quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A questão judaica II

Isto foi possível não por força judaica. É a própria sociedade cristã que tinha retirado virulência ao cristianismo, tinha-se vacinado contra ele, ou seja, tinha-se reinoculado dele em versão adormecida. Foi sobre este auto-enfraquecimento do cristianismo que puderam os judeus trabalhar.

O cristianismo foi assim transformado numa mera ética e estética, neutralizado enquanto religião, para poder ser objecto de fruição e mesmo idolatria. O problema é que a ética e estética não se sustentam por si mesmas. Quando o cristianismo deixa de ser visto como religião, e apenas é consumido pelos seus frutos, perde o seu poder protector a longo prazo. A ênfase nas catedrais, na glória de Bach, no Estado de Direito assente na dignidade da pessoa humana é apenas uma compensação para a fraqueza da fonte, quando recusada.

É o que ensina a quarta verificação. Quais os casos de maior sucesso desta integração? Em que casos a integração dos judeus ocorreu com maior força, maior brilho, maior êxito? Podíamos dar o caso francês. É verdade. Mas em França os judeus têm apesar de tudo um papel menor. A cultura em que os judeus apareceram com maior brilho, como maiores paladinos da cultura e da sociedade é a das sociedades germânicas. Precisamente, entre as duas Guerras Mundiais.

E vimos no que deu esse sucesso. A ideia de assimilação à francesa mitificando a separação entre o homem público e privado não foi tão gloriosa quanto a ideia de germanidade absoluta incarnada pelos judeus alemães e austríacos. Nenhum mais pode oferecer Mendelssohn, Einstein, Stefan Zweig e quejandos, senão o espaço alemão.

O maior caso de sucesso acaba no genocídio. O segundo maior caso, o francês, acaba em Vichy.

Que nos diz isso sobre a ideia de assimilação, de integração enfática, intensificada?

Não vou falar das sociedades multiculturais. Estas são estéreis culturalmente (salvo se o leitor me indicar um grande físico sassânida, um grande matemático turco, ou um grande sinfonista árabe). Mas de entre as modalidades de integração, a mais intensa, a mais bem sucedida, deu o resultado que se viu.

Que ensinamento retirar disto? Talvez a de que a integração jurídica, cultural, estética, ética, todas as formas de integração no seu grau enfático maior, resultam num genocídio. Foi a sua ênfase, a sua glória, que mais facilmente os tornou alvo de perseguição. Não o seu sucesso propriamente tido, mas o sucesso com que se integraram.

Vejamos o exemplo oposto. Ou melhor, dois. Um é mais anedótico. Descobri há poucos anos (não sou especialista em História de Portugal) que Lisboa no século XVI teria tido uma forte população negra. Séculos depois não há rasto dela, nem de perseguição a uma comunidade negra. Porque pura e simplesmente ela não existia. Evaporaram-se? Atrevo-me a uma hipótese. Passaram-se dois fenómenos. Misturaram-se geneticamente e converteram-se ao cristianismo.

O caso romano é também significativo. Quem estudou História sabe os sentimentos ambivalentes que nos dá a História das invasões bárbaras. Somos herdeiros de Roma e sentimos o peso da queda do império. Mas somos herdeiros de bárbaros, e não os conseguimos odiar. Não queremos a derrota nem de troianos nem de gregos porque nos sabemos filhos de ambos. A Europa oscilou entre a idolatria e o desprezo do sangue bárbaro, e foi a mesma Europa que usa «bárbaro» como insulto que elogia os reis pelas suas origens francas, góticas ou dinamarquesas.

Somos ambos geneticamente, e partilhamos de ambos a religião que acabaram por ter.

Hoje em dia quem distingue o descendente de celta, do germânico, do hispano-romano, ou do arménio? Impossível. Somo-lo todos. No longo prazo um mesmo duplo fenómeno contribuiu para uma só etnia: a mistura das etnias, mistura de sangues, sexual, carnal, associada à conversão.

Esta referência pode parecer erudita e inepta sob o ponto de vista político. Mas basta pensar que em boa parte do século XIX em França se tentou impor a tese de que o povo era celta dominado por uma aristocracia germânica, tese republicana por excelência. A tese falhou. E falhou bem mais que sob o ponto de vista científico. Nunca teve apelo geral para as massas. Da mesma forma, os negros quinhentistas de Lisboa desapareceram da nossa vista pela simples razão de que se fundiram com a restante população.

O caso judaico é significativo sob o ponto de vista civilizacional. Enquanto na Europa a única minoria eram os judeus, estes tornaram-se a minoria mimada, e puderam ser testados os modelos de solução mais variados. Como experimento foi útil, ou melhor, teria sido se tivéssemos aprendido alguma coisa com ele.

Perante as minorias muçulmanas na Europa, todas as soluções supostamente modernas falham, e são frequentemente as pessoas de origem judaica em França que mais apelam para o modelo da assimilação, para o laicismo, para a separação entre espaço público e privado. Tanto mais o fazem, mais se verifica que o mais comum é terem uma especial fidelidade a Israel, o que é legítimo, mas mostra que a dupla pertença é sempre condicional. Esquecem-se, por outro lado, de dar o exemplo alemão de entre guerras como o de mais sucesso e de mais desastrosos resultados. Ainda mais intensificam, mais enfatizam a natureza meramente estética e ética do cristianismo, exigindo uma adesão a um património cultural na sua versão adulterada, liofilizada, tornado religiosamente inerte.

Vinho novo em odres velhos, antigas soluções para problema novo na sua dimensão e contornos. Se tudo falhou até ao momento não é a intensificação que dá remédio. A intensificação apenas denota o desespero de quem a propagandeia. Não é o laicismo que tem de ser intensificado, a estética e a ética enfatizadas, ao contrário do que faz o mundo moderno. Mas perceber que uma civilização é assunto sério demais para ficar por tratados e manuais, ideias ou pior ainda máximas portáteis. Uma civilização é algo que nos penetra a carne, que faz dela parte integrante. Não se admire pois quem dela quer fazer mero letreiro que não sirva de guião.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

 

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quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

A questão judaica I

No século XIX e até à II Guerra Mundial ainda era perfeitamente respeitável falar da questão judaica. Autores insuspeitos como Marx dedicaram-se a ela. As teorias abundaram, mais ou menos bem-intencionadas, mais ou menos simplistas. É facto trivial que assim seja, e não nos pode fazer espantar.

A questão é que depois da II Guerra Mundial, ou mais precisamente na percepção do grande público, desde os anos de 1970, tornou-se impossível discutir a questão judaica sem ser acusado de defensor do sionismo ou de anti-semita.

O resultado é que os sentimentos ficam subterrâneos e, bons ou maus, revelam-se de forma ínvia. Os ditos intelectuais de origem judaica dizem que não é muito bonito matar pessoas mas que foram os palestinos quem começou (é o argumento clássico da vingança) os bem pensantes anti-semitas choram apenas pelo sofrimento dos palestinos e vêem semelhanças entre o Estado de Israel e o nazismo. Toynbee, de entre os mais prestigiados, foi dos primeiros a fazer este aparelho.

Já em tempos disse que o problema não é terem uns razão e outros não. O problema é terem todos razão. Quem se vinga tem sempre razão, o que não percebe é que entra num ciclo infinito de vinganças. Kadaré e Girard viram bem isso.

A questão judaica parece que desapareceu da Europa, mas em boa verdade trata-se de um tabu religioso. Todas as épocas criaram tabus e a nossa, que gosta de se ver como racional, é apenas por isso apenas mais cega às suas irracionalidades, salvo as oficiais. Criaram-se como campo da irracionalidade zonas especializadas como o sexo e a morte, os velhos «eros» e «tanathos» (dito em grego parece sempre mais científico), e ficamos mais descansados, porque nos restantes campos parece não existir irracionalidade.

Será assim? Não sejamos ingénuos. Não é. A nossa época lida muito mal com a (ir)racionalidade e prova disso é impor no espaço público o insulto e a indignação. Duas formas de ódio, dois prolegómenos da vingança.

A questão judaica é instrutiva para a Europa num outro sentido muito diverso. O do problema de integração. Os judeus foram as principais cobaias da integração na História recente, e dão-nos fortes ensinamentos na matéria.

Sempre que surgem populações de etnias diversas, surge o problema da sua integração. Os romanos, que não eram tontos, usaram medidas muito sábias e muito brutas na matéria. A primeira foi o morticínio. Pensa-se que na Gália foram mortos um milhão de gauleses com a conquista de César numa população total de doze milhões de pessoas. Os números estarão sempre sujeitos a cautela, mas bastam-nos para os efeitos que nos interessam.

Um dos primeiros passos para a integração é muito simples: matar. Assim de esgotam as forças do potencial inimigo.

Outro passo é o de federar. Foi o que os romanos fizeram com várias tribos bárbaras ao longo de suas fronteiras.

Mas, num e noutro caso, seguiu-se uma política não menos consciente de romanização. Ou seja, proibição de cultos considerados perigosos (a dita tolerância pagã teve sempre limites), como se viu com a perseguição aos druidas e aos sacrifícios humanos. Imposição da língua, do direito, de estruturas municipais romanas, sincretismo de deuses (a boa teocrasia, para falar eruditamente), a boa da interpretatio

 

Em suma, recebe-se, a bem ou mal, e de seguida romaniza-se. Se esquecermos a parte oriental do Império, em que o processo obedeceu a diversas categorias, são estes os passos com as culturas consideradas menos civilizadas.

Ora, foi este o processo que se operou em relação aos judeus, mostrando que na Europa estes eram considerados menos civilizados. Uns mortos, outros aceites, por vezes segregados. Mas o período de emancipação judaica, basicamente a partir de meados do século XVIII, e ao longo de todo o século XIX, é um período de europeização dos judeus. A Europa não recebe rituais judaicos, os judeus abriram-se, ou são obrigados a aprender a cultura europeia.

Primeira verificação, ao contrário do que muitas vezes se pretende, os judeus eram considerados um sub-proletariado subdesenvolvido de cultura inferior. Não foi o Talmude que se impôs na Europa, mas os judeus que tiveram de aprender a matemática, a física, a análise musical, a filosofia europeias. Até ao fim do século XVIII, se retirarmos Espinosa e folclóricas referências a Maimónides, o pensamento judeu, as empresas de judeus e políticos judeus são coisas que não têm grande relevância na Europa. É com Lessing que se começam a ver judeus ilustres na cultura.

A segunda verificação a que somos forçados é que esta emancipação não decorreu de um movimento de revolta dos judeus na Europa, que teriam lutado pelos seus direitos. Os judeus eram numericamente irrelevantes, sem poder económico, cultural ou político. A emancipação dos judeus decorre de iniciativa cristã, decorre da generosidade dos cristãos. Não é bonito dizê-lo hoje em dia, mas tenhamos coragem de ver os factos. Nada obrigava o pensamento das Luzes a pensar numa emancipação judaica. Os judeus não tinham força para a impor. Foi um acto de generosidade.

A terceira verificação é bem mais dura. Como se passou esta «romanização» dos judeus? A verdade é que a sociedade com que se depararam era cristã. No século XIX não havia dúvidas sobre a natureza cristã da civilização europeia. Nem Bauer nem Marx a põem em causa. Como se aculturar numa civilização cristã quando não se é cristão, quando nos definimos precisamente por não ser cristãos?

A verdade é que encontramos entre as pessoas de origem judaica os maiores entusiastas pelo gótico, pela música sacra europeia, por Bach e… lembremo-lo sem medo, por Wagner. Os maiores apaixonados da cultura alemã e francesa encontramo-los muitas vezes entre judeus. Mas o paradoxo é evidente. Como nos podemos apaixonar por uma cultura cristã, ser os seus maiores arautos, e ao mesmo tempo recusar a religião? A solução foi simples e dupla ao mesmo tempo. A metamorfose e a ênfase.

O cristianismo é transformado em fenómeno meramente ético e estético. Se é o Estado cristão, em nome de princípios cristãos (como o Estado prussiano e outros tantos alemães directamente), mesmo que em sucedâneo na forma de princípios liberais, que nos dá liberdade e igualdade, o Estado e a sociedade cristãos são válidos enquanto ética. Da mesma forma, se o cristianismo fez tais obas de cultura, é acolhido enquanto estética.

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