quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Maldito liberalismo III





Se o liberalismo é fortemente etnocêntrico é porque não pensou o cristianismo. Tem-no como um dado, nada mais. Nunca pensou no que era a Europa, tem-na como um dado, nada mais. E, por isso, no fundo pensa que todos almejam ser europeus, todos querem ser livres. Nesse pecado mortal, a liberdade que está no centro do seu pensamento, tem um custo: o da uniformização. Para se ser liberal, todos têm de se europeizar, cristianizar, sob o ponto de vista cultural. Cada um pode ter a sua religião, mas tem de a viver cristãmente. Os hábitos tribais e étnicos são apenas meras aparências formais, e não podem ter substância nem serem fundantes da vida. No fundo, somos todos iguais, todos queremos a liberdade. O irrealismo antropológico não podia ser maior.



Que não haja uma efectiva crítica do liberalismo significa apenas que o liberalismo não está presente no espaço público. Os jornalistas e comentadores inventam um espantalho de neoliberalismo e julgam que estão a defender ou bater no soberano, e afinal apenas defendem ou batem num boneco de palha. São os velhos hábitos da gleba de onde vêm que preservam. Criaturas conservadoras por excelência, apenas podem ser para o que o folclore os moldou.



Por isso, o liberalismo vai sendo deixado incólume nas suas grandezas e nas suas fragilidades, no fundo intocado, apenas porque ignorado. Um pouco hoje em dia como o marxismo, seu irmão. Também este lida mal com a escatologia, por a ver unívoca, também este lida mal com a irreversibilidade por a ver unidireccional sem saber bem porquê, também este é profundamente etnocêntrico (basta ver como Marx atira para um mesmo caixote de lixo o «modo de produção asiático»), por achar que todos os seres humanos almejam o mesmo. E ambos os movimentos tentando explicar o homem como se não tivesse nem desejo sexual, nem aspirações espirituais. Irmãos rivais, ambos algures num alçapão da História, padecem de glórias paralelas e esquecimentos comuns.



Quanto ao liberalismo a crítica ao «neo» tem-no deixado intocado. Como uma princesa adormecida que não envelhece, mas age pouco. E, no entanto, merecia mais crítica porque merecia mais vida.



Alexandre Brandão da Veiga




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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Maldito liberalismo II






Visão equívoca da escatologia, que coisa quero dizer com isto? O problema da ortodoxia ocidental, ao contrário da oriental, foi sempre o de ter evacuado a escatologia. Quando a comparamos com os autores da patrística grega ou os teólogos russos, nestes há um traço contínuo, o de que a escatologia tem um lugar central no cristianismo, nomeadamente por via da «theosis», da divinização do homem.



Como a Europa Ocidental sempre lidou pouco, e em geral de modo ténue, com a escatologia, salvo grandes como São Tomás de Aquino, o terreno estava preparado para que surgissem muitos movimentos que lidam mal com a mesma.



A premissa do liberalismo é que nada podemos saber sobre os fins últimos. O juízo suspende-se e prefere não ser aprendiz de feiticeiro quanto aos efeitos das nossas acções. Deixar ao mercado, deixar à auto-regulação, a vida, é apenas consequência desta ignorância fundamental. De um lado é sensato, de outro trata-se de mera evacuação de um problema. Não nega a escatologia em boa verdade porque nem a sabe pensar. A sua recusa não decorre de um conhecimento, mas de uma extraneidade, de um alheamento.



Lida mal com a irreversibilidade. A realidade tende a equilíbrios. É verdade. Os sistemas tendem a equilíbrios naturalmente. Mas a questão é que nos temos de perguntar a quem aproveitam esses equilíbrios, que custos têm, o que é um equilíbrio. Neste aspecto, o liberalismo nunca saiu da mecânica clássica. As equações funcionam da mesma forma em qualquer das direcções do tempo. Se há mortos e feridos, doentes e oprimidos, ou a natureza destruída como preço de um novo equilíbrio, isso não é tido em conta no modelo liberal.



Em terceiro lugar, é etnocêntrico. O liberalismo não teria de ser forçosamente etnocêntrico, pelo menos numa primeira leitura. Posso construir um modelo liberal que incorpore diferenças culturais, e que as tenha efectivamente em conta. Mas nunca os liberais o fizeram. Não ocorre tal coisa por acidente. É que o liberal assenta na ideia da liberdade e presume que o ser humano almeja a liberdade. Ora isso é verdade para este paradoxo permanente que é a civilização europeia, que, desde sempre, antes de depois do cristianismo, funda as sociedades num equilíbrio de ordem e liberdade.



Nos Orientes múltiplos, seja o islão seja o chinês, o problema da liberdade nunca surgiu. Em turco e árabe nem existia a palavra até ao século XIX, no sentido de liberdade política, e só por influência europeia (diríamos, cristã?) a palavra surgiu. Durante catorze séculos o islão viveu bem sem pensar a questão da liberdade, durante muitos mais a China viveu em sequer o colocar nem no Tao nem em Confúcio (as civilizações indo-europeias, como a indiana e a persa levantam questões mais complicadas).


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terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Maldito liberalismo I



O liberalismo tem má imprensa na nossa época. Como esta não tem grande critério, não é de se levar muito a sério essa má imprensa. É a sina da imprensa a de não dever ser levada a sério.



A torto e a direito fala-se do neoliberalismo, quando a ideologia dominante tem muito pouco de liberal. Basta ver que é usurpada por potencias como a China no que lhe dá jeito. A abertura dos mercados não é em si um feito do liberalismo. A ideologia dominante não é liberal, nem relativista, nem aberta. É imperialista, dogmática e visa a dissolução, a entropia. Sendo parasitária, é apenas uma ideologia de segunda mão, como todos os «pós» e «neos».



Por isso o liberalismo não pode ser acusado pelo que não fez. Poucos são liberais. Liberais são-no apenas o que o são sob o ponto de vista económico, político e moral. E esses sempre foram minoritários, seja na Europa, seja nos Estados Unidos.



O liberalismo não é anglo-saxónico. Foi teorizado sobretudo por celtas, os escoceses, e por gente do continente europeu, ainda ao longo do século XX. As escolas austríacas, alemãs e italianas são muito mais relevantes na sua construção teórica que toda a literatura americana e inglesa na matéria. Hayek, Eucken e Bruno Leone são bem mais escorados que tudo o que Harvard ou a London School of Economics disseram sobre a matéria, já como Chateaubriand ou o irlandês Burke ou o suíço Constant disseram coisas mais profundas na matéria que Oxford.



Não vou, pois, tornar-me em mais um dos acusadores do liberalismo. Vou ser apenas crítico. Em relação ao liberalismo propriamente dito, não às suas imitações de pacotilha. E se o liberalismo merece críticas é porque é um movimento profundo. Se as merece é porque é um movimento feito por seres humanos. Se as merece, é porque é merecedor de atenção.



De tanto se criticar a excrescência que é o neoliberalismo, a crítica do liberalismo enquanto tal fica em silêncio. É esse silêncio que vou romper. E são três as críticas que tenho a fazer ao original, que a merece, porque merece muito, e também do bom e também do mau:

a)      Em primeiro lugar, padece de uma visão equívoca da escatologia.

b)      Em segundo, ignora a irreversibilidade.

c)      Em terceiro lugar, é etnocêntrico.

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