segunda-feira, 25 de julho de 2011

Sinais de servidão

Uma vez um funcionário muito bem colocado disse-me: “eu prefiro ser mandado pelos americanos que pelos franceses e alemães”. Curiosa concepção de liberdade a que ele se resume a escolher um senhor. Escusado será dizer que a criatura em causa tinha um posto tão alto quão baixa era a sua origem. Em bom rigor, o problema da origem não é de onde se vem mas o facto de ainda se lá estar. A graduação apenas estica, não eleva. Que sofrimento.

Dá-se o caso de os últimos anos terem servido de demonstração. Não é muito relevante para estes efeitos saber onde está o vencedor a cada momento, se a ideia europeia de política internacional (aliás muito criticável em muitos aspectos) se a americana (muito boa talvez... para os americanos).


Mais importante é saber o que se aprende com estas reacções. E aprenderam-se coisas. Em primeiro lugar que é nas situações de crise, em que se têm de fazer opção claras, que se percebem as principais fidelidades. Elas existem sempre, mas só têm mesmo de vir ao de cima em períodos de grande crise.


O que ficou expresso nesta crise foi que alguns políticos, alguns comentadores, alguns jornalistas fizeram uma opção clara. Estarão sempre com os Estados Unidos, aconteça o que acontecer. E por mais irracional que seja a sua política. Dizem-se democratas, mas apoiam políticas condenadas por mais de 80% dos povos em que estão integrados. Acima da sua pátria, acima da Europa, acima da democracia, está a fidelidade aos americanos. Primeira lição importante.

Segunda lição a retirar é que decorre da frase “os americanos são só nossos principais aliados”. E como se não bastara apresentam-se como alternativa eventuais enormes projectos de investimento americanos, como contrapeso aos europeus. Onde está o dinheiro americano a fundo perdido? Onde está a solidariedade americana económica e social? É que talvez não dêem porque não é essa a sua forma de fazer política. Financiam exércitos estrangeiros e sistemas políticos, mas muito pouco o desenvolvimento. E talvez não dêem porque não têm. Gastam o dinheiro todo em armas. E talvez não dêem porque não lhes interessa, quando são investidores particulares. Não é por amor aos povos que as empresas investem. Os americanos continuaram a investir mais em França e na Alemanha que em Portugal e em Espanha.

Mas “aliados”? Que se acharia de uma criança de três anos que falando do homem mais forte da Terra dissesse: ele e eu somos aliados? Achar-se-ia ternurento, próprio de um desenvolvimento intelectual incipiente, ou pura tontice. Será que os cargos públicos criam a impunidade intelectual?


Terceira lição a retirar, os erros próprios. Se a Europa não foi capaz de impor uma política própria deve ter culpas no cartório. Sofrendo mais com complexo de imunidade que a outras regiões do mundo, achámos que não tínhamos de investir na segurança e na investigação. Provavelmente devemos ser mais selectivos nos nossos benefícios sociais, dando a quem realmente precisa, para poder investir mais nestas duas áreas. Não tínhamos defesa própria credível e isso criou tentações de curto prazo junto de alguns novos países aderentes para seguirem os Estados Unidos.


No que me diz respeito, a identidade de um homem maduro não se define pelas sua alianças, mas pelos valores e objectivos que são os seus. Nunca definiria uma Europa de acordo com a sua aliança em relação aos Estados Unidos, porque se trata de uma realidade com apenas algumas décadas. A Europa tem milhares de anos, e na sua História esta aliança é meramente conjuntural.


Em primeiro lugar a Europa é a Europa. Frase só aparentemente redundante, porque a pressão americana nos leva a dizer que é Europa o que não é. Depois, em função do que é, e do que lhe interessa, escolhe os seus aliados.


O seu primeiro aliado natural é a Rússia, com todas a dificuldades que essa aliança e uma futura integração venha a ter. É um parceiro da Europa (e uma parte dela) no longo prazo. Partilha de uma História profundamente comum, deu contributos inestimáveis para a nossa civilização. Entre Tolstoï ou Strawinski ou Mendeleev e Hemingway ou Gershwin ou Michelson não tenho dúvidas sobre quem mais contribuiu com grandes obras para a nossa cultura. Entre a profundidade histórica de relações entre as pessoas no dia a dia não tenho igualmente dúvidas quem são os nossos principais aliados.


Temos as nossas antigas colónias americanas e africanas com as quais temos relações de paternidade emancipada (não de irmandade, esse é um disparate) com os quais partilhamos uma História comum e uma cultura comum.


Temos igualmente vizinhos, muito diferentes de nós mas em graus diversos. Os turcos e turcófonos, e os árabes e arabizados. Temos de viver uns com os outros em boas relações de vizinhança e somos nós e não os americanos quem tem de construir o padrão desse relacionamento. São mais distantes de nós pela cultura que povos bem mais distantes geograficamente. Mas é com esses vizinhos que temos de viver, e eles connosco.

Finalmente, e só finalmente, temos os Estados Unidos, a Índia e a China. Em graus diversos, com parentescos diversos (mais próximos com os americanos, de seguida com os indianos, nulos com os chineses) que se apresentam como potências e com as quais temos de lidar, optando pela cooperação, ou a confrontação.


É evidente que este quadro parece relativamente distorcido, ou mesmo muito, para quem tem uma visão histórica apenas de décadas. Que disparate, diz o nativo, a terra é plana. É verdade, no horizonte estreito. Mas ela é curva, num longo horizonte. E é por ser redonda que funciona como funciona. Para se compreender o seu comportamento a longo prazo tenho de perceber que ela é redonda. Se quero apenas ir buscar um copo é melhor ficcionar que ela é plana. Basta-me. Se quero pensar nos grandes destinos do planeta tenho de incorporar a sua curvatura.


Confesso que estas discussões entre os amigos da paz contra os amigos dos americanos me parecem conversas de míopes. Resultam apenas do hábito, são em conclusão mero folclore urbano, a que todos nos vergamos, por falta de espaço mental, por fracos pulmões, pequena capacidade de respiração.


Começámos com o suburbano que de forma arrojada decidiu alvitrar sobre política. O suburbano não está em lugar nenhum, não pertence nem à cidade nem ao campo. Traz consigo um passado de dominação mas já não sabe a quem se entregar. Deixemo-lo na sua paz.


Verificámos afinal onde ficam os defensores da aliança com os Estados Unidos. A sua fidelidade não está na Europa, nem sequer em relação ao seu país nem sequer em relação à democracia. Sobre tudo isto prevalece a fidelidade aos americanos. Só lhes fica bem, mas demonstra o que para eles é realmente mais importante, acima de tudo o resto. Acreditam que são nossos aliados e aceitam a sua dominação, mesmo que não levem nada em troca. Não se vendem por dinheiro embora tenham a esperança de recebê-lo. Mas mesmo que não o recebam rezam ao altar americano. A pureza dos seus sentimentos apenas lhes fica bem.


Apenas pecam moralmente por falta de visão. Julgam-se aliados de um gigante e sorriem como crianças perante ele. Se deixamos estas crianças fazerem birra, a culpa não é dos Estados Unidos, mas nossa, dos europeus. É evidente que há e haverá sempre crianças malcriadas, mas se elas proliferam, o erro é sempre de quem educa. A Europa entregou-se nas mãos dos Estados Unidos e por isso deixou mãos largas aos fedelhos discursivos.


Citando os americanos: “Arranjem uma vida”. E isto é válido tanto para os que defendem os americanos a todo o transe como para os que os atacam. Vivam em casa própria, instalem-se na própria morada, em vez de se definirem pelas amizades (ou inimizades) que supostamente têm.







Alexandre Brandão da Veiga

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quarta-feira, 13 de julho de 2011

Aprendendo matemática e outras coisas III

Mas vejamos o fundo da questão. A tese que hoje em dia corre insurge-se contra uma concepção que se afirma romântica da aprendizagem. No entanto, em boa verdade é uma concepção meramente gestionária da educação. É verdade que na versão pública a ideologia educativa prevalecente parece ser de “esquerda”, romântica, à la Rousseau. Parece. Mas em boa verdade vejamos quais são as suas práticas: organigramas, fluxogramas, enunciação de objectivos, fichas, idolatria das competências em detrimento do conhecimento como valor. A sua lógica substitutiva e não cumulativa torna-a parente das técnicas da obsolescência induzida, típica da sociedade de consumo.

A teoria pedagógica criticada em boa verdade não é de esquerda, nem romântica. O romantismo, sobretudo o alemão, é demasiado profundo para a sua capacidade. Não é acaso que em Portugal se impôs com os chamados doutorados de Boston, que há uma décadas atrás eram sinónimos de doutorados da Farinha Amparo.

A teoria em causa é gestionária, originada nas técnicas empresariais, e julgando-se que a sua prática era romântica e de esquerda, em boa verdade tem origem americana e empresarial. A escola é analisada como uma empresa complacente com os seus clientes, no caso, os alunos. Cada cliente é especial, cada aluno é especial. Se os resultados desta pedagoga são medíocres, não é tanto pelos seus pressupostos filosóficos, mas pela intranscendência filosófica. O ensino foi entregue nas mãos de gestionários, que sob a capa benevolente julgaram tratar dos alunos como de clientes, e do ensino como um produto que tem de ter o agrado do consumidor. O professor que tenta seduzir mais não é que mais um avatar da sociedade de consumo em que o sorriso é uma forma de angariação de clientes. O seu romantismo é assim, não o de Schelling ou Rousseau, mas o da publicidade de férias numa ilha (ilusoriamente) deserta.

O problema dessas teorias pedagógicas não é tanto o de serem românticas. É o de não serem teorias e em boa verdade, mais um instrumento capitalista. Não são pedagogia, apenas marketing. O aluno é tratado como consumidor a quem se tem de agradar, a matéria a ensinar um produto que se tem de embrulhar para seduzir, sempre substituível por um novo, de preferência a deitar fora passado um certo prazo de validade. Quando descemos abaixo do reino da aparências vermos a verdadeira face das coisas. O que torna o actual ensino inútil para as empresas não é ser pouco empresarial na sua cultura, mas de o ser em demasia. É o de criar consumidores e não produtores. É o excesso de sentido empresarial que o torna inútil. Tivera-o menos, seria nos seus efeitos mais rico para todos nós. Consumo rápido, agrado do consumidor, desgaste rápido do produto, ilusão de exclusividade do cliente, estão aqui todos os traços desta ideologia. Não é em assento filosófico que se funda, mas mero resultado da sociedade que o criou. Sendo de consumo a sociedade, é igualmente de consumo a educação.







Alexandre Brandão da Veiga

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terça-feira, 12 de julho de 2011

Aprendendo matemática e outras coisas II

Qual é o oposto do sistema cumulativo? Um sistema substitutivo, seja assim assumido intencionalmente, seja nos seus efeitos práticos, pela forma como funciona. O problema deste sistema substitutivo é que anuncia pela sua natureza a sua irrelevāncia. Se o aluno pode esquecer sem problemas o que antes aprendeu quer isso dizer que o que aprendeu antes não era assim tão relevante. Qualquer sistema substitutivo é assim forçosamente uma aprendizagem de irrelevâncias. Se é permitido esquecer, se é irrelevante que se esqueça, é porque o esquecido não era essencial em conclusão.

Qual é o segundo vício de um sistema substitutivo de aprendizagem, seja em que área for? E entramos na segunda incompletude dos que afirmam que o ensino da matemática é cumulativo, e apenas ele. É que se as aprendizagens forem cumulativas a probabilidade de relacionamento entre as matérias aumenta exponencialmente.

Imaginemos que em cada matéria aprendida cumulativamente se forma uma coluna. Se essas colunas nos estiverem presentes na mente, as possibilidades de inter-relação entre elas são muito grandes. Mas se a cada momento apenas sei as matérias que estou a aprender nesse momento restam apenas fatias dessas colunas. A probabilidade dessas matérias se entreajudarem fica muitíssimo mais reduzida. Tenho de contar com a sorte de, no mesmo momento, estar a aprender algo que se possa relacionar entre si.

A História das ciências está repleta dessas ligações. Einstein quando começa a estudar a teoria de relatividade generalizada percebe que existem estruturas matemáticas que lhe fazem lembrar algo de que tinha umas luzes, os tensores. Poucas pessoas no mundo estudavam essa matéria e teve de contar com a ajuda de Levi-Cività. Não tivera jamais tido algum contacto com os tensores, a relação nunca se teria feito na sua mente. Toda a linguística assenta em conhecimentos cumulativos. É por haver um conjunto de cavalheiros que sobretudo desde o fim dos século XVIII e ao longo de todo o século XIX tinham aprendido latim, e grego, e alemão, e sânscrito, que começaram a suspeitar que as semelhanças entre as palavras e as estruturas das línguas não poderiam ser fruto do acaso. É a cumulação de uma imensa mole de informação por Cuvier que conseguiu perceber aspectos essenciais da anatomia comparada que hoje em dia tanto excitam os amantes dos filmes sobre a Pré-História.

A segunda parte da tese que corre é a de que só se pode passar para uma nova fase de aprendizagem caso se conheça bem a anterior. Concordo mais uma vez, mas discordo por ser condição necessária mas não suficiente.

É verdade que tenho de compreender bem a fase anterior antes de passar à seguinte. E que isso é verdade para todos as disciplinas e não apenas para a matemática. Mas existe mais uma lacuna nesta ideia. É que se tem de compreender bem a fase anterior – na sua relevância cultural. A minha experiência foi a de ser bom aluno a matemática e tê-la detestado até ao 9º ano, exclusive. Aquilo tinha regras, e bastava uma pessoa cumpri-las para ser fácil fazer. Mas o que sobra disso? Nada. Apenas um exercício. Queriam que eu resolvesse problemas com homotetias, pares ordenados, conjuntos? Seja. Era fácil. Despacha-se e não se pensa mais nisso.

Aqui está a incompletude da tese defendida. É que não basta compreender funcionalmente a anterior fase de aprendizagem. É preciso compreendê-la como cultura. Isto é tanto mais notório na matemática, em que uma cultura plebeia a trata como mera questão técnica. Não basta saber resolver o problema, não basta saber demonstrar o teorema.

Vejamos isto com um exemplo. A demonstração do teorema fundamental da trigonometria. Há várias demonstrações, e algumas muito elementares. Um aluno pode saber demonstrar esse teorema, mas se não perceber porque é fundamental não percebeu nada da sua relevância cultural. É fundamental, não por ser difícil de perceber, ou demonstrar, mas porque no fundo diz que no plano euclidiano toda a trigonometria assenta no teorema de Pitágoras (e no de Tales, se se quiser). A matemática tem aliás bons exercícios nessa matéria porque os matemáticos, seres respeitadores da tradição, são useiros em designar cuidadosamente como fundamentais certos teoremas. Se um aluno conseguir explicar porque razão são fundamentais, já é um bom passo para mostrar que adquiriu cultura matemática.

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segunda-feira, 11 de julho de 2011

Aprendendo matemática e outras coisas I

Nestes últimos anos várias pessoas têm vindo a dizer que o ensino da matemática é cumulativo e que, caso não tenhamos consciência disso, não perceberemos que estamos a criar uma fraude no ensino. Em segundo lugar, só se pode passar a uma nova fase de aprendizagem após conhecer bem a anterior. O paradoxo é que não posso simultaneamente concordar mais e discordar mais desta ideia.

Não posso senão concordar plenamente porque não há dúvida que o ensino da matemática é cumulativo. A teoria dos conjuntos é vazia caso não se perceba as implicações que tem para a análise, aprender análise sem saber álgebra é impossível, discorrer sobre álgebra abstracta sem perceber as suas implicações na geometria é exercício vão. Não há parte da matemática que não esteja relacionada com outra e um dos mais aspectos mais fascinantes da matemática é exactamente o momento em que duas áreas que cresceram isoladamente se percebe que estão profundamente ligadas. Quando Descartes liga a geometria e a álgebra, ou os números complexos mostram a sua importância para a trigonometria, eis momentos de glória da matemática.

Quanto a isto não tenho dúvida nenhuma. Em que discordo desta ideia afinal? Bem sei que isso pode acontecer por probidade, por espírito de contenção. Os matemáticos falam só de matemática e isso os mostra a sua honestidade intelectual. Mas ao insistirem que o ensino da matemática é cumulativo esquecem dois aspectos essenciais. É que toda a aprendizagem é cumulativa e, em segundo lugar, sem essa natureza cumulativa torna-se impossível interconexão de conhecimentos. Vejamos então estas duas ideias.

O ensino da sintaxe sem conhecimento da morfologia é um dislate. O estudo das gramáticas generativas estruturais ou o que lhe queiram chamar nos níveis elementares e secundários de educação revelou-se um desastre. E porque? Em grande medida por causa, não dos seus defeitos, mas da sua natureza generalizada. Entramos num espaço vaporoso, que tenta resolver problemas que uma criança ou um adolescente nunca pensaram nem podem pensar. Aliás nem os professores em geral em boa verdade. Porque para os perceber na íntegra isso implica conhecer uma enciclopédia de línguas muito vasto, cada uma com a sua estrutura. Os conceitos destas gramáticas tentam resolver problemas que não existem em português, mas em polaco, outras vezes em sânscrito, outras ainda em árabe.

Mas existem sinais bem práticos deste desastre. Atiram-se as crianças para estes tipos de gramáticas, que são defectivas, na substância sobretudo sintaxes sem morfologia própria. E eis que aparece um sintagma preposicional. A criança não deu morfologia, não sabe o que é uma preposição. E decora. Nada mais pode fazer.

Outro exemplo prático nas línguas em geral. Suponhamos que se exige a uma criança que decore certo vocabulário num ano, mas já não seja exigido no ano seguinte. Ou o primeiro era muito especializado e era inútil ensiná-lo, ou estão é essencial e no segundo ano anda a criança coxa na sua expressão. Tente-se aprender as declinações, esquece-las de seguida, e aprender depois os verbos. Não servem de nada. Bem podem reger o ablativo, que ele anda morto coitado.

Na História, para variar o exemplo. A falta de cumulação nota-se mesmo em teses de doutoramento e em investigações. Mesmo trabalhos muito sérios claudicam quando vem a tentação comparatística, e esta é inevitável sob pena de provincianismo. Quando o especialista em História medieval se atira à comparação com a Antiguidade é quase certo aparecer uma síntese apressada. “Na Idade Média, ao contrário da Antiguidade...”. “Surge pela primeira vez nesta época...”. A consequência? A comparação é feita com uma caricatura. O historiador contemporâneo especialista na sua época perde-se em pormenores e não consegue revelar estruturas já antes vistas.

Nas ciências da vida estuda-se o corpo humano num ano mas no ano seguinte ensinam-se patologias. Deixa de ser importante que o aluno saiba distinguir o estômago dos intestinos nesse momento só porque os aprendeu no ano anterior? Na química podemos esquecer a química inorgânica apenas porque vamos aprender a orgânica?

Os exemplos são muitos. São aliás todos. Toda a aprendizagem é cumulativa. Toda a aprendizagem que se queira realmente útil.

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quinta-feira, 7 de julho de 2011

Maria José Nogueira Pinto

Maria José Nogueira Pinto merecia escapar ao habitual carrocel de elogios fúnebres. Tinha uma frontalidade rara que não se compadeceria com a lamúria de exaltações que desfilam sempre que alguém morre.
Fazia o pleno na radicalidade. Conseguia ser correcta politicamente e politicamente incorrecta; chamar os bois pelos nomes com a garganta forrada de pérolas; cruzava racionalidade com sensibilidade social; humor caustico com exigência espiritual; gosto pela vida e compromissos cumpridos. Nunca passou por um lugar sem o fazer. Prosseguia ideais conhecendo o pó dos caminhos para os pôr em prática. Tinha a inteligência dos teóricos e o pragmatismo dos que mexem no mundo das coisas.
Há poucos meses, perdeu comigo uma manhã, em sua casa, para me dar uma luz sobre os problemas sociais em Lisboa. Bebia um chá amargo, depois de ter tentado a limonada. Não percebia o que estava a correr mal consigo. Nem eu percebo. Vai fazer falta a todos. A Portugal. Que Deus guarde a sua alma.

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sexta-feira, 1 de julho de 2011

Porque está o francês fora de moda?

That monstrous region, whose dull rivers poor
Keats


O império do inglês tem posto a nu um fenómeno que se tinha manifestado em alguns países europeus, mas também na América Latina, em África e em alguns países asiáticos. O inglês impera, mas às custas da decadência de uma outra língua: o francês.

As causas desta decadência são fáceis de analisar: seguiram-se duas potências hegemónicas anglófonas, o inglês básico (mal falado) é mais fácil que o francês básico (que tem de ser sempre minimamente bem falado). Por outro lado, o inglês é um híbrido em que germânicos e latinos encontram sempre um apoio para sua ignorância, em que é comum haver uma palavra, uma construção, uma mais latina e outra mais germânica. A própria estrutura da língua é mais flexível, mas menos rica em flexões. Factores endógenos à própria língua e ao canto histórico em que se implantou tornaram o inglês a língua do mundo ecuménico. Geralmente um inglês veicular, aculturado, pobre, mas de qualquer modo uma forma de inglês.


Que uma língua franca seja substituída por outra não é em si factor de desgraça nem nos deve fazer chorar muito. Que o persa ou o baazari tenham deixado esse papel na Índia, que o babilónio tenha perdido esse papel, ou o acádico, ou o grego ou o latim, em si mesmo pode ter tido maiores ou menores desvantagens, mas não é a primeira nem será a última vez na História que uma língua franca perde o seu papel. Se fosse por essa razão não choraria a perda do francês. Mais uma para o rol da História.


O que é importante é saber que significado sob o ponto de vista civilizacional – e consequentemente político – tem esta perda do francês.


Em primeiro lugar, o mundo do francês imperante nunca foi monolítico quanto a línguas francas. A Europa culta sabia francês, mas sabia igualmente latim e grego, por vezes italiano, ou alemão, se era comerciante igualmente inglês. Quando o francês impera como língua franca não há monolitismo. É um mundo de muitas línguas francas, mesmo que algumas fossem mortas. Até à primeira guerra mundial muitas teses de doutoramento, seja em filosofia, em matemática, em filologia, em lógica, em teologia eram escritas em Latim. O grego era a base de formação das classes cultas, e ler Dante era tão natural para um inglês culto quanto ler Shakespeare. O francês representa um império que não uniformiza.


Em segundo lugar, o mundo do francês imperante é formado por uma língua com uma estrutura de tal modo complexa para um primeiro manuseamento que exigia a elevação de qualquer locutor que o usasse como língua veicular. O francês elevava, mesmo os medíocres. Ao contrário do inglês, língua minoritária se pensada no seu alto nível, o francês mínimo é exigente. O francês tinha assim um efeito equalizador. Um português que o falasse bem era tendencialmente mais ouvido que um rico inglês que a assassinasse, caindo no ridículo.

Em terceiro lugar, o produto cultural francês, muitas vezes retórico, vácuo, meramente panfletário, era em média de muito maior qualidade que o produto cultural em língua inglesa (do basic English, entenda-se). Mesmo não se percebendo, lia-se Hugo ou Balzac. Hoje em dia o inglês é usado para ler folhetos truísticos ou jornais económicos. Poucos leram Swift, Pope ou Huxley. Era um mundo de uma certa exigência mínima.


Em quarto lugar, o mundo do francês imperante carrega uma ideia de civilização, consequentemente de melhoria, de aperfeiçoamento. Da moda ao estilo de falar, de se mexer, de se expressar. Não se pode falar nesse mundo ou estar no mesmo sem uma certa postura. O mundo do inglês básico, língua que foi criada para o indígena, é o mundo do indígena, não o mundo do Dr. Johnson. O seu paradigma é a selva, não a civilização.


Como antes disse, não verteria uma lágrima por esta queda do francês, se ela não estivesse associada, e não por acaso, à queda de uma civilização, ou seja, de um modo de respirar mais livre pelo homem. Por vezes mantém-se a língua, mas abafa-se o sopro, como aconteceu com o grego do império bizantino. Outras vezes a língua mantém-se a balões de oxigénio, para insuflar o mundo, como aconteceu com o latim até à Renascença. Outras vezes morre como o acádico e babilónico sem que tenhamos de ter uma infinita pena de um mundo que morreu, mas que foi substituído por algo de muito mais infinitamente rico, como o mundo helénico.


Mas que o francês esteja a perder força deixa-me inquieto, mais que pela língua, pelo que ela representa: um mundo plural, diversificado, um mundo de uma complexidade mínima e esforço, um mundo de exigência e um mundo de aperfeiçoamento.


Adivinho no leitor mais impaciente algumas, diria mesmo, muitas reticências. Que verbalismo, que verborreia, que dislate de demonstração! Vá-se lá acreditar que a simples mudança de língua vai causar tanta desgraça! Pois é esse o ponto. É que não é a mudança de língua que causa a desgraça, mas a desgraça que favorece a mudança da língua. Depois desta última consumada, apenas se alimenta o terreno da desgraça.


A alergia que vejo em relação não apenas à língua francesa, mas igualmente ao país e ao povo, sobretudo nos meios tecnocráticos, mostra o desvio que existe entre a representação do poder e a realidade ela mesma. Execram no francês um poder que estes já não têm, assim como aceitam nos ingleses a arrogância que ainda mantêm em relação ao resto da Europa por se terem submetido aos americanos. O que não percebem estes cidadãos é que contribuem assim para o enfraquecimento da Europa. Desprezar a França é sempre desprezar a Europa. A gosto ou a contragosto, mais nenhuma potência cultural foi hegemónica tantas vezes e durante tanto tempo como a França – o desprezo da França é apenas um epifenómeno de uma verdade bem mais vasta, a do desprezo da Europa.


Porque se passarmos pela História da Europa, vemos que nasce em França a primeira literatura vernácula europeia consistente, e que em múltiplos saltos de esplendor encontramos em muitos séculos picos de apogeu cultural. Os trovadores, mas igualmente a poesia de Avinhão, que marcou Petrarca, Ronsard, Rabelais, mais tarde o Grande Século de Racine e Molière, no século XVIII escritores que iniciam o movimento do romance na Europa continental, no XIX Hugo, Balzac, Flaubert, no XX Proust, Gide... Paris é o centro da cultura com a Sorbonne na Idade Média, Abelardo e São Tomás de Aquino é em Paris que florescem. É o centro da matemática, da física e da química entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, ainda no século XX oferece homens como Bergson, Broglie, e a mais pujante (embora por vezes, reconheço-o, enfadonha) diversificação das ciências humanas. Ainda hoje em dia é o país do mundo que produz dos maiores matemáticos. E para quem só respeita dados económicos é dos países com das maiores produtividades por hora do mundo, um dos maiores exportadores do mundo, a maior potência turística do mundo.


É certo que um país pode ser poderoso política, económica mas de igual forma culturalmente, e ser no entanto irritante. E é certo que sou insuspeito, porque sou o primeiro a agastar-me quando pretendem exportar discursos como o da pátria dos direitos do homem (neste aspecto, os seus herdeiros são os americanos), do laicismo ou outros elementos meramente folclóricos da cultura francesa. Se de um lado me derem a escolher Poincaré, Fourier (falo dos cientistas, não dos homónimos conhecidos dos políticos), Broglie, Racine e Molière e do outro tiver à minha frente Robespierre, Marat, Mirabeau, Gambetta ou Thiers, a minha escolha está feita de há muito. Reconhecendo os méritos dos segundos, conheço-lhes demais as mediocridades e mesquinhez para os admirar de sobremaneira.


Ninguém se agasta mais com a retórica de exportação da França quanto eu. Porque em geral as retóricas de exportação são produtos de fancaria e porque no caso francês são injustas por diminuírem a grandeza do país. Mas a França pertence aos países de Verdun, aos países do império carolíngio, e foram eles o principal motor da aventura europeia, tenhamos a lucidez e, se se preferir, a humildade, de o reconhecer, nós que não fazemos parte desse núcleo central.

Da minha parte sempre me pareceu da mais elementar justiça admirar a grandeza, tanto quanto desprezar a pequenez. E creio não me deixar iludir na matéria. Um mundo onde se ataca o francês, ataca-se uma cultura, uma civilização. Tenta-se atacar o núcleo dessa civilização. Quem o faz pretende a bem ou a mal um mundo uniforme, a planura, e que o centro do poder esteja fora da Europa. Não gosta de países nem de culturas com vontade própria, salvo se essa vontade for alheia à Europa. Em suma, no dia em que se deitar fora o francês para renascer a poliglotia com o alemão, o italiano, o russo, o espanhol e o inglês, poderia ficar descansado com a qualidade dos sucessores. Mas se apenas se pretende a monotonia do inglês do indígena colonizado, apenas se será secundado pelos analfabetos, os submissos e os enfadonhos. Para quem a vida é um bocejo, que se sinta bem servido.

Alexandre Brandão da Veiga




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