Maio 68 (2)
Foi o confronto de um mundo cheio de princípios e cuidados (o dos pais) traumatizados pela experiência da Grande Guerra e um mundo que na abundância não tinha a noção de limites e, por isso, recusava a ordem, os espartilhos, a orientação, a carreira pré-definida, a moral institucional. Foi no fundo a percepção de que as coisas podiam não ser assim, que se podia viver da vontade sem pauta nem regra, como seres apenas naturais e sem hierarquias. O que o crescimento económico e uma certa noção Paz e de abundância trouxe às novas gerações foi a recusa da ideia de que o mundo não está de uma vez por todas feito. Ele tem de ser construído sempre de novo. E que fazer o mundo exige sacrifícios, regras, disciplina, esperança, inteligência, respeito ao próximo, coragem e humildade.
De certa forma, os jovens induziram, então, que podiam viver para a arte, para o prazer, para o consumo como se este fosse um direito inerente ao ser humano, para um egoísmo ainda que sistemática e estrategicamente escondido num certo comunitarismo ou gregarismo.
Não é próprio da experiência juvenil a noção das consequências do que tomam como verdades absolutas. O interesse do jovem só se realiza na urgência e na pressa do seu desejo. A juventude tem mais pressa que a velhice. Por isso, também, é mais conclusiva, mais assertiva, mais exigente e mais maniqueísta. A disponibilidade para abraçar causas, para abandonar o status quo, para radicalizar posições, é directamente proporcional à sua disponibilidade física (excesso de energia), ao seu despojamento (poucos bens materiais), à sua curiosidade experimental (têm fome de conhecer) e ao seu desejo (a busca do prazer). Por isso, os partidos se dirigem aos jovens desde cedo, a sua boa vontade e a sua credulidade são facilmente manipuláveis.
Economicamente mais consumidor do que produtor o jovem tem acesso ao que ainda não produziu e esse acesso indu-lo no erro de que não precisa de produzir para consumir, em rigor pode até supor que não precisa de consumir. Mas tal posição, quando tomada, sabe ser ilusória porque, no limite, a necessidade de consumir será satisfeita por quem tem a responsabilidade que o jovem recusa. A estrutura que o jovem põe em causa é a mesma que o salva dos excessos dos seus ímpetos.
O que ficou do Maio de 68 foi uma licença institucionalizada de contestação como um direito dirigido a qualquer estrutura de poder existente. Mas essa licença de contestação ficou, em muitos casos, como uma manifestação de uma vontade ou da aderência a uma manifestação de grupo sem uma verdadeira leitura filosófico-política. O espírito sindical disseminou-se pelas corporações laborais, pelas minorias, pelos partidos políticos, pelos grupos religiosos, e por toda e qualquer causa que qualquer um tenha abraçado. O registo é o do nós aqui estamos e queremos dizer que temos direitos e vão ter que nos ouvir, vão ter que alterar as vossas vidas porque nós nos estamos a manifestar e cortamos as ruas. Não importa que tenham eco na sociedade, não importa que tenham legitimidade para o fazer, nem sequer importa que as suas manifestações façam sentido. Defendem os seus interesses mesmo contra os interesses da sociedade. E este espírito de revolução permanente até acabou por se institucionalizar em festas, paradas, descidas da avenida ou outras formas sem que haja uma autêntica espontaneidade. Tudo é organizado e combinado com a Polícia, o Governo Civil e com as televisões. E no seu modo de organizar estas manifestações utilizam os mesmos instrumentos de indução e pressão da opinião que qualquer produto utiliza no seu marketing. São uns a querer educar os outros dizendo que querem sensibilizar e alertar, que querem fundar uma nova consciência. E sabem que a televisão, que actua pela sua natureza de forma subliminar pelo poder implícito da imagem (senão para que serviam os anúncios), lá estará pelo dever de informar, a cumprir o seu papel e a realizar os objectivos dos grupos de activistas.
O poder da rua foi a grande conquista do Maio de 68. Mas em 40 anos o poder da rua também se institucionalizou e hoje, que mais do que então se justificava a saída para a rua espontaneamente, está tudo organizado, devidamente enquadrado e toda a contestação é pouco mais do que bifanas e couratos. Um convívio inócuo que não belisca o Poder.