segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Lévi-Strauss o ambíguo


 

Lévi-Strauss o ambíguo

Lévi-Strauss é uma personagem muito ambígua. Tem aspectos positivos quando procura invariantes, universais, nas práticas sociais, e encontra nestas a proibição do incesto (DOSSE, François, Histoire du Structuralisme, Tome I, Le Champ du Signe, 1945-1966, Éditions la Découverte, Paris, 2012, p. 35).

 

Já quanto à recusa de recurso ao sujeito falante (pp. 38-39) é mais equívoco. Por um lado, é uma premissa saudável, de simplificação do modelo. Mas o problema é que ele comete o erro epistemológico mais elementar: coisifica o modelo. Quando recusa o sujeito sem mais, não por induzir complexidade no modelo, mas como um dogma, comete o pecado basilar de reificação. A prevalência da sincronia de Saussure em si mesma também não é pecado (p. 39, embora de forma mais extrema a p. 67). O problema é a sua recusa da História (p. 39; Lacan dizia que detestava a História pelas melhores razões a p. 146, e a obra de Vladimir Propp porque tinha dimensão histórica, foi esquecida em França nos anos 60 e só publicada nos anos 80 a p. 375; Paul Ricoeur diz que o custo do estruturalismo é afastar a História e a palavra no sentido de Saussure, e tenta receber a palavra, mas a verdade é que se esquece da História a p. 379; mas o próprio Barthes não consegue evitar a História como modelo explicativo a p. 382).

 

Uma História total teria sempre um produto igual a zero, afirma (p. 278), atacando o cristianismo sem o visar. A Incarnação não serviu de nada, vivemos todos num magma de eventos, bem vindos ao mundo arcaico. O problema é sempre o mesmo. O que pode começar por ser uma saudável simplificação do modelo, acaba por ser fetiche, barreira inultrapassável. A questão é a de saber porque coisifica ele o modelo. Com efeito, o que começa por ser modelo em Saussure naquele passa a ser evacuação do significado e privilégio do significante (p. 46). A sua ideia da irredutível diferença entre as culturas (p. 155), impede em última análise qualquer fusão, ao contrário do testemunho da História (mas a prova empírica não era a preocupação de Lévi-Strauss, já o sabemos). Ataca os fundamentos do europeicentrismo (p. 155). O «outro» pode ensinar-nos sobre nós mesmos (p. 156), diz. Mas isto mais não é que o que fizeram os jesuítas séculos antes dele, o que habilidosamente omite. Fala do encerramento ocidental-centrado e quando aparentemente está a fazer um discurso sobre a igualdade das culturas, lembra apenas os aspectos em que culturas não ocidentais são superiores à nossa, os beduínos e esquimós na capacidade de adaptação a climas duros, os orientais na espiritualidade (p. 156). Também aqui passa uma visão meramente turística da realidade. Lévi-Strauss nunca referiu a mística cristã, seja ocidental, seja ortodoxa. Faz, por isso, um juízo comparativo presumindo que a Europa não tem espiritualidade ou a tem menor, logo é fácil encontrar qual seja maior que ela. Não há aqui nenhuma preocupação de conhecimento, mas apenas impor um dogma.

 

Afirma que o pensamento mítico é tão estruturado quanto o pensamento científico (p. 298), o que é ideia autobiográfica, como tudo o que não é muito inteligente. O seu pensamento pode não ser mais estruturado que o mítico. Mas talvez fosse altura de ele se confrontar com o pensamento de Riemann, por exemplo, para verificar, se o tivesse conseguido, que existe uma hierarquia entre esses pensamentos. Outro exemplo ocorre quando diz que os australianos são superiores nas formas de organização parental (p. 156). Em parte nenhuma se mostra em que termos estudou as genealogias europeias e os mecanismos familiares na aristocracia europeia. Instalado no seu mundo plebeu, compara-o com o resto do mundo, como se o seu assento burguês fosse o da Europa. Começa por falar em prosa e celebra a poesia alheia. Roger Caillois, mostra o evidente, que só a Europa pela sua curiosidade criou a etnografia, mas a este argumento apenas sabe responder com a paródia (pp. 158-159). Declara que o seu mestre é Rousseau ao qual muito devemos e em relação ao qual temos sido ingratos (p. 162). Não referiu a alegria da guilhotina, como uma das suas implicações ideológicas, não obstante. Maxime Rodinson responde a este relativismo integral dizendo que, perante as suas teorias, nada permite afirmar que seja mais importante conhecer o princípio de Arquimedes que a nossa genealogia (p. 165). O que é só parcialmente um bom argumento. Porque se Lévi-Strauss não parece compreender o princípio de Arquimedes, de certeza ignora a sua genealogia, e quer por isso que a dos outros seja irrelevante. A sua é a procura de desviar as costas ao Ocidente, à nossa História, a que nos produziu (p. 168). Porquê? Precisamente por essa História não o glorifica a ele, e impõe-lhe limites à sua grandeza. Nunca fará parte dos kaloi kai agathoi, por isso diz que é o próprio kalos kai agathos que é irrelevante, condenável, desprezível. A única estratégia que tem para afastar os obstáculos da sua subida à glória. O ressentimento do plebeu, em suma, e mais uma vez.

 

Sublinha a enorme complexidade das línguas primitivas, e refere as trezentas e cinquenta plantas recenseadas pelos índios Hopi e os índios Navaro mais de quinhentas (p. 275), sem nunca se ter apercebido que c camponês europeu sabia muitas mais em frequentes casos. Lévi-Strauss diz (repare-se, não escreve) que é um materialista (p. 214), mas que fala das leis do espírito humano (p. 276). Quando Jean Duvignand em 1958 opõe à postura estruturalista uma visão pluralista da sociedade, Lévi-Strauss diz que a questão da liberdade não tem sentido nenhum, porque a estuda como cientista (p. 215). A afirmação parece ser nobre e sensata. É por demais legítimo ter uma visão estrutural do homem, ou melhor, uma visão formalista das relações humanas. Todas as relações por definição são formalizáveis. Isso em si não é pecado, mais uma vez. A questão mais uma vez é de ter transformado o que é mero princípio de contenção dentro de um modelo em fonte de máximas da existência. Coisifica e expande o omitido para o resto da vida. Porque bem sabe que quando diz que a liberdade é irrelevante, não vai ser entendido «neste modelo que construi não existe uma variável liberdade», mas no sentido em que «não existe de todo a liberdade, ou não tem importância nenhuma». É também significativo que o seu conceito de formalização implique alguma linguística, algum marxismo e algum freudismo (p. 281), mas nenhuma matemática. Como nesta matéria é ignorante e não quer cair nas asneiras de alguns dos seus correligionários que brandem conceitos matemáticos a despropósito, fica-se por uma formalização «homemade», de amador. Quando diz que o sistema de parentesco cria uma linguagem (p. 216), esquece-se de dizer quão complexa é a linguagem dos sistemas de parentescos europeus, e quanto mais ricas são as suas genealogias, que são entendidas como irrelevâncias.

 

A relação com a linguística é confusa, inábil, cheia de arrependimentos, em suma, não era tema que Lévi-Strauss dominasse bem ou usasse com lisura, usa a gíria linguística como uma forma de propulsão para outras análises (p. 216). Aqui Dosse pretende defender Lévi-Strauss por ter usado a equivocidade como forma de fazer ciência. Mas a equivocidade não é a marca de um cientista, é antes a marca de alguém que pretende obter poder. E mais uma vez se vê onde quer chegar Lévi-Strauss. Mais discreto, menos histriónico que os seus seguidores, teve o cuidado de deixar queimar os outros, e preservar-se a si. Mas esta estratégia nada tem a ver com a procura da verdade, mas de poder.

 

O próprio reconhece que se em 1960 a História e a antropologia se tinham aproximado, ambas procuravam capturar a atenção do público (p. 223). O projecto de poder encontra-se igualmente na sua tentativa de agregar si os sociólogos (p. 270), e os antropólogos africanistas (p. 313), mas também quando expulsa a equipa de semióticos de Greimas do Collège de France, porque não admitia concorrência (p. 373).

 

As contradicções não terminam por aqui. Pretende afastar o biológico da análise antropológica mas ao mesmo tempo diz que a emergência da cultura é um mistério do homem enquanto não conseguir determinar as mudanças biológicas da estrutura e funcionamento do cérebro (p. 222), e diz que é na fronteira entre a natureza e a cultura que prospera o estruturalismo (p. 276), e coloca o problema do cozido como ponto de encontro entre a cultura e a natureza (p. 299). Encontra a ordem num caos de mitos onde ninguém a tinha visto (p. 277), mas significativamente depois dele os pós-modernos recusam qualquer ordem; de tanto ter fustigado as ordens europeias, não podia espantar-se que viessem outros que quisessem acabar o seu trabalho de destruição. Ele julgava que seria soberano o suficiente para impor limites, mas não era de modo nenhum soberano. A sua visão pequeno burguesa nota-se na oposição que faz entre dois tipos de éticas: a ocidental, que respeita as medidas de segurança para se proteger enquanto indivíduo, e a das sociedades ditas primitivas, em que se respeitam as medidas de higiene para que os outros não sejam vítimas da nossa impureza (p. 303). Vê-se facilmente que nunca aprendeu uma ética aristocrática, está a usar o pequeno burguês como símbolo do ocidental.

 

O rol de disparates e enviesamentos não acaba por aqui. Rosseau é dado como mestre do pensamento científico (p. 305). O paralelo entre a tetralogia das «Mitologias» de Lévi-Strauss e a de Wagner é significativa (p. 305), mostrando como o judeu assimilado procura assimilar-se ao gigante Wagner. Preocupado em desvalorizar tudo o que pode fundar a Europa, diz que o milagre grego nada mais é que uma simples ocorrência histórica, que nada mais significa que o facto de se ter produzido onde se produziu (p. 309); é significativo que diga isto e ao mesmo tempo estabeleça proibições: não se deve falar sobre as origens. É neste esquecimento imposto que se funda o pensamento contemporâneo. Proibição de referir as origens equívoca e suspeita, é evidente. Esquecer as origens violentas das sociedades, incluindo as primevas, ou esquecer as origens imperialistas da própria antropologia (ver p. 440)?

 

Com toda a alegria Domenach diz que Lévi-Strauss participa da destruição (p. 310). E diz-se que é exemplo do pessimismo mais profundo (p. 418). Sabe que vem do nada e está apenas a preparar o nada. É pessimista? Tem toda a razão de o ser: quanto a si mesmo. Melhor saberá porque acha o mundo feio. Num fase posterior Lévi-Strauss defende aparentemente tudo o contrário , mas continua a usar o termo de estruturalista. Entendamo-nos: mudar de opinião em si não é problema. O problema está quando a etiqueta não muda, como se houvesse uma continuidade de projecto e se defende tudo o contrário do que se defendeu até então. Ele que pretendia um modelo cultural livre da biologia, afinal parece participar da era da suspeição (?) que pretende sair da dicotomia tradicional entre cultura e natureza (DOSSE, François, Histoire du Structuralisme, Tome II, Le Chant du Cygne, 1967 à nos Jours, Éditions la Découverte, Paris, 2012, p. 43), e encontra uma reconciliação entre a natureza a cultura (p. 257).

Vejamos as invariantes do seu pensamento. Não são o estruturalismo porque notoriamente usa este nome para dizer uma coisa e o seu contrário. Mas são outras matérias: o materialismo, a vontade de poder, e o ressentimento em relação à Europa. São estes os três traços comuns do seu pensamento. Em 1967 vê-se a sua vontade de poder, querendo marginalizar os filósofos em relação aos antropólogos (p. 256). A antropologia foi uma forma de dar escoamento ao funcionários tornados caducos pelo fim do colonialismo (p. 258). Os seus combates anti-colonialistas (p. 412) são uma forma de dar ocupação, objectivamente e independentemente das intenções, aos antigos funcionários coloniais (pergunta-se aliás a que titulo Lévi-Strauss tem legitimidade para fazer parte de movimentos anticolonialistas, mistura de géneros entre cientista e cidadão que só gera equívocos no seu caso.).

 

Quando Dan Sperber diz que Lévi-Strauss reuniu a antropologia enquanto ciência geral e etnologia (descritiva) (p. 27), tem só em parte razão. Esquece Mauss e a escola alemã e britânica da antropologia (o conceito de «savage thought» é inglês como Hartland mostra). Mas esquece-se igualmente que a reunião permite a concentração de poder igualmente, independentemente do que tenha sido a sua intenção. O seu anti-humanismo teórico mantém-se como constante na sua vida até ao fim, mas agora parece que privilegia as diferenças em vez do universal, e o único universalismo que aceita é o da identidade biopsicológica da espécie humana (p. 466). O seu projecto de poder do domínio da linguística desde que nas mãos dos antropólogos (pp. 227-228). Participava de uma ilusão cientista (p. 233). Embora o seu modelo de parentesco funcione de modo pertinente (p. 233, mal-grado não ser referida a importância de André Weil para a construção deste modelo).

 

Um dos seus elementos de continuidade entre o primeiro e o segundo Lévi-Strauss é a sua fidelidade a um anti-humanismo (p. 465). Mas quando se diz que faz prevalecer o enraizamento em vez da universalidade (p. 466). Nisto ficou aquém da sua análise. O enraizamento que admite é só o dos outros, e o dos primitivos, e tentou impor um formalismo que pretendeu ser universal. A ideia de estruturalismo sofre um deslize porque passa de uma forma de dar sentido para estar ínsita na própria natureza na segunda fase do pensamento de Lévi-Strauss (p. 463). Para ele a chave do problema são os neurologistas (p. 463). O sujeito volta, mas sob a forma de cérebro. Tudo o que pode fazer para salvar o suposto estruturalismo revela apenas o que para ele é o essencial. Um materialismo como mera negação de um património anterior, a recusa de uma hierarquia, salvo a que eleve as culturas não europeias. Até o sujeito admite, o sujeito no que tem de mais básico, na sua neurologia, desde que o homem europeu não seja, não tenha valor, seja só motivo de fruição para si (o «si» aqui é Lévi-Strauss, que pode ouvir Bach, não os europeus em geral, que não são merecedores disso), mas não como paradigma para os outros; postula um isomorfismo entre os processos físico-químicos e os do espírito (p. 463), em parentesco não assumido com o psicoide de Jung.

 

Um mérito tem de se lhe reconhecer. É um mestre do glissando: deixa os seus esbirros berrarem e queimarem-se, enquanto ele passa delicadamente pela tormenta, incólume, como se fosse o único que desde a origem tivesse tido razão e não, como era, a origem da irrazão. Olímpico para as classes populares, é-o só para elas. Talleyrand de baixo coturno, tendo aprendido a elegância em livros e não em família, quis-se árbitro dos gostos . Mestre do glissando, deixa os berros aos seus esbirros, que se queimam enquanto ele vive num Olimpo de papel por lhe faltar o feito de carne, sangue e linhagem. Lévi-Strauss precisou dos seus Fouché como utilidades dispensáveis. Mas nunca lhe coube ser o vício apoiado no crime, não lhe tinha o nascimento, não vinha de alturas para ser decadente. Foi apenas o embuste apoiado na farsa.

 

ABV

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