quarta-feira, 5 de agosto de 2015

O caso grego III


Falemos então de eficácia.

 

E também nesta matéria vejo alguns argumentos que me deixam perplexo.

«Vê-se que esta política não funciona, veja-se o estado da Grécia». Admito. Mas como argumento é incompleto e pouco rigoroso. Existe uma coisa em economia chamada mecanismos de transmissão. Quais são e quanto tempo duram a actuar no caso grego? Com que medida teriam de ser complementados caso fossem as medidas adequadas? Não posso dizer sem mais: este doente, desde que está fazer quimioterapia, está cada vez pior, sente-se cada vez mais mal disposto, logo, a quimioterapia não está a funcionar. Seria tão fácil dizer que sim, quanto é fácil dizer que não. Fundamentar é sempre mais difícil que aderir ou recusar.

Outro argumento é o do suposto keynesianismo. Pobre Keynes, para o que é usado. O problema é que este suposto keynesianismo viola os dois postulados keynesianos: o défice não é cíclico, compensado por superávites, mas o défice é constante; e desconheço como pode haver multiplicador numa economia aberta. Numa economia aberta apenas há dissipação. Que me lembre, o próprio Keynes terminou mercantilista, favorecendo a preferência imperial. Como todos, teve de fazer uma escolha. Para manter o multiplicador teve de sacrificar o livre comércio, como Einstein para preservar as belíssimas equações de Maxwell teve de sacrificar os referenciais absolutos no espaço-tempo. Nenhum dos dois era tonto e ambos sabiam que sempre que queremos preservar algo temos de fazer sacrifícios. Que majestoso «a contrario»…

Entendamo-nos. A situação da Grécia leva-a a carecer de ajuda europeia. A ajuda externa não se nega à partida, mas não se concede incondicionalmente. Mas se estivermos a falar entre adultos teremos de ver o que é essencial sob o ponto de vista de eficácia. E condição necessária, seja qual for o cenário (Aristóteles era grego afinal) é que os gregos façam por eles o que os outros não podem fazer.

A reforma das instituições é necessária. Em boa verdade, dizem outros, é preciso nuns casos reconstruir, noutros mesmo construir pela base as instituições. Concordo plenamente. Instituições públicas, mas também privadas, mudar leis, reconstruir organismos. Sem dúvida.

Mudar instituições é também mudar os casos clássicos de privilégios fiscais. Sem dúvida. Embora aqui tenhamos de pensar duas vezes. Os privilégios dos armadores, se forem na íntegra destruídos, podem levar a deslocalização da actividade económica. Uma taxa liberatória ou um sistema semelhante poderia ser pensado. Quanto aos privilégios da igreja ortodoxa temos de perceber que a História grega não é igual à do resto da Europa. No século XVI a Europa do Norte, no início do século XIX a Europa católica, destruíram o poder temporal da igreja, reduziram o seu património. A Áustria pós napoleónica poude ser mais josefina que José II. Napoleão deu-lhe essa possibilidade. Já a igreja ortodoxa grega tem um significado bem diverso para os gregos. Em quatrocentos anos de dominação turca foi a única instituição que tratou os gregos como seres humanos. Os gregos têm todas as razões para se sentirem gratos em relação a ela. E isso só mostra a sua dignidade. Mas têm de ser consequentes. Acho nobre que não queiram a fazer a igreja pagar. Mas então que paguem eles. Tiradas de nobreza com facturas mandadas a terceiros perdem algum do seu brilho, convenhamos. É uma escolha grega, em suma, não uma obrigação. Quando às forças armadas, haverá que distinguir o que são privilégios dos militares, do que é substancial esforço de defesa da Europa, apesar de tudo.

Mas a maior reforma a fazer na Grécia é de mentalidade. Séculos de falta de independência e de maus exemplos de governação (turca, mais uma vez) não deram à Grécia bons modelos de governação.

Resumamos tudo a uma só palavra. Complacência. Esse o pecado grego e o do Sul da Europa. Mais especificamente as cinco complacências mortais:

a)       Complacência em relação à corrupção;

b)      Complacência em relação à evasão fiscal;

c)      Complacência em relação ao tráfego de influências;

d)     Complacência em relação à mentira contabilística e organizacional;

e)      Complacência em relação à má qualidade de gestão, pública e privada.

O problema grego, como em geral o do Sul da Europa, é o da falta de exigência. Para consigo e para com outros. Não acuso todos os gregos, nem todos os europeus do sul disto. Sou do sul e não me considero culpado disto. Mas colectivamente os povos do sul, em graus diversos, vivem bem com estas pestes, estas maleitas públicas.

Tendo os povos do sul resolvido esta peste da complacência, muito mudaria nas suas condições económicas. Mas este é em primeiro lugar trabalho deles. Carecem de ajuda? Sem dúvida. Mereceram-na, será útil? Talvez nem tanto, enquanto não houver a certeza de que farão o trabalho de casa.

Significativo, sobretudo para quem tem o olhar de etólogo que vê os animais a comportar-se em conjunto, é a distância entre o discurso e a realidade. O discurso é tribunício, dos que choram com a humilhação de Grécia e a tratam como mera vítima. Vítima do mundo, das finanças, das elites, dos seus governos democraticamente eleitos, dos governos democraticamente eleitos de terceiros povos, dos turcos. O discurso de indignação é um discurso de ódio, já dizia a velha retórica clássica. Por isso bem se percebe que para quem discursa sobre a Grécia, a Grécia é um mero pretexto. Não é a Grécia que os preocupa, mas antes a demonização de terceiros. Os que dizem defender a Grécia usam-na apenas. Agradecem que esteja mal, que não resolva os seus problemas. Preferem aliás que não os resolva. O seu sofrimento serve-lhes de tópico argumentativo, não de preocupação. É odiar que os ocupa, a Grécia apenas rastilho desse ódio. Os que antes acusavam os gregos de serem contra os turcos, de terem uma igreja presente demais na sua vida política e social, de serem seguidores submissos da União Europeia, pretendem atirá-la como cão raivoso e ingrato aos seus vizinhos. Lacrimejam pelo que sempre desprezaram, invocando o que de mais falso existe quando exposto: os bons sentimentos. É o ódio que celebram, do ódio vivem. Se com isso a Grécia se queimar, não há para eles problema.

Significativo igualmente para quem se reclama de Nietzsche, sempre que quer ter brasões de pensamento, não perceber que representa o pensamento do escravo, do criado. A invocação do estatuto de vítima é tudo o que Nietzsche desprezava, e com alguma razão. Desprezou as vítimas, sempre. É a voz da copa que se ergue, entre os argumentos das capelistas e as empregadas de tabacaria que se pretendem deputadas. Em linguagem mais popular: sejam homenzinhos e não façam birra como crianças. Entre adultos ajudamo-nos. Perante a birra da criança, ignoramo-la.

A nossa época exige que se termine com uma declaração de simpatia. Não cumpro a exigência, apenas lembro alguma verdade. Os que se lembram de simpatizar agora com a Grécia, que estudem os Cídon, os Cabasilas, os Calecas, os Gregórios Palamas, os Andrónico Paleólogo, o Digenes Akritis, Miguel Psellos e tantos outros, como de há muitos anos faço. Que tenham tido alegria com a libertação grega, como a Alemanha do início do XIX fez, entre as jogadas estratégicas da Áustria, da Inglaterra e da França. Só depois se façam amigos dos gregos. Úteis como armas de arremesso, não é dos gregos que cuidam. Querem carne para canhão, e mais uma vez usam os gregos para essa tarefa. A diferença é que hoje em dia mudou o sítio que faz uso dos gregos como peão estratégico. Antes eram chancelarias, hoje são copas.

 
Alexandre Brandão da Veiga

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terça-feira, 4 de agosto de 2015

O caso grego II


A mais usual é a instância da legitimidade. A maior discussão centra-se na legitimidade que têm os gregos para exigiram novos perdões, são vítimas da finança internacional, das humilhações alemãs. Enfim, uma longa História de martírio e vitimização.

 

Que a discussão se centre na legitimidade explica-se por razões antropológicas. Se bem repararmos, a fauna que discute está banhada pela modernidade presente (há muitas modernidades). E esta modernidade caracteriza-se pela imensamente pobre teoria dos valores, pelo excesso de direito e pelo paradigma do adolescente vítima. Tudo é vítima, até os povos e os governos democraticamente eleitos.

A questão é que os gregos não têm qualquer legitimidade.

Em primeiro lugar, que me lembre, a dívida que fizeram foi criada por governos democraticamente eleitos. Não me lembro do dia em que os gregos, como aliás os restantes povos do Sul da Europa, tivessem recebido uma ameaça para fazerem mais dívida. Admitir que a sua dívida é ilegítima é afirmar que governos democraticamente eleitos são ilegítimos.

Em segundo lugar, o argumento é o de que os gregos foram vítimas da finança internacional, dos malandros dos bancos e das suas maldosas propostas de créditos. Este argumento em relação a simples particulares já merece algumas subtis distinções. Mas quando estamos a falar de Estados, que têm profissionais especializados a negociar dívida pública, parece-me que caem pela base. Se os bancos engaram os pobres funcionários gregos isso apenas quer dizer que mesmo as instituições de elite gregas são formadas por incompetentes que se deixam enganar na área da sua especialidade, a finança. Esse argumento apenas implicaria que o Estado grego precisaria de uma limpeza fortíssima. Se mesmo as suas elites são constituídas por incompetentes, carece de um saneamento enérgico. É o velho mito de que o soberano, no caso o povo, foi vítima de maus conselheiros. Mito da gleba, é bom de se ver.

Em terceiro lugar, teriam sido as elites as culpadas e não o povo grego. Mais uma vez, o que se pretende afirmar é que o povo grego votava, mas o poder político era uma brincadeira. A verdade é que o povo grego – e mais uma vez saliento, como a maioria dos povos do sul da Europa -, sufragou promessas eleitorais demagógicas, irrealistas, lesivas dos seus interesse de logo prazo. Um povo numa democracia é soberano, não é vítima.

De seguida vem um rol de inépcias da parte dos anti-europeístas, que de repente se lembram da grandeza e do sofrimento da Grécia. Cada um destes argumentos centrados na legitimidade cai pela sua inépcia.

Devemos aos gregos a democracia, uma imensa cultura… este argumento apresenta tantos vícios que se torna difícil desfiar todos eles. Estamos a falar dos mesmos gregos que os de há 2500 anos? Mesmo que estejamos, por que razão para os povos continua a valer um princípio aristocrático que foi recusado para as pessoas singulares? Que pensamento pervertido é este que recusa que eu lembre a grandeza dos meus antepassados por isso ser considerado presunção, mas já considera perfeitamente legítimo que um povo fale dos seus «egrégios avós», quando é duvidoso que a maioria dos avós o sejam? Não percebem as pessoas que a comparação com os meus antepassados reais apenas mostraria a decadência a que cheguei, porque tenho de trabalhar para viver, assim como comparação entre a Afrodite lavadeira e a deusa apenas sublinha que nada vai a favor da primeira. E quanto ao que devemos aos antigos gregos, lembremos que o aprendemos em senhores como Voss, von Willamowitz-Moellendorf, Polhenz, Jaeger, Erwin Rohde, Usener… alguém mais atento há-de reparar que refiro nomes alemães.

Também se lembra agora alguma fauna do imenso sofrimento que tiveram os gregos durante a dominação turca. Não deixa de ser curioso que os mesmos que lutaram pela adesão turca porque querem uma Europa em desagregação, e que por isso sempre insistiram na maravilha europeia da cultura turca, agora se lembrem que a Turquia humilhou e explorou de forma cruel durante 400 anos os gregos. Para esquecer este argumento da próxima vez que defenderem adesão turca…

 

Mas as eleições foram democráticas, e por isso os gregos têm o direito de exigir a renegociação da dívida. Bom argumento este. Na minha casa com a minha família decido democraticamente, aliás por unanimidade, que o meu vizinho nos tem de sustentar. Anunciamos-lho com amorosa alegria e celebração democrática que decidimos que ele nos sustentasse. E não e que o fascista do vizinho não quer respeitar a vontade democrática da minha família e não me quer sustentar? Admita-lo: os vizinhos podem ser por vezes muito desrespeitadores da vontade e da desgraça dos outros.

 

Mas o argumento de legitimidade mostra que este só é possível numa época pouco exigente intelectualmente. Vejamos: quem são os culpados? Não o povo grego, mas as suas elites, os ricos e os políticos. Mas estes foram por suas vezes vítimas. De quem? Das finanças internacionais e dos credores. Mas quem faz parte destes credores? Países democráticos em que os povos se identificam com os seus governantes, como os países nórdicos, e do centro e leste europeus. Ou seja, um povo que diz que foi enganado pelos seus políticos, em quem não confia, culpa em último grau governos que são objecto da confiança do povo. O pecado alemão no fim de contas é o de ter um povo colaboracionista, em acordo com o seu governo, por não se sentir traído por ele, mas por ele representado. Não era suposto ser isto a democracia? De todo. Na imagem do mundo que subjaz aos que defendem as veleidades gregas, democrata é o «maquisard», o salteador de estrada que rouba os ricos, mesmo que não eleito. Se tirarmos a pele de cordeiro destes novos democratas, percebemos afinal a sua genealogia: revolucionário que não arrisca o sangue, a sua concepção de democracia nada tem a ver com eleições, mas com emboscadas.

 

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segunda-feira, 3 de agosto de 2015

O caso grego I


 
Muitos berros, muitas paixões. Era bom de se ver que o caso grego haveria de as suscitar. Mas como diz o velho adágio, é sempre melhor dividir os problemas para não os confundir. E neste caso temo bem que estejamos a confundir três níveis bem diversos da discussão: o poder, a legitimidade e a eficácia.

 

Na perspectiva do poder, a história que se conta é a da Alemanha estar contra a Grécia. Bem vistas as coisas, gritaria pouco credível. Se bem notarmos, é a Grécia contra todos, não contra a Alemanha. Ouvíssemos mais atentamente os finlandeses, os holandeses, os letões, os eslovacos, veríamos que não existe muita afinidade com a atitude grega. Há boas razões para isso. Quando os países da Europa Central e de Leste entraram na União Europeia, os gregos não foram muito solidários com eles, não querendo abdicar de muitos dos seus benefícios. Daí que muitos deles tivessem tentado obter junto da Noruega e da Suíça o que não podiam obter na União Europeia, porque a Grécia carecia de subsídios.

Na perspectiva do poder, a aposta da dita esquerda pós revolucionária criou-lhe um imenso risco. Quando Haider tentou fazer parte do governo na Áustria, mesmo com minoria, todos se levantaram contra o facto. Agora é precisamente a mais extrema-esquerda que não vê problema num partido protofascista no governo de coligação grego. Abriu um cheque para o futuro. Foi a esquerda europeia que deu legitimidade à participação, pelo menos de partidos como o Front Nacional francês. O partido da independência grego é contra o multiculturalismo, contra a imigração e a favor do papel da igreja ortodoxa na vida grega. A esquerda abriu a porta a Pegida, Vlamsbelang, a todos os partidos de extrema-direita na Europa. Não abriu a caixa de Pandora. Já estava aberta. Mas quebrou de vez as suas chaves; é a esquerda europeia que validou a extrema-direita, que a legitimou de vez.

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