimmerman / I don't believe in Beatles / / I just believe in me...and that reality». Não, não era exactamente solipsismo mas talvez apenas o receio sempre latente e bem presente, da facilidade da comum troca da individualidade, da verdadeira individualidade, pela segurança, refúgio e aconchego no descanso à sombra de um qualquer líder, numa ilusão de falsa participação mística numa qualquer multidão vaga, anónima e completamente amorfa; e talvez também a mais lúcida e perfeita consciência da inexorável «passagem das horas»: «The dream is over / What can I say? / the Dream is Over / Yesterday / I was the Dreamweaver / But now I'm reborn / I was the Walrus / But now I'm John / and so dear friends / you'll just have to carry on / The Dream is over».

O sonho terminara, os anos 60 eram passado, nada voltaria a poder ser como tinha sido, não havia senão que seguir, cada um, o seu próprio caminho; trilhando, cada um, as suas próprias vias; carregando, cada um, a sua própria cruz. John Lennon dixit. Bem, não exactamente assim mas, por certo, exactamente com este sentido.


M.Antonioni, Blow-Up, 1966

M.Antonioni, Blow-Up, 1966

E, é claro, é difícil, impossível, falar dos anos 60 e dos Beatles sem uma breve referência, por mais ligeira que seja, da sua contraparte, os Rolling Stones. Enquanto uns faziam dos meninos maus das boas famílias, a quem as mães não entregavam sequer as filhas para irem comer um gelado à esquina do fim da rua, os Stones, os Beatles chegaram a ser um pouco como os meninos bons das más famílias a quem as mães viviam na ânsia de entregarem a mão das suas filhas em casamento.

Os Stones não tinham o talento dos Beatles, é certo, mas escreveram também um dos hinos da década, «I Can’t Get No Staisfaction» e, depois do «Get Ya Yars-Out», sempre mereceram bem o epíteto, tal como sempre são apresentados em palco, «The Best Rock’n’Roll Band in the World».

Aos Rolling Stones deve-se ainda um dos mais perfeitos documentos do ambiente vivido na segunda metade dos anos 60, o projecto «Rock and Roll Circus», onde juntavam desde os Jethro Tull, os Who e Taj Mahal até aos Dirty Mac, uma banda «ad hoc», se podemos dizer, composta por John Lennon, Eric Clapton (na altura ainda nos Cream), Keith Richards (Stones) e Mitch Mitchel (da Jimy Hendrix Experience), além, claro, da «Beautiful Miss Marianne Faithfull.

Os Rolling Stones sempre foram (quase sempre, pelo menos) um Grupo de puro, do mais puro, Rock’n’Roll, sendo-o, como cumpre, com muito Blues à mistura também. Todavia, para se perceber bem as diferenças entre Beatles e Stones, não resistimos também a relembrar aqui, não o maldito «Sympathy for the Devil», hoje que é «musicalmente correcto» admirar como supremo, mas o fabuloso, o mavioso, insidiosamente envolvente e felino «Stray Cat Blues», onde o típico irónico cinismo tão característico de Jagger-Richards é uma impressionante constante de princípio a fim: «I can see that you're fifteen years old/No I don't want your I.D./And I can see that you're so far from home/But it's no hanging matter/It's no capital crime/Oh yeah, you're a strange stray cat/Oh yeah, don'tcha scratch like that/Oh yeah, you're a strange stray cat/I bet, bet your mama don't know you scream like that/I bet your mother don't know you can spit like that». Basta ouvir para perceber quanto levaria muitas linhas a explicar. Outro universo. Os muitos fabulosos universos dos anos 60 que fazem dessa década, na realidade, a mais extraordinária e decisiva década do século XX, até hoje.


M.Antonioni, Blow-Up, 1966

Post Sciptum
It’s All Over Now Baby Blue

No Newport Folk Festival de 1966, quando Bob Dylan surgiu de guitarra eléctrica em punho, foi apupado e quase linchado. Valeu-lhe a amizade de Peter Seeger para regressar mais tarde ao palco, empunhando já tão somente a sua velha viola acústica e a inseparável harmónica, para interpretar, em despedida, «It’s All Over Now Baby Blue».

Convidado há um ano para fazer parte deste Geração de 60, apesar de me encontrar na tangente, do lado de fora, e dadas as fracas disponibilidades de tempo, por razões de ordem profissional, perante a estima pessoal e o reconhecimento intelectual de quem insistia na minha colaboração, acabei por aceitar de corpo e alma, o desafio, tanto quanto corpo e alma permitiam. Aceitei porque, «filho» dos anos 60, tenho como maior orgulho ser Português e, como tal, não poder deixar de participar, de algum modo, daquela que é uma das mais admiráveis entre as mais admiráveis, iluminantes e fecundas tradições de civilização de que há memória em toda a História do Mundo, desde os mais remotos tempos. Por isso, também, a mágoa de não ter tido o «engenho» para dar mais fundo testemunho disso mesmo, não me restando sequer a consolação de, aqui, poder invocar o nosso Pessoa quando escrevia, evocando D. Duarte, o nosso Rei-Filósofo, «Cumpri contra o Destino cumpri o meu dever / Inutilmente? Não, porque o cumpri», por, em rigor, verificar, tristemente, quanto por dever ter assumido, cumprir não ter sabido.


M.Antonioni, Blow-Up, 1966

Agora é tempo de despedida. Sem pateada e sem o talento musical do grande Dylan, vedado se me encontra a possibilidade de poder despedir-me com um qualquer «It's All Over Now Baby Blue». Todavia, creio não quadrar mal se me despedir, muito à anos 60, com «Turn! Turn! Turn!», na versão dos sempre igualmente magníficos Byrds, do velhinho Folk Singer de Protesto, Pete Seeger (um tema curiosamente surgido quando o editor, talvez cansado do pouco êxito alcançado, lhe pediu para escrever algo menos «protestante», algo que pudesse passar nas estações emissoras de rádio, sobrevindo-lhe a inspiração com base no Eclesiastes).

Tudo tem o seu tempo, de facto. Há um tempo para começar e um tempo para partir, em boa verdade, «A time for every purpose, under heaven».

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