«Um chinês nunca conseguirá
tocar com profundidade música europeia. Nunca irá perceber Bach, nem Mozart. Parecerá
sempre uma imitação barata de um verdadeiro intérprete europeu». Já alguma dia
o leitor ouviu este argumento? Está apressado a qualificá-lo de racista? Que pense
bem antes de o fazer: já o ouviu sobre outra forma.
«Um europeu nunca conseguirá
tocar música chinesa de modo profundo. Se um europeu quiser fazer pintura japonesa
parece um macaco de imitação. Nunca irá compreender filosofia oriental, tanto menos
conseguirá fazê-la». Já está mais descansado o leitor? Sente-se mais em casa?
Por que razão o primeiro
parece tão chocante aos mirones da pequena burguesia, e o segundo tão familiar?
É que há alguma assimetria que se foi impondo, sobretudo desde a Segunda Guerra
Mundial, alguma assimetria que faz com que pareça natural dizer umas coisas, e chocante
dizer exactamente as mesmas coisas, caso varie o objecto.
Temos aqui uma primeira hipótese
de solução para resolver este enigma: os europeus são estúpidos, particularmente
estúpidos, limitados, os outros povos conseguem fazer tudo o que nós fazemos, só
nós somos incapazes de fazer o que eles fazem. Somos inferiores a todas as outras
culturas, em suma.
E dou toda a razão. Quando
vejo um europeu a dizer isto, olho para ele e digo: Tens toda a razão em dizeres
que és inferior. Ao menos tens uma qualidade: és lucido.
Mas este argumento tem um
insulto implícito. Como pode um chinês perder tempo a estudar uma cultura como europeia?
Deve ser um chinês particularmente estúpido, nesse caso. Fora ele inteligente, estaria
a tocar num conjunto de ópera chinesa, e não uma sinfonia de Beethoven. Os músicos
orientais que tocam músicas europeias seriam por isso os deficientes da sua cultura,
uma espécie de desamparados intelectuais que não conseguem fazer senão estudar a
cultura europeia, em vez de estudarem a sua, obviamente muito mais rica e profunda.
É melhor não ouvir tais mentecaptos. São as figuras menores, os limitados de
entre os orientais. Nunca ouvir um oriental tocar música europeia, ou a fazer ciência
europeia, portanto.
Mas como aquele argumento
não se aplica a todos os europeus, e seria estranho que uma cultura tivesse nascido
com o estranho privilégio de ser inferior em tudo a outras culturas, podemos aventar
outras hipóteses de solução do enigma.
Se os orientais conseguem
fazer o que fazemos e nós não conseguimos fazer o que eles fazem, surge um
outro estranho privilégio da cultura europeia: só nós fazemos coisas imitáveis.
O que os outros povos fazem é inimitável. Em suma, não é exemplo para ninguém. Ou
seja, são provincianos.
Levemos esta lógica até à
sua última consequência: apenas uma cultura foi capaz de criar conteúdos universais,
apenas uma cultura é universal quanto ao seu conteúdo. A europeia. As restantes
são apenas culturas locais, aptas para os seus nativos, culturas nativas, portanto.
Já sei que o leitor não queria
dizer nada disto. Que queria dizer que era aberto as outras culturas (postura
sempre confortável, evitadora de estudo), que tem uma visão equânime das outras
culturas. Mesmo que para ter uma visão tão equânime tenha de menorizar sempre a
europeia.
Mas nós revelamos no que dizemos
bem mais do que queremos dizer. Estivera o nosso discurso dependente apenas da
nossa vontade, foram as nossas palavras servas da nossa vontade, não teria havido
na História, nem oráculos, nem literatura, nem a tão querida antropologia em
que assenta o nosso leitor quando diz que as outras culturas não nos são transmissíveis.
O que diz, o que diz efectivamente,
quem afirma que um europeu não consegue aprender as outras culturas, mas as outras
conseguem aprendem a nossa, é que é a nossa a única universal, a única que criou
conteúdos universais, a única que pode ser estudada por todos. Belo insulto,
bela restricção, que esconde um tão belo elogio. Gente ínvia, pouco directa, que
não sabe o que diz. Mas ao menos que se veja alguma justiça no que diz. Mesmo que
a justiça se faça contra ela mesma.
Alexandre Brandão da Veiga