No seu mínimo denominador comum a democracia baseia-se em dois princípios muito simples: todos participam na decisão política e a decisão da maioria prevalece. Vista à luz desta simplicidade a democracia tem dois fundamentos simples. Em primeiro lugar, ninguém pode ser excluído da decisão colectiva, é uma regra de humanidade. Em segundo lugar aceita-se uma retórica universal, a da matemática. Em vez de discutirmos qual é o melhor plano para um país, uma cidade, uma região, temos uma regra matemática que deixa inequívoco que decisão prevalece.
Tudo isto visto de uma forma muito simples. Porque quando procuramos saber quem são “todos” abrem-se distinções segundo a nacionalidade e a idade (estrangeiros e crianças não podem votar), que são as toleradas hoje em dia. Mas não nos podemos esquecer que outras existiram até hoje em dia. Na democrática Inglaterra há cargos públicos hereditários e até há poucas décadas os membros das universidades tinham dois votos, um como membros de uma circunscrição territorial e outro como membros da universidade. E quem contesta que o Reino Unido seja uma democracia? Apenas contesto que seja a mais antiga democracia do mundo, dado que quem sabe a sua História sabe que se trata antes de um feudalismo que se soube adaptar, como Burke bem analisou.
E quando se trata da regra matemática há para todos os gostos, seja sistemas maioritários, proporcionais, e mil outras variantes.
Se bem virmos, os sistemas tradicionais da Europa eram igualmente bipolares. A regra da humanidade baseava-se na integração na Respublica Christiana, na humanidade de cada pessoa, a regra matemática existia também sobre várias formas, seja a da primogenitura (regra reticular de álgebra abstracta e não aritmética), voto por classes, voto por clãs, partidos ou outros sistemas.
Seja qual for o sistema político tem de se basear numa regra de humanidade e numa regra retoricamente aceite, geralmente de natureza matemática, por forma a que decisão seja legítima. Observação banal, não fora esquecida.
A questão actual não passa por aqui, mas pelo fenómeno a que se assiste de entronização da democracia, de uma democracia absoluta, que tudo justifica. Desde que se diga que algo é democrático, fica legitimado. O vício não está na democracia, mas na sua absolutização.
Senão vejamos.
O nosso mais próximo paradigma de absolutização encontra-se na Idade Moderna. O poder real vai-se tornando cada vez mais absoluto, e sobretudo o discurso vai cada vez mais defendendo esse poder. O curioso da coisa é que o discurso democrático incensa essa absolutização quando destrói a nobreza e condena-o quando defende as revoluções liberais. O mesmo discurso que aplaude a destruição da nobreza na Europa continental admira a manutenção dos privilégios quando se trata da inglesa.
O segundo paradigma de absolutização, mais longínquo, é o do império romano e ainda mais longe o das monarquias helenísticas.
Em todos estes casos o processo de absolutização gerou a pacificação da sociedade, mas fez esgotar o princípio a longo prazo.
Numa Europa cada vez mais obcecada com a paz a todo o transe, encontramos um caldo de cultura em que a absolutização pode crescer sem ser incomodada. Como o regime actual é o da democracia, absolutiza-se o princípio. Descobrimos a panaceia universal. Desde que se diga que é para democratizar, tudo fica legitimado. Democratiza-se o ensino, mesmo se os resultados são um abaixamento geral do nível cultural das elites e uma subida relativa da restante população que não o compensa. Mas mais importante, desde que haja aparência democrática, permite-se que o ensino seja elitista de forma arbitrária (e hoje em dia é-o na Europa mais que nunca, por lançar para o mercado criaturas sem preparação sólida em nenhuma matéria e atraindo-os assim para tarefas pouco qualificadas). Democratiza-se a discussão pública, mas tendo por efeito nunca chamar pessoas que realmente conheçam os temas. Democratizar significa aqui sempre afastar a competência, a seriedade, o conhecimento. Em nome da democracia podem-se lançar guerras contra terceiros países. Em nome da democracia, e de uma democracia definida não se sabe bem por quem, condena-se o artista que participa em festas dos partidos mais votados apenas porque não são bem vistos pela cultura “democrática”.
O problema da democracia quando se absolutiza é que se estende para campos onde nunca deveria ter chegado, cria um discurso que perdeu assento na regra humana e na regra matemática. Estabelece-se a priori o que é democrático (quem o faz? É sempre um mistério) e a partir daí lança-se um rolo compressor sobre tudo o que não obedece a esses critérios.
Quando um princípio se absolutiza parasita o que não lhe pertence. Por isso pudemos assistir ao longo de todo o século, isto porque a democracia passou a ser o bem pensar, a “repúblicas democráticas” que eram ditaduras, a partidos “democráticos” que são totalitários, e pensadores da “democracia” que eram anti-democráticos.
Arrancada às suas regras e à sua natureza de regra, a democracia transforma-se em religião, com sacerdotes instalados que lançam anátemas mesmo às maiorias. São eles quem decide o que é democrático. Ainda recentemente na Suíça um referendo não permitiu a facilitação do estatuto de naturalização aos estrangeiros. A grande maioria dos suíços foi contra. E vêm daí vozes levantar-se e a chamar de fascista a maioria dos suíços. Isto mostra que a regra humana e a regra matemática não são o mais importante, mas o ter razão, o ser detentor da razão.
A verdade é que o culto da democracia absoluta mostra assim as suas contradicções internas. Matérias há em que a democracia não é, nunca foi, nem nunca poderá ser a regra. Não somos democráticos na nossa vida privada. Não escolhemos amigos, amantes, contactos sociais por critérios democráticos. Não vamos a votos para determinar de quem gostamos. Não somos democráticos nos gostos. Muita gente pode ser muito influenciável na escolha de filmes, roupa, comida, restaurantes, mas não vai a votos nessas matérias. Não somos democráticos na nossa saúde. Não escolhemos um médico porque tem mais votos. Não somos democráticos na vida laboral. Não preferimos um chefe só porque ele teria sido eleito. Não somos democráticos na gestão do nosso património. Não escolhemos uma zona para investir ou num produto porque tem mais votos. Não somos democráticos na ciência. Uma teoria não prevalece porque se foi a votos. Não o somos na arte e na cultura. Um pintor ou um escritor ou um filósofo não é considerado melhor porque é mais lido ou comprado ou visto. Não somos democráticos no lazer. Não decidimos por votos qual o local de férias ou o filme que vamos ver. Não somos democráticos espiritualmente. As nossas convicções não dependem absolutamente da maioria da população.
Os aspectos mais íntimos, e mais importantes, da nossa vida não se passam de acordo com critérios democráticos. A organização da vida social é deixada à democracia e mesmo assim só parcialmente. E é evidente que nos influencia a vida privada. Mas não a constitui nem lhe dá o principal sentido (quando se dá o caso de dar algum sentido). A grande vantagem pelo menos teórica da democracia é a de não se impor no que é mais importante. E quedar-se (na medida do possível) no espaço público, ou apenas em parte dele.
Se a democracia se quer constitutiva de uma identidade está a pretender não só invadir todo o espaço público, em violação do que ela é, como acaba por invadir o espaço privado. Não só a comunicação em sociedade se obriga a ser democrática, o que é uma perversão da democracia (Aristóteles e Gauss seriam proibidos ou pelo menos esmagados) como o espaço privado é contorcido por critérios democráticos. A democracia é por definição o regime que se contrai. Outros o fazem, mas em mais nenhum deles está no centro do regime contrair-se. A democracia abstém-se. Abstém-se no espaço público de intervir nas ciências, na arte, no diálogo cultural. E no espaço privado abstém-se de determinar a vida das pessoas.
Há dois tipos de pessoas que lutam pela democracia: os que não a têm e os que nada têm senão ela. Os primeiros são heróis, os segundos apenas desprovidos. Quando um regime se absolutiza, ou apodrece ou cai. A primeira hipótese é a do marasmo turco e chinês. A segunda a das revoluções europeias. Ou a podridão ou o sangue a escorrer nas ruas, eis a opção. Querer fundar a Europa na democracia, como encontramos tristemente nos discursos públicos, é fadá-la a este destino. Porque a Europa é bem mais que democracia e é sobretudo no que ela realmente é que vai buscar a sua força.
Alexandre Brandão da Veiga