quinta-feira, 29 de novembro de 2007

II. Nostalgia. Tarkovski

O louco da aldeia. Obcecado por uma ideia. Atravessar uma piscina de água sulfurada com uma vela acesa. A forma de salvar o mundo. É francamente a personagem mais antipática. Tende a ser demasiado enfática para o meu gosto, tem demasiado a marca de Tonino Guerra. Nada tenho com a artificialidade da arte, mas uma arte que se apresenta como uma dialéctica em que a artificialidade se pretende natural a cada momento, telúrica, simplista, não me convence. Se serve para alguma coisa é apenas como anunciador. Já não é pouco. Com ele começa-se a perceber que o filme não passa por contar uma história, mas é a antes o retrato de um sentimento. A dor pela morte da Mãe. Perder a Mãe não é uma tragédia, é mais que isso. É uma dissolução. Se o poeta russo é essa dor, o louco da aldeia fala dessa dor.

Falando torna-se inútil. Ou pelo menos impertinente. O que fez não tem saída, e acaba morrendo num sacrifício inútil, pomposo, desproporcionado, mal gerido, assíncrono. Imolado pelo fogo em espectáculo quase cómico, sem solenidade, desafinado. Uma caricatura da imolação do Cordeiro. O louco da aldeia anuncia soluções, mas afinal é parte do problema, da imensa fragmentação em que cai uma certa cultura sempre que quer ser sincera.

O poeta russo é a mais verdadeira das personagens. Embora caia por vezes na presunção da ignorância afirmando desconhecer respostas, o que é sempre pretensioso quando se toma a iniciativa de começar o diálogo, não vale pelo que diz, mas pelo que faz.

Teoricamente estaria a fazer a biografia de um compositor russo do século XVIII, servo de um senhor italiano, que ama uma serva russa que deixou no seu país. Mais uma história de fidelidade, é certo. Mas também de fragmentação. Tudo o que é sério, em suma religioso, está condenado à fragmentação neste filme.

O poeta russo tem uma tarefa. Fazer o que o louco não conseguiu. Atravessar a piscina. Vai fazê-lo. Com a água já em baixo; no entanto, com grande dificuldade. A vela acesa não está garantida. Hesita e volta para trás. E quando consegue fazê-lo ganha a sua redenção. Onde? Numa igreja de que sobra apenas o esqueleto, sem tecto, sem vidros. Tem o mérito de ter feito ao menos alguma coisa, e de ter ido ao essencial, mesmo se o vê descarnado.

Nostalgia não é apenas de um ente querido, é de um centro de sentido numa Rússia que é oficialmente ainda ateia. É já bem sabido que Tarkovski é um realizador religioso. Como se pode ser de forma tão intensa num país em que a religião foi tão reprimida. De certa maneira menos que na Europa ocidental, porque a violência é menos eficaz que o riso e a menorização.

Filme religioso, retrato de um sentimento, enunciado de fragmentações. O que Tarkovski não percebeu na íntegra, é que a criação pessoal de rituais deixa de lado a experiência secular da humanidade. É dar a cada um o papel de criador do início da humanidade. Nulla salus sine ecclesia. É pois exigir que cada um reconstrua o templo em três dias, o que só em engenharia seria obra fácil. Nostalgia é antes do mais por isso o filme que mostra a necessidade do ritual instituído. Apenas as mulheres que veneram a Virgem no início estão presente plenamente em espaço cheio, por mais que isso choque a nossa sensibilidade dita moderna. Mas se choca isso apenas quer dizer que somos puritanos. Que a carnalidade nos assusta, salvo se empacotada em formato industrial. E que é esse puritanismo que nos fragmenta. Tolda-nos a vista, rebaixa-nos o espírito e por isso não nos faz carne.






http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/

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