Exigência e admiração
Os romanos, povo muito mais sábio do que os ignorantes das suas obras possam alvitrar, tinham por regra retórica a admiração do inimigo. Repare-se que a natureza retórica da regra não abala em nada a sua sinceridade. Aníbal é celebrado, tanto quanto o Vercingetórix de César, os germanos de Tácito, ou António por Augusto. A lógica era simples e em boa verdade muito coerente: vencer um inimigo desprezível não tem glória nenhuma. Daí que fizesse todo o sentido enaltecer o inimigo, reconhecer-lhe as qualidades em toda a sua extensão.
Goethe, distribuidor de desprezo por excelência, admirava três homens que pouco tinham a ver com ele: Schiller, Byron e Napoleão. Esteticamente, ideologicamente, politicamente, em pouco coincidiam com a sua posição na vida. Mas Goethe fazia ponto de honra em os admirar.
Crasso, Lépido, Schindler, Catilina, entre tantos outros, com maior ou menor justiça, são exemplos de desprezados, por apenas gostarem do dinheiro, por quererem parasitar a glória alheia, por se terem atrevido pisar na sombra de grandes figuras.
Nesta matéria não há que optar pelo meio termo, entre a admiração e o desprezo, só porque o meio termo seria a virtude. Mas dá-se o caso de o admirável e o desprezível, embora em graus diversos consoante as épocas e as culturas, obedecer com frequência a uma distribuição normal, o que significa que o que é sumamente admirável é pelo menos tão raro quanto o que é baixamente desprezível. A maior parte das coisas, só pelo que elas são e não pelo facto de serem, merecem apenas a nossa indiferença, ou quando muito um mero respeito jurídico.
Esta é uma situação curiosa em que se tem razão tendo ou não. Porque ou, havendo tantos desprezadores sem razão, o simples facto de haver tantos sem razão é já de si desprezível, ou então têm razão simplesmente, mas é bem provável que o sentimento que espalham lhes seja aplicável.
Para quem queira ver exagero nesta análise basta ver o que sobra para a admiração inequívoca. Tente o leitor descobrir uma pessoa, uma instituição, que não tenha sido objecto de crítica ou desprezo. Os ridículos e os defeitos dos grandes homens de todas as épocas eram conhecidos e referidos. Os excessos de Alexandre, os desvarios de César e António, a duplicidade dos dois Frederico II (de Hohenstaufen e da Prússia), a ninfomania de Catarina a Grande, a avidez de Luís XIV. E no entanto, a sua grandeza nunca foi posta em causa.
Hoje em dia escolhem-se à pressa intocáveis, mas acabam por ser efémeros sempre. Os jornalistas, grandes heróis impolutos há uns anos, por oposição aos políticos, perderam a credibilidade. Os beneméritos, os actores das organizações não governamentais são desacreditados por várias vias. Desvio de fundos umas vezes, outras por se descobrir que são pacifistas financiados por países da Cortina de Ferro, ecologistas que se associam a partidos comunistas, os menos ecológicos de todos, extrema esquerda aparentemente generosa, mas tudo menos democrática.
Hoje em dia o vulgo compraze-se em ver o desprezível em tudo exactamente porque este quase saiu da boca do mundo. Mais uma vez, a procura de povoar o espaço público apenas de bons sentimentos gera um forte preço a pagar. Sempre que o “mau” sentimento sai da boca esconde-se no coração. Embora a linguagem oficial recuse o desprezo – sobretudo estamos proibidos, em nome do respeito por todos as culturas, de desprezar oficialmente o que mais o merece – e em parte por isso mesmo, as entrelinhas estão dele cheias.
A origem da palavra é algo polémica. Uns ligam-se a raízes indo-europeias que significam sorriso, embora seja mais certo ligá-la a palavras que significam espanto, surpresa, contemplação. Admirar significa ir algures para ver. Merece o nosso esforço ir ver. Admirar significa estar disponível para fazer um esforço. Por isso as supostas admirações turísticas que hoje em dia vemos, que se reduzem a declarações genéricas de admiração por culturas ou personagens que nunca se estudaram, nem se fez um mínimo esforço de conhecer, nada valem. São meras afirmações enfáticas, pacificadoras, auto-defensivas.
A questão é a de saber que peregrinações a nossa época está disposta a fazer. Para onde pretendem os europeus fazer um esforço para poderem ver, contemplar, espantar-se, admirar-se? Uma das vias, ainda e mais uma vez meramente turística, é a dos exotismos de pacotilha. Procuram em culturas exóticas, em religiões exóticas, a redenção. Budismos e Islão, Turquia e China. Outra via, clandestina, sorrateira, mas cada vez mais forte, é a do agastamento dos movimentos identitários. Ora nacionais, ora regionais, ora no plano europeu. Esta a força que mais intensamente cresce nos nossos anos. Exactamente porque tem o sabor da clandestinidade, do perigo, portanto, da sinceridade.
Mas em bom rigor, a nossa época oficialmente abomina a peregrinação. Dedica-se mais, como herdeira de um cristianismo liofilizado e pronto a consumir, a converter outros povos à democracia e à Europa. Os tontos mais ou menos bem intencionados, mas que postos a nu mostram a sua profunda irritação e ressabiamento, dedicam-se a converter a Turquia à Europa, ou Marrocos. Um dia o Kazakistão, ou o Uzbequistão.
Uma época que não peregrina, ou seja, não tem força suficiente da sua identidade para se fazer estrangeira a si mesma, que não faz esforço para sair de si e pôr-se em caminho para admirar é apenas uma época pouco exigente. Porque exímia a perdoar, apenas para não ser condenada, feliz em conciliar, apenas porque impotente para o confronto, transforma a vida num exercício de auto-justificação permanente. Não exige de si mesma, é provinciana, timorata. Se não admira é porque é pouco exigente, se despreza é porque se satisfaz com pouco. O desprezo, salutar exercício de juízo, passa a ser álibi rotineiro que apenas procura a absolvição.
São pouco exigentes consigo os que sabem ter pouco para dar. Tornam-se pouco exigentes com os outros porque têm medo que lhes seja pedido em troca. E se não admiram é porque apenas encontram paz pensando que os outros são tão irrelevantes quanto eles.