Não dispondo dos dotes literários do Manuel S. Lourenço ouso, todavia, elevar este comentário em resposta ao seu último «post» sobre o mesmo tema, a igual dignidade, dado o lapso de tempo e de outros «posts» entretanto passados, com a esperança de ser para o bem da Filosofia e a refutação da Vontade.
1- Vontade, Acção e Pensamento
A acção visa sempre a um fim, sendo esse mesmo fim a realização dos princípios, da Sabedoria (saber da verdade), Justiça e Liberdade. Composta de actos, é acção sempre ordenada pensamento, pensamento dos princípios, do logos, apresentando-se pelos conceitos, articulando-se nas ciências e afirmando-se nos actos como o que há de significativo na acção e a ordena.
A Vontade não entra aqui em parte nenhuma não faz falta alguma. Por isto mesmo, a dificuldade de entender o que o Manuel S. Lourenço quer dizer com «...tanto é «Vontade» ter fé como não ter». A fé não está dependente da vontade mas do pensamento. É o pensamento que conduz, necessariamente, à fé, não a vontade. Afirmação algo controvertida, mesmo na Hierarquia, mas nem por isso a reputamos menos certa.
Pode-se recusar o pensamento e, por consequência, a fé. Todavia, não se vislumbra porque afirma exigir esse passo «um estoicismo superior ao da adesão a qualquer protectora e consoladora eclésia».
Cremos, antes mais, encontrar-se o termo «estoicismo», por lapso, em lugar de heroicidade _ ou a frase não faria sentido. Mas ultrapassado esse pequeno percalço, não se compreende quanto justifica tal afirmação. Em primeiro lugar, porque a fé não implica, necessariamente, qualquer adesão a qualquer eclésia. Em segundo, porque, escrever «protectora e consoladora eclésia» é estar, logo à partida e sem prova, iludido por pressupostos sem garantia: protectora, tendencialmente o será, qualquer eclésia, num certo sentido; mas, consoladora, de per si, nunca necessariamente. Em terceiro, a recusa da fé não implica necessária queda numa inexorável e irremissível solidão (a menos, claro, quando se subentende encontrar-se dado como certo e garantido isso mesmo que, pela recusa da fé, concomitantemente se recusa). Em quarto, menos ainda se compreende essa inexorável queda na «irremediável solidão» causada pela recusa da fé quando essa mesma recusa não deixa de poder significar simples adesão aos doces braços de qualquer protectora e consoladora ninfa do Tejo, tão ou mais protectora e consoladora quanto qualquer eclésia. Por último, de algum modo, não é o homem, por natureza um ser solitário? Porquê essa súbita superlativa valorização da solidão?
2 – Do Apelo à Eternidade da Verdade, do Bem e do Belo.
As maiúsculas são, em convicta penitência se confessa, breve concessão aos nossos Germânicos amigos. Se alguma coisa há a conceder aos Imperadores da Europa, que seja isso e não mais do que isso.
Diria a filosofia analítica que a asserção é destituída de sentido? Embora nunca nos haja ocorrido preocupar-nos com o que a filosofia analítica entende seja do que for e esperança tendo de tal nunca vir a suceder, sem dificuldade admitimos ser a expressão destituída de sentido. Mas o que é a filosofia analítica, é filosofia, sequer? O que é a filosofia? O amor da sabedoria, como diz a própria expressão? E não é a sabedoria (não confundir com conhecimento) sempre sabedoria ou saber da verdade? Ora, não podendo a filosofia analítica aceitar a «verdade», por destituída de sentido também, poderá ainda considerar-se filosofia a filosofia analítica?
Claro, poder-se-á argumentar haver outras definições de «filosofia» de forma a devidamente encaixar a filosofia analítica. Como, por exemplo, seguindo Leibniz, a da indagação de porquê haver alguma coisa em vez de nada. Mas preocupará vez alguma à filosofia analítica o porquê de haver alguma coisa em vez de nada? Não é crível.
Tampouco aceitará a filosofia analítica que a intuição seja o análogo superior da sensação, como diria Aristóteles. Só aceita o sentido, quanto se sente ou passível é de aos sensos se referir e pelos sensos «provar». Em suma, só aceita o pensamento como adequação ao real, ou seja, que só é verdadeiro dizer isso que é quando isso que é, é e só pode ser isso que é (é verdadeiro dizer que uma árvore dá frutos quando essa mesma árvore dá frutos). Em termos aristotélicos, uma simples predicação acidental, o grau mais baixo e menos significativo (Segundos Analíticos) do juízo predicativo.
Como é evidente, depois de tudo isto, para além de não poder haver grande estima pela filosofia analítica, como o Iluminismo, o Positivismo, o Utilitarismo, o Pragmatismo, velho ou novo, Desconstrutivismo e tutti quanti, são de tão pouco serventia como, em essência, mais não representa e representam senão o repúdio e negação da própria filosofia. Ou seja, não vale mesmo a pena gastarmos mais cera com tão ruim defunto.
No que respeita à Academia, das duas uma, ou estamos a falar da verdadeira Academia, e tendo sido exactamente aí onde nasceu, não o apelo mas a Verdade, o Bem e o Belo como a mesma eternidade, e a afirmação não poderá estar correcta, ou estamos a falar disso que por aí anda usurpando tal designação, mais não sendo, no fundo, senão um completo vazio , e, nesse caso, a afirmação é irrelevante, ou melhor, é completamente irrelevante, diga essa suposta Academia o que disser. E quanto à ciência, nada aqui tendo a acrescentar ou a dizer, melhor será não a invocar e menos ainda convocá-la. Uma coisa é a Filosofia, outra, muito distinta, a Ciência (a moderna, evidentemente).
3 – Da Humanidade
Sorrio. Em primeiro lugar porque me faz lembrar o célebre dito de Joseph de Maistre: «A humanidade? Conheço russos, franceses, polacos ... mas a humanidade nunca tive o gosto de encontrar». Depois porque só ao reler citado suposto dilema, “o do vazio repugnar intrinsecamente à humanidade”, tive consciência dessa outra, bem mais comum e quotidiana acepção. De facto, mais por razões de facilidade, efeito e sugestão literária do que por rigor filosófico, ou fosse o que fosse, a palavra «humanidade» foi escrita na acepção de qualidade comum a todos os homens que faz com que os homens verdadeiramente homens sejam, ou seja, a capacidade de pensar, ou seja, o pensamento, ou seja, em mais simples, certa e rigorosa expressão, recompondo o original como deveria ter ficado desde início, leia-se, «o vazio repugna intrinsecamente ao pensamento». E repugna porque, se verdadeiramente fosse possível pensar o vazio, nesse mesmo momento, logo verdadeiramente o pensamento o pensasse, verdadeiramente o compreendesse, logo quedaria anulado. Simples impossibilidade lógica.
Enfim, desculpe-se e passe o lapso como inépcia de escrevinhador de segunda e critique-se, por favor, a partir de agora, no que houver e for criticável, com os devidos agradecimentos, a expressão reformulada não a original.
4 – Do Metrónomo de Königsberg
A afirmação segundo a qual “...onde se crê ter morrido Deus, morreu também o Homem, mais não restando senão a mais inclemente das barbáries”, não foi deduzida da afirmação de Dostoievsky segundo a qual “Se Deus não existe tudo é permitido”. Talvez o pudesse ter sido e seria até literariamente mais bonito e erudito. Mas não o foi. Foi apenas mera constatação de facto. Todavia, se a célebre frase de Dostoievsky, de algum modo o implica, sendo verdadeira, implica também, antes de mais e acima de tudo, como muito bem observou Camus, o absurdo, o mais completo e insustentável absurdo. E «nada valeria a pena», de facto.
Mas, claro, muito bem viu o e fez Manuel S. Lourenço, transferindo a questão para a Ética e a Moral. Respeitando a Ética ao indivíduo e a Moral (mores, costumes) a essa ficção, para usar a consagrada expressão de Pessoa, a que os modernos chamam abstrusamente «sociedade», fiquemo-nos pela primeira.
Infelizmente, de Kant a Comte, de Comte ao tão actual quanto hilariante Richard Dawkins, o tal do « The God Delusion», não fora cousa séria, as tentativas de constituição de uma Ética recusando em simultâneo qualquer transcendência, não só não redundaram no mais fundo fracasso como tiveram também, não poucas vezes, as mais trágicas consequências (não será também por isso que Heiddegger veio dizer, no crepúsculo dos seus dias, que «só um deus nos pode agora salvar?).
Limpar o pó ao Kant não parece justificar o esforço e a maçada. Melhor deixar ficar o Metrónomo de Königsber posto em sua paz e sossego. A limpar o pó, limpe-se a Platão, a Aristóteles, a Sto Agostinho, a Sto Anselmo, a S. Tomaz e, evidentemente, aos nossos, àqueles portugueses tão miserável e propositadamente esquecidos, repudiados e ignorados pela dita cultura nacional que tem tão pouco de uma como de outra, afinal, também a tal supracitada e usurpadora Academia.
Quanto ao mais, do «Imperativo» tratou já devidamente o Hegel e a Liberdade sem transcendência dá no que deu, ou seja, nas famigeradas marxistas «liberdades» de triste memória, entre outras
5 – «O homem só»
Escreve Manuel S. Lorenço, a finalizar o seu «post», querer fazer a devida vénia ao «homem só» que, sem outra esperança a de não ser o consolo da felicidade que decorre de olhar (e actuar) para todos os homens como seus iguais à luz da lei moral, ama «...o seu semelhante no que ele tem de único, / de insólito, de livre, de diferente...», citando Jorge de Sena.
Se bem interpretamos, o ponto decisivo, aqui, é o «sem outra esperança».
Podemos compreender intelectualmente uma afirmação como a citada mas, verdadeiramente, sem adesão de alma, se assim se pode dizer. Como deverá ter ficado já explícito, é difícil, senão impossível, conceber uma existência sem esperança alguma. Ou melhor, talvez possível seja concebê-lo, mas nunca como uma existência «feliz», na acepção afirmada. Aceitar-se-á como belo tropo literário mas pouco mais.
Ao contrário do aparente e mais comum entendimento, esperança não significa, não é sinónimo, de qualquer repouso no «consolo» de ter encontrado ou certeza de vir a encontrar. Esperança é tão só, se licita é tal expressão, saber sempre, a cada momento, em cada instante, haver sempre «mais mundos», «mundos» a pensar e, sem esperança, sem esperança alguma, mais não seria possível senão uma «estóica» e pura ataraxia, uma completa ausência de desejo e emoção, uma passividade absoluta, até perante a morte. O que significa também, de algum modo, indiferença absoluta perante a vida.
Não sei se essa ataraxia poderá ser entendida como heróica mas, seja como for, não se vê, assim, como Estóico, quem escreve como o Manuel S. Lourenço escreve e o que escreve. Na verdade, afigura-se estar muito mais próxima dos Hedonistas, eventualmente em posição gémea de um tão moderno como actual Michel Onfray, para quem a filosofia deve estar ao serviço de:«une bonne vie, une existence meilleure, un art du bonheur».
Nada de extraordinário. Um modo de ser, um modo de estar, como hoje se dirá, como outro qualquer, sem dramas nem patéticas falsas tragédias. Contudo, creio, importa saber onde estamos ou, como diriam os antigos, importa «conhecermo-nos a nós próprios», até para conhecermos as nossas diferenças. Só isso. Mas ainda assim, para isso, claro, importa a Filosofia, não a vontade. E sempre muito bem precavidos contra os prestígios da razão moderna.