segunda-feira, 30 de agosto de 2010

SERMÃO AOS POVOS


Sê condescendente com a memória, que ela te esquece.

Critica os políticos, e serás sempre justo: porque são eles o teu espelho.

Opina sobre tudo. Só abona em teu favor teres a coragem de enveredares por terrenos que te são completamente estranhos.

Usa a tua liberdade de expressão sem freios. Descansa que o teu ridículo não durará muito. Também serás esquecido.

Preserva o povo. Já resta tão pouco. É uma espécie em vias de extinção. O que sobra é o que não está em lugar nenhum, gente a meia-haste, um funeral de categoria.

A única tragédia do plebeu enriquecido é o facto de ser efémero. Não é por isso muito importante. Acumula títulos que na melhor das hipóteses lhe vêm do mérito. Diferencia-se de mil maneiras o melhor que pode e esquece que é igual aos outros que estão ocupados no mesmo esforço de diferenciação. As cores dos cartões de crédito apagam-se com mais facilidade que as dos brasões.

Chamas louco a quem tem juízo e a quem o é apenas por medo e não por justiça. E tens razão no teu motivo mesmo que não a tenhas no teu juízo.

A tua rapidez a emitir conclusões é directamente proporcional à tua incompreensão dos seus pressupostos.

Continua confundindo o atrevimento com a coragem.

O sentimento da igualdade tem geralmente a ver com a baixeza dos comparandos ou a menoridade de vistas.

Julgas-te superior pelos cargos que ocupas. Julgas que o mérito os justifica. A uns e outros, mesmos que existam, a caducidade dará uma palavra mais dia, menos dia.

Revoltam-te tanto mais nos outros os seus defeitos quanto eles são os teus.

Quando gritas contra a injustiça é ela que te aborrece ou antes apenas o facto de dela seres vítima?

Despreza a grandeza e destruirás quem faz por ti. Confia cegamente nela e a mesma passa a padecer dos teus defeitos.

É o olhar dos outros que te aflige? Talvez seja o momento de desviares os teus olhos para melhor paisagem.

Quem está disposto a dar prontamente a sua opinião geralmente não está disposto a dar mais nada.

Quem chora por um soneto não o faz necessariamente por uma criança. Quem o faz por uma criança pode ser igualmente grosseiro.

Julga os outros, mas apenas para seres julgado.

Quando chamas de loucura a grandeza dás ao que vês o nome que mereces. Nem tudo o que te aflige é condenável.

Destruíste os antigos títulos e agora corres aflito a criar uma nova profusão de títulos. A tua ânsia de os criares é fruto de teres contestado a validade de todos os títulos quando não os tinhas. Agora sofres por precisares do que desprestigiaste.

Não cubras a tua vulgaridade com títulos. Colas assim a poeira ao teu corpo.

Quem fala com frequência nas pratas de família deve verificar se a genética não lhe deixou nas mãos marcas do limpa-pratas.

É uso hoje em dia ver-se mulherzinhas cheias de jóias no campo ou na praia. Jóias de peixeira, é certo, mas sempre são jóias de família.

A tecnologia permite a disseminação do bem-estar, mas não da distinção.

Define-nos muitas vezes mais o que nós aceitamos ouvir que o que dizemos.

Se insistes para que sejamos todos iguais pergunto-me pelos motivos da tua insistência e onde pretendes colocar essa igualdade.

A relatividade é o desespero dos sábios e o descanso dos ignorantes. Os primeiros apenas a aceitam como uma desistência os segundos como uma forma de legitimação.

A ânsia de mostrar bons sentimentos é sempre sinal do que nos faltam verdadeiros. E boas ideias.

Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Os sonhos erram? II

Encaremos pois a pergunta: os sonhos erram?

Para a respondermos temos de deixar qualquer uma das respostas estreitas. A partir do momento em que sonhamos, é actividade pertinente. Seria a mesma coisa que ignorar a fala, a sexualidade ou a respiração. Se está na realidade pode e deve ser objecto da nossa curiosidade. Não podemos aceitar que exista apenas uma porta para essa realidade. Mas não devemos dar aos sonhos, sem questionar, um papel oracular, tanto quanto não o devemos fazer em relação à fala, ao sexo ou à respiração.

O problema dos sonhos é que neles são uma e a mesma coisa a linguagem e o seu objecto. Quando eu falo, de uma forma ou de outra tento dirigir-me a outras realidades, mesmo que essas realidades sejam a linguagem. Quando o discurso fala directamente sobre si mesmo entra no paradoxo. Os gregos já o sabiam quando criaram o paradoxo do mentiroso. Quando sonhamos, o sonho refere-se sempre a outra coisa que o sonho, mas é o sonho enquanto tal que é o nosso objecto. Não falamos em sonhos sobre os sonhos, e se o fazemos é isso sonho de novo.

Que os sonhos errem parece-me evidente. O sonho é algo trapalhão a comunicar. Usa do que pode e do que sabe. Tem mais sabedoria que nós, até porque usa os nossos desperdícios. Tem menos que nós, porque lhe falta a nossa forma de dialogar. Tem as suas próprias. Mas vê-lo como oracular, sempre oracular, é fazer do sonho porta de entrada dos deuses, sempre e apenas isso. E mais uma vez temos a porta do merceeiro, a única porta de entrada para o mundo a actuar. No fundo, os que têm uma visão exclusivamente oracular do sonho são apenas mais uma modalidade do merceeiro com porta aberta e apenas uma.

Nisto, e não apenas nisto, Freud participava do mesmo preconceito de merceeiro do que os acusam. Quando instigou insistentemente Jung para "tomar conta do sexo", como se de coisa frágil se tratasse e em vias de evaporação, mostrava que a sua era apenas uma ânsia e não lucidez. Quando impõe ao sonho a metáfora do mecanismo, a analogia do relojoeiro, em que o mundo do inconsciente tem uma estrutura estratificada, concatenada, hierarquizada, quis construir uma hierarquia celeste para substituir a que pretendeu destruir. O seu modelo é a estante do merceeiro bem arranjada, um inconsciente bem ordenado com uma chave única que se compreende de fora. O sexo tem para Freud o papel da etiqueta com o preço, o livro de inventário. Ordena tudo e ficamos descansados. Não lhe nego os méritos, apenas lhe saliento os imensos limites. Todos sabem que quando o diagnóstico terminava no sexo Freud aliviava a sua angústia. Tanto melhor para ele. Popper dizia que a teoria de Freud era o epítome da teoria irrefutável. E sabe Deus como para ele esse era o maior insulto.

Os sonhos erram. Não erram apenas, mas também erram. E por isso podemos inverter a frase de Santo Agostinho. Os sonhos também dizem: “graças a Deus não sou responsável pelo meu sonhador”. No que como Santo Agostinho, têm uma parte, só parte, mas uma grande parte, de razão.







Alexandre Brandão da Veiga



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China, a mega claustrofobia






A China recusou a entrada da Sagres em Macau, solicitada meses antes por via diplomática, ao abrigo de uma viagem de instrução para oficiais de Marinha portugueses e de uma acção de promoção de Portugal no Mundo.
Não terá sido um burocrata chinês a recusar os pedidos do Estado português alegando o perigoso precedente que poderia constituir a autorização de entrada de um vaso de guerra estrangeiro num dos seus territórios autónomos. Pequim não abriu esta cortês excepção a Portugal por duas razões:
1) Ainda no passado mês de Março pude constatar em Macau a tomada de posse inequívoca e integral do Império do Meio sobre o pequeno território, desde 1999. Para além do acordado sobre a Língua Portuguesa e sobre a cedência, a prazo, do imponente Consolado português sobre a ponte de Edgar Cardoso, pouco de singular os liga a Portugal que justifique a excepção para esta autorização. Preservam a calçada à portuguesa (colocada pelo Governador Vasco Rocha Vieira nos anos 90, antes de sair) como exlibris de interesse turístico, mantêm as fachadas das igrejas de S. Paulo, de S. Domingos e da Senhora do Carmo como postal, photo-oportunity e amostra de multiculturalidade. Tudo mais é jogo para chinês se arruinar e interesse submerso para outro chinês engordar. Se a primeira razão da recusa é penosa para Portugal, a segunda será grave para a China.
2) Foi exactamente pela lógica continental de autosuficiência e controlo interno que o gigante amarelo nunca acordou para o Mundo. Entre 1421 e 1422, o Almirante chinês Zheng He navegou até ao Canal de Moçambique, passando por Mogadishio e Zanzibar. Mas, com a morte de Zheng, a Dinastia Ming desistiu da política de expansão marítima com o argumento de que o comércio era uma «actividade baixa» e a expansão representava um risco para a integridade do Império. A pirataria japonesa na costa Oriental e as ameaças dos mongóis e manchus na fronteira Norte terão concentrado as atenções do Império chinês na defesa das suas fronteiras, por vários séculos.
Essa interioridade, anestesiada pelo ópio, tornaria depois a grande potência asiática num servo de pequenos Estados europeus a milhares de quilómetros de distância ou simplesmente do ilhéu nipónico vizinho. Nem o bloco comunista no século XX beneficiaria a «natural» expansão da China. À excepção das sangrentas incursões na Indochina, em concurso com a URSS, o gigante manteve-se politicamente adormecido para o Mundo.
E seria «a actividade baixa do comércio» a autorizar uma permeabilidade chinesa efectiva em África, na Índia e na América Latina (se descontarmos os retalhistas, sobretudo na Europa do Sul e do Leste) no final do século passado. Para assegurar a participação no comércio mundial, em 2006 a China anunciou a expansão da sua marinha mercante propondo-se liderar a indústria de construção naval num período de dez a quinze anos, com investimentos de mais de um bilião de dólares logo nos primeiros cinco anos. Na semana passada, o Império do Meio passou o Japão tornando-se na terceira economia do Mundo.
E como pode a China prejudicar-se com a recusa de entrada de um navio-escola português em Macau? Como sempre: nem as regras internas da China são internacionalizáveis; nem o chinês consegue moldar-se à liberdade exterior sem perder a coesão interna. Entre a elasticidade do negócio e a ditadura interna terá de escolher um dos dois sistemas do seu País. Mais depressa do que supõe.

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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Os sonhos erram? I









Na nossa época que se crê muito científica esta pergunta nunca é colocada: os sonhos erram? Nela encontramos uma de três posturas: os sonhos são disparate, nem vale a pena perder tempo com eles, os sonhos apenas podem ser analisados na perspectiva das neurociências, ou então os sonhos são a porta de entrada para a verdade.

Que os sonhos sejam mero disparate é a postura do marinheiro céptico, do corsário e o merceeiro que em nada acreditam que não possa estar na ponta do mastro, do sabre ou do lápis. Muitos cientistas não adoptam postura científica, mas apenas colocam no papel os seus preconceitos de origem social. Não foi só Jung que assistiu a sessões de mediunidade, foi Pierre Curie também. A verdadeira curiosidade científica não recusa nada - para poder fazê-lo com critério.

Que os sonhos sejam apenas objecto de neurociências é atitude que adoptam outros um pouco mais sofisticados e mais informados, descendentes dos primeiros. Descobriram uma porta de acesso ao sonho, porta que parece segura, e dela não saem. Recusam menos, mas por porta estreita. Não deixaram o preconceito de merceeiro, apenas lhe juntaram uma porta ao lado.

A terceira atitude é a da psicanálise dita clássica. Daria todo um tratado a análise das acções e reacções dos Freudianos e anti-Freudianos em relação aos sonhos. Freud descobriu um dogma: sexo é Deus e o sonho é o seu profeta. Como Jung e a filologia clássica (não penso sequer nos mais velhinhos, mas em Jacques Jouanna por exemplo) e a antropologia sempre salientaram, Freud distorcia o sentido dos mitos apenas para caberem neste dogma fundamental. Mesmo que a filologia, a antropologia e os casos clínicos desmintam as suas teorias, os seus seguidores continuam a ignorar o dado empírico e tentam enfiá-lo a todo o custo na teoria.

É curioso como os cientistas tendem a detestar – de modo injusto até certo ponto – Freud. Todos os que conheço quando muito têm simpatia por Jung, mas desprezam Freud. É curioso igualmente como Freud é considerado mais científico... por não cientistas. Este é mais um dos sintomas da triste separação entre ciências e letras que existe na nossa época. A tradição é bem antiga. Pauli escolhe Jung e não Freud. E se Einstein escolhe Freud, é por precisamente reconhecer a sua total incapacidade em perceber, não apenas as suas ideias, mas a sua relevância.

De uma forma ou de outra, a verdade é que na revista de moda, na notícia de jornal, Freud ganhou o espaço público. O sonho é oracular, mesmo que se dê ao oráculo uma atenção distraída, não menos distraída que os gregos muitas vezes davam aos seus. Ou então uma desatenção nervosa, como Jocasta de Sófocles que nega a validade dos oráculos. Imagine-se, diz ela a Édipo, que um oráculo lhe disse que ela se casaria com o filho.

A atitude mais sensata, embora talvez nem sempre justa, foi a de Santo Agostinho que afirmou “graças a Deus não sou responsável pelos meus sonhos”. Algo injusta, porque talvez tenhamos algum contributo para os nossos sonhos. Bem sensata, porque é sinal que percebeu que não temos sobre eles controlo pleno. O que nos dizem pode ser muito pertinente, é-nos atirado para o plano da nossa vida, mas nem sempre nos ajuda ou nos define.

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terça-feira, 17 de agosto de 2010

Algarve: um novo mundo pede novas palavras


«Limpa, a luz recorta promontórios e rochedos. É tudo igual a um sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas palavras, porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na superfície das águas lisas como o chão».

Sophia de Mello Breyner Andersen, Livro Sexto, 1962

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sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Patriarcado judaico-cristão?








A expressão é tão pretensiosa que até me custa comentá-la. Mas o que anda no ar de tempo, como as poeiras e os cheiros menos desejáveis, faz parte do nosso ambiente e carece que dele curemos.

O argumento, que foi aduzido por um artista meu conhecido, é o seguinte: a civilização judaico-cristã institui o Deus único, patriarcal e consagra a monogamia, tudo isto artificial. Esta sequência de palavras – pouco mais é que isso, já a ouvi tantas vezes, e no entanto parece-me ser pouco mais que uma sequência de palavras –, esconde muitas confusões numa aparente clareza. Há ordem numa fileira de formigas. Mas esta fiada de palavras mostra que pouco se leu, e mal.

Quanto à idioteira que é o conceito de civilização judaico-cristã já disse o que tinha a dizer. Conceito tendencioso, nada científico, sem nenhuma função explicativa.

Associar o Deus único a esta civilização em exclusivo ou dando-a como fonte única deste Deus único é no mínimo temerário. Porque há que distinguir três realidades diversas. Uma coisa é o monoteísmo: só há um Deus, o resto são falsos deuses, demónios, ou inexistentes. Outra o henoteísmo: existindo ou não vários deuses, apenas se adora um. Uma terceira é o sistema de avatares em monopólio, à falta de melhor expressão.

O monoteísmo encontra-se na dogmática oficial do cristianismo, do judaísmo pelo menos a partir de certo momento e no Islão. O henoteísmo existiu entre os judeus até ao cativeiro da Babilónia (mas é sempre artificial dizer algo sobre isso), ou até Moisés (quem saberá dar uma resposta unívoca a esta questão?). O sistema de avatares em monopólio encontra-se em certos temas dos Vedas (o Bhraman é uno, é tudo, etc.), entre os gregos e romanos (que falam em Deus no singular, apesar de referirem a vários deuses), ou eventualmente o Diaus Piter dos indo-europeus. Avatares porque se reconhece que os vários deuses são manifestações de um único divino, e em monopólio porque o divino é único. Quem efeito, podem existir avatares em politeísmo puro.

É evidente que um especialista em História das religiões teria mil objecções a colocar à minha classificação e dar-lhe-ei razão. As combinações são infinitamente mais complexas. Por outro lado, há que distinguir as enunciações filosóficas, as teológicas e os sentimentos populares colectivos e individuais na matéria. Há que distinguir os discursos, das prácticas e das crenças. Para muitos, por exemplo, a ortodoxia cristã (ocidental e oriental) ou certas versões do Islão (xiitas, karedhjitas) seriam parte de um sistema de avatares em monopólio. Há de tudo, as épocas teriam igualmente de ser diferenciadas.

Paro por aqui. O que interessa é mostrar o seguinte: Deus único e civilização judaico-cristã não são ligação evidente, de causa e efeito, exclusiva.

Já quanto ao patriarcado a questão é outra. Este tipo de afirmações parece dar entender que foi a tal da judaico-cristã que inventou essa coisa fétida que é o patriarcado. O problema é que ele se encontra entre os semitas (sabe Deus como o Islão é tradicionalmente muito mais patriarcal que o cristianismo), entre os chineses, os japoneses, os indianos. As mulheres tiveram o azar de quase todas as culturas serem patriarcais, salvo alguns espaços da Ásia e, paradoxo para os ignaros, a Velha Europa pré-indo-europeia. Em que graus, de que modo, é questão que é especulação querer descrever em pormenor.

O que interessa, para os efeitos que ora importam é o seguinte: patriarcado e judaico-cristianismo não estão em relação de causa e efeito. O cristianismo conquistou um espaço que era já ele patriarcal, seja indo-europeu, seja semita.

E eis que aparece a monogamia, que é antinatural. À monogamia opõe-se a poligamia. A verdade é que num sistema patriarcal a poligamia é sempre poliginia, ou seja, um homem pode ter várias mulheres, mas uma mulher não pode ter vários homens. Num mundo patriarcal a monogamia é protecção das mulheres, como o seria num mundo matriarcal a protecção dos homens. Que a monogamia tenha resultado de um papel fundamental do cristianismo, concordo. Como a liberdade de consentimento para o casamento, como forma de protecção da liberdade das mulheres. Mas não creio que o cristianismo se tenha de envergonhar de ter mantido estas duas conquistas para as mulheres: não terem de ser uma entre muitas, e de serem livres (dentro dos limites de uma sociedade que nunca sendo perfeitamente cristã, não tinha agrado nesta liberdade) para se unir a um homem ou não.

Nova questão é a de saber se isto é natural. Admitamos que não o seja (o que é natural sabe Deus o que seja). Também é antinatural que o forte não possa espancar o fraco, nomeadamente que se proíba a eugenia, o genocídio, a carnificina. Afinal, a grande maioria das culturas praticaram alegremente estes feitos sem problemas de consciência. Se o critério da nossa acção for apenas a natureza (resta saber qual, e quem base em que critérios forjados se constrói), talvez quem for detido de menos força possa sair prejudicado.

Após este percurso rápido, dir-se-á mesmo apressado, pelas falácias desta ideia tão espalhada, desçamos à política, e vejamos que tipo de efeitos tem sobre ela.

O discurso oficial é o dos direitos do homem, do sentimento lacrimejante pelas desgraças do mundo. Mas ao mesmo tempo minam-se todos os fundamentos que sustentam esse discurso lacrimejante e sentimental. Mina-se a sua fonte, o cristianismo, mina-se a noção de limites, a noção de condições para a acção. Parece que veio daí um bicho chamado civilização judaico-cristã só para nos impedir de gozar um pouco nesta vida. Além de isto ser uma visão algo pateta do que é o cristianismo mostra um proletariado recém-chegado à cultura que se sente incomodo pelos limites que se lhe apresentam.

Na política gera uma raça de gentes que abomina limites e por isso tanto mais tende a fazer discursos sobre o sofrimento alheio. Abomina que a sua vontade seja contraída, que os seus apetites sejam contidos e por compensação mais se sente no dever de proclamar os seus sentimentos. Daí que possamos estabelecer uma regra prática: quanto mais se vê alguém proclamar quanto chora, maior deve ser a nossa desconfiança. Apenas espreita uma boa oportunidade para ultrapassar limites que identifica como servidão e não como serviço. Descendente de escravos, as fronteiras não são marcas do seu domínio, mas entraves à sua acção. Pisa-as porque para ele essa é uma forma de libertação e se chora pelo sofrimento que provoca e de que nem reconhece ser o autor é porque uma vaga memória de postura senhorial que observou à distância lhe lembra que ter sentimentos é privilégio dos grandes. Saíram-lhe do coração e passaram-lhe para a boca.

O patriarcado judaico-cristão? Mais um flatus uocis, produzido em massa para justificar o que somos apenas por o ser. Podiam ser estas palavras, ou outras quaisquer. Arbitrário uso da palavra, desrespeitoso dela e em consequência da justiça e do sentimento. É a isso que se rende o espaço público entre as três vias da plebe romana: a trivialidade. Agora sob a capa de construção elaborada.




Alexandre Brandão da Veiga

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quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A Deus

O teu caminho, na esquerda do jornalismo, não me inspirava nada de bom ou de elevado. Em plena década de 80, soava-me a revolução retardada, mal arrefecida, aburguesada. Era assim mesmo.
Devagar, sem alarido nem proximidade, pudeste explicar-me, sem saber que estavas a falar comigo, que se pode chegar de vários ângulos ao mesmo ponto: à procura da realidade, como é, de cada vez. Pudeste dizer-me, ao ritmo de cada artigo ou comentário televisivo, que «todo o ponto de vista é a vista de um ponto», como diz Leonardo Boff. Fazias essa demonstração suavemente, com simpatia, quase sem querer ferir o contraponto.
Cheguei a fazer o exercício: como é que ele vai justificar a vitória inequívoca das Autárquicas de 2001? A saída de Guterres ou, o que foi mais difícil, o final esperado do XVI Governo Constitucional, em Novembro de 2004?
Seguia, atenta, a tua argumentação. Mais equilibrada do que habilidosa, mais honesta do que facciosa, mais inteira do que parcial. Sinto falta disso. Antes de ser preciso. Porque és preciso.

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terça-feira, 3 de agosto de 2010

O enjoado lúdico









Todas as idades trazem tipos, espécimes zoológicos, que as caracterizam. É raro que sejam muito originais, apenas se demarcam mais ou menos em épocas diversas. Um dos espécimes típicos da nossa época é exactamente o enjoado lúdico.

O enjoado lúdico reconhece-se pela filosofia que enuncia sobre si mesmo, mas mais ainda pelos sintomas que apresenta e pelas causas que estão por detrás desses sintomas.

A sua ideologia é de que nada existe de digno, absoluto, e quando muito lhe interessa o seu pequeno jardim de Cândido. Por isso, sempre que alguém lhe refere a existência de valores, coisas valiosas, dotadas de grandeza, sorri e ataca a sua valia.

Se essa é a sua enunciação do mundo, bem mais importantes são os sintomas que apresenta. A sua fácies mostra um profundo enjoo perante o mundo. Não contesta, não argumenta.

A sua postura é a de quem está cansado de argumentar e contestar, o que diz mais sobre a sua falta de energia que sobre a valia da discussão que se poderia travar. Encontra-se permanentemente fatigado, e qualquer referência a ideais, missões, ou objectivos suscita-lhe um esgar de enjoo.

Fadiga, enjoo, ataque, são os seus sintomas essenciais. Juntemos-lhes um quarto: o lado lúdico. Perante a discussão séria, o tema nobre, assume atitude de bobo da corte, brinca, quer à viva força demonstrar que nada disso tem importância. É nisso que gasta a sua energia vital: na demonstração da irrelevância.

Falta-nos um quinto sintoma, que o enjoado lúdico nunca confessaria, que lhe vai no fundo da alma: o dogmatismo. A sua forma de ataque revela a sua natureza profundamente fanática. As frases que utiliza são sempre definitivas, cortantes, irrevogáveis: não há obras de arte maiores, a Europa morreu, não há motivos nobres, nada é genial ou tudo o é (o que dá no mesmo) só para dar alguns exemplos. O que visa é cortar a discussão, mostrar a sua irrelevância.

Se bem virmos estes cinco sintomas estão mutuamente ligados. Fadiga, enjoo, ataque, lúdico, dogmatismo são apenas várias faces de uma mesma figura. Mas para a percebermos termos de ir às suas causas.

O seu paradigma é o Cândido de Voltaire, que de tanto se rir dos motivos nobres acaba por ficar à dimensão do seu jardim. A História do iluminismo dito crítico (que pouco teve disso, salvo na Alemanha) mostra que resulta sempre na amargura e na misantropia. Chamfort é o melhor exemplo disso, mas muitos outros poderiam ser dados. Ou na idolatria histérica, como a religião da deusa razão de Robespierre o mostra.

Qual o percurso que cria um divertido lúdico? Sem dúvida trata-se de pessoas com algum grau de inteligência. Não são igualmente destituídos de curiosidade. Estudaram. Mas, confrontados com a genialidade e a grandeza não foram capazes de seguir percurso criativo. Fenece-lhes a potência para o fazer. Seja a energia vital, seja a dose suplementar de inteligência, seja a capacidade de perseverança na aprendizagem. O seu percurso ficou a meio. Por isso é natural que pretendam que as vidas fiquem a meio, inacabadas.

Em boa verdade trata-se de mais uma figura nascida do ressentimento. Mais uma entre tantas outras. A sua diferença específica surge do facto de não serem totalmente destituídos, ao contrário do medíocre. O problema é que a vida não se basta com uma pequena dose suplementar de lucidez. Esta apenas envenena a vida quando não é bastante.

A sua vida é por isso permanentemente envenenada pelo confronto com a grandeza que tem altura bastante para ver, mas não a que baste para emular. Não são capazes de canalizar a energia para uma finalidade e por isso a própria ideia de finalidade os assusta.

Explica-se assim tanto a enunciação da sua ideologia, como os sintomas que apresentam. Se nada tem importância, salvo o seu jardim, é porque tentaram dar um salto fora dele e apenas tropeçaram. Sentem-se cansados apenas porque não perceberam terem tentado dar caminhadas superiores às suas forças. Estão enjoados porque a vida deu-lhes as tonturas de promessas grandes, mas descobrem para seu desagrado que há promessas bem maiores. Atacam, porque sentem que toda a grandeza é ameaça ao seu pequeno jardim. O que dizem ser uma escolha é apenas uma falta de alternativa. São grandes no seu jardim, só nele o podem ser.

O seu lado lúdico apenas resulta de uma imensa tristeza de não poderem ser maiores. Por isso desmerecem o resto, é a forma de dar dimensão ao seu pequeno jardim. Se é verdade que este não tem grande importância, afinal nada tem, e por isso não é grave. Fazem-se palhaços da sua própria doença, assistidos em hospitais da sua imaginação. E como é típico do palhaço, caem no dogmatismo. O bobo da corte critica todos e não admite críticas. Sabe-se diminuto perante os grandes, mas a sua consolação é o seu estatuto. É a sua menor dimensão que o imuniza. São ciosos dele como se de privilégio aristocrático se tratasse.

É certo que é figura triste, mas a nossa época tem muitas outras. No seu caso apenas lamento que não sejam mais bem aproveitados. Seriam muito bons servidores de senhores mais altos se fossem mais bem-educados. A sua forma de redenção é a de serem cortesãos. Mas para isso carecem de senhores maiores.




Alexandre Brandão da Veiga

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