A questão judaica II
Isto foi possível não por
força judaica. É a própria sociedade cristã que tinha retirado virulência ao cristianismo,
tinha-se vacinado contra ele, ou seja, tinha-se reinoculado dele em versão
adormecida. Foi sobre este auto-enfraquecimento do cristianismo que puderam os
judeus trabalhar.
O cristianismo foi assim transformado
numa mera ética e estética, neutralizado
enquanto religião, para poder ser objecto de fruição e mesmo idolatria. O
problema é que a ética e estética não se sustentam por si mesmas. Quando o cristianismo
deixa de ser visto como religião, e apenas é consumido pelos seus frutos, perde
o seu poder protector a longo prazo. A ênfase nas catedrais, na glória de Bach,
no Estado de Direito assente na dignidade da pessoa humana é apenas uma compensação
para a fraqueza da fonte, quando recusada.
É o que ensina a quarta verificação.
Quais os casos de maior sucesso desta integração? Em que casos a integração dos
judeus ocorreu com maior força, maior brilho, maior êxito? Podíamos dar o caso
francês. É verdade. Mas em França os judeus têm apesar de tudo um papel menor.
A cultura em que os judeus apareceram com maior brilho, como maiores paladinos
da cultura e da sociedade é a das sociedades germânicas. Precisamente, entre as
duas Guerras Mundiais.
E vimos no que deu esse
sucesso. A ideia de assimilação à francesa mitificando a separação entre o homem
público e privado não foi tão gloriosa quanto a ideia de germanidade absoluta incarnada
pelos judeus alemães e austríacos. Nenhum mais pode oferecer Mendelssohn, Einstein,
Stefan Zweig e quejandos, senão o espaço alemão.
O
maior caso de sucesso acaba no genocídio. O segundo maior caso, o
francês, acaba em Vichy.
Que nos diz isso sobre a
ideia de assimilação, de integração enfática, intensificada?
Não vou falar das sociedades
multiculturais. Estas são estéreis culturalmente (salvo se o leitor me indicar
um grande físico sassânida, um grande matemático turco, ou um grande sinfonista
árabe). Mas de entre as modalidades de integração, a mais intensa, a mais bem
sucedida, deu o resultado que se viu.
Que ensinamento retirar
disto? Talvez a de que a integração jurídica, cultural, estética, ética, todas
as formas de integração no seu grau enfático maior, resultam num genocídio. Foi
a sua ênfase, a sua glória, que mais facilmente os tornou alvo de perseguição.
Não o seu sucesso propriamente tido, mas o sucesso com que se integraram.
Vejamos o exemplo oposto.
Ou melhor, dois. Um é mais anedótico. Descobri há poucos anos (não sou especialista
em História de Portugal) que Lisboa no século XVI teria tido uma forte
população negra. Séculos depois não há rasto dela, nem de perseguição a uma comunidade
negra. Porque pura e simplesmente ela não existia. Evaporaram-se? Atrevo-me a
uma hipótese. Passaram-se dois fenómenos. Misturaram-se geneticamente e converteram-se
ao cristianismo.
O caso romano é também significativo.
Quem estudou História sabe os sentimentos ambivalentes que nos dá a História das
invasões bárbaras. Somos herdeiros de Roma e sentimos o peso da queda do império.
Mas somos herdeiros de bárbaros, e não os conseguimos odiar. Não queremos a derrota
nem de troianos nem de gregos porque nos sabemos filhos de ambos. A Europa oscilou
entre a idolatria e o desprezo do sangue bárbaro, e foi a mesma Europa que usa «bárbaro»
como insulto que elogia os reis pelas suas origens francas, góticas ou
dinamarquesas.
Somos ambos geneticamente,
e partilhamos de ambos a religião que acabaram por ter.
Hoje em dia quem distingue
o descendente de celta, do germânico, do hispano-romano, ou do arménio?
Impossível. Somo-lo todos. No longo prazo um mesmo duplo fenómeno contribuiu para
uma só etnia: a mistura das etnias, mistura de sangues, sexual, carnal, associada
à conversão.
Esta referência pode
parecer erudita e inepta sob o ponto de vista político. Mas basta pensar que em
boa parte do século XIX em França se tentou impor a tese de que o povo era
celta dominado por uma aristocracia germânica, tese republicana por excelência.
A tese falhou. E falhou bem mais que sob o ponto de vista científico. Nunca
teve apelo geral para as massas. Da mesma forma, os negros quinhentistas de
Lisboa desapareceram da nossa vista pela simples razão de que se fundiram com a
restante população.
O caso judaico é
significativo sob o ponto de vista civilizacional. Enquanto na Europa a única
minoria eram os judeus, estes tornaram-se a minoria mimada, e puderam ser
testados os modelos de solução mais variados. Como experimento foi útil, ou
melhor, teria sido se tivéssemos aprendido alguma coisa com ele.
Perante as minorias
muçulmanas na Europa, todas as soluções supostamente modernas falham, e são frequentemente
as pessoas de origem judaica em França que mais apelam para o modelo da assimilação,
para o laicismo, para a separação entre espaço público e privado. Tanto mais o
fazem, mais se verifica que o mais comum é terem uma especial fidelidade a Israel,
o que é legítimo, mas mostra que a dupla pertença é sempre condicional. Esquecem-se,
por outro lado, de dar o exemplo alemão de entre guerras como o de mais sucesso
e de mais desastrosos resultados. Ainda mais intensificam, mais enfatizam a
natureza meramente estética e ética do cristianismo, exigindo uma adesão a um património
cultural na sua versão adulterada, liofilizada, tornado religiosamente inerte.
Vinho novo em odres
velhos, antigas soluções para problema novo na sua dimensão e contornos. Se
tudo falhou até ao momento não é a intensificação que dá remédio. A intensificação
apenas denota o desespero de quem a propagandeia. Não é o laicismo que tem de
ser intensificado, a estética e a ética enfatizadas, ao contrário do que faz o
mundo moderno. Mas perceber que uma civilização é assunto sério demais para
ficar por tratados e manuais, ideias ou pior ainda máximas portáteis. Uma civilização
é algo que nos penetra a carne, que faz dela parte integrante. Não se admire
pois quem dela quer fazer mero letreiro que não sirva de guião.
Alexandre Brandão da
Veiga
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