sábado, 31 de maio de 2008

Maio 68 (2)

O programa que arrastou os milhares de estudantes em França e alastrou a outras democracias estabilizadas, de forma mais episódica é certo, como a dos Estados Unidos ou a de Inglaterra, é um programa que não tem a sua origem propriamente no Maio de 68 que foi o amplificador do que vinha longamente a ser preparado pelo pós-guerra, pelo crescimento económico, pelo bem-estar, pela liberdade de deslocação, pelo excesso de confiança do homem na sua autonomia e pela falta de uma referência de combate, de um medo, de um inimigo.

Foi o confronto de um mundo cheio de princípios e cuidados (o dos pais) traumatizados pela experiência da Grande Guerra e um mundo que na abundância não tinha a noção de limites e, por isso, recusava a ordem, os espartilhos, a orientação, a carreira pré-definida, a moral institucional. Foi no fundo a percepção de que as coisas podiam não ser assim, que se podia viver da vontade sem pauta nem regra, como seres apenas naturais e sem hierarquias. O que o crescimento económico e uma certa noção Paz e de abundância trouxe às novas gerações foi a recusa da ideia de que o mundo não está de uma vez por todas feito. Ele tem de ser construído sempre de novo. E que fazer o mundo exige sacrifícios, regras, disciplina, esperança, inteligência, respeito ao próximo, coragem e humildade.
De certa forma, os jovens induziram, então, que podiam viver para a arte, para o prazer, para o consumo como se este fosse um direito inerente ao ser humano, para um egoísmo ainda que sistemática e estrategicamente escondido num certo comunitarismo ou gregarismo.
Não é próprio da experiência juvenil a noção das consequências do que tomam como verdades absolutas. O interesse do jovem só se realiza na urgência e na pressa do seu desejo. A juventude tem mais pressa que a velhice. Por isso, também, é mais conclusiva, mais assertiva, mais exigente e mais maniqueísta. A disponibilidade para abraçar causas, para abandonar o status quo, para radicalizar posições, é directamente proporcional à sua disponibilidade física (excesso de energia), ao seu despojamento (poucos bens materiais), à sua curiosidade experimental (têm fome de conhecer) e ao seu desejo (a busca do prazer). Por isso, os partidos se dirigem aos jovens desde cedo, a sua boa vontade e a sua credulidade são facilmente manipuláveis.
Economicamente mais consumidor do que produtor o jovem tem acesso ao que ainda não produziu e esse acesso indu-lo no erro de que não precisa de produzir para consumir, em rigor pode até supor que não precisa de consumir. Mas tal posição, quando tomada, sabe ser ilusória porque, no limite, a necessidade de consumir será satisfeita por quem tem a responsabilidade que o jovem recusa. A estrutura que o jovem põe em causa é a mesma que o salva dos excessos dos seus ímpetos.
O que ficou do Maio de 68 foi uma licença institucionalizada de contestação como um direito dirigido a qualquer estrutura de poder existente. Mas essa licença de contestação ficou, em muitos casos, como uma manifestação de uma vontade ou da aderência a uma manifestação de grupo sem uma verdadeira leitura filosófico-política. O espírito sindical disseminou-se pelas corporações laborais, pelas minorias, pelos partidos políticos, pelos grupos religiosos, e por toda e qualquer causa que qualquer um tenha abraçado. O registo é o do nós aqui estamos e queremos dizer que temos direitos e vão ter que nos ouvir, vão ter que alterar as vossas vidas porque nós nos estamos a manifestar e cortamos as ruas. Não importa que tenham eco na sociedade, não importa que tenham legitimidade para o fazer, nem sequer importa que as suas manifestações façam sentido. Defendem os seus interesses mesmo contra os interesses da sociedade. E este espírito de revolução permanente até acabou por se institucionalizar em festas, paradas, descidas da avenida ou outras formas sem que haja uma autêntica espontaneidade. Tudo é organizado e combinado com a Polícia, o Governo Civil e com as televisões. E no seu modo de organizar estas manifestações utilizam os mesmos instrumentos de indução e pressão da opinião que qualquer produto utiliza no seu marketing. São uns a querer educar os outros dizendo que querem sensibilizar e alertar, que querem fundar uma nova consciência. E sabem que a televisão, que actua pela sua natureza de forma subliminar pelo poder implícito da imagem (senão para que serviam os anúncios), lá estará pelo dever de informar, a cumprir o seu papel e a realizar os objectivos dos grupos de activistas.
O poder da rua foi a grande conquista do Maio de 68. Mas em 40 anos o poder da rua também se institucionalizou e hoje, que mais do que então se justificava a saída para a rua espontaneamente, está tudo organizado, devidamente enquadrado e toda a contestação é pouco mais do que bifanas e couratos. Um convívio inócuo que não belisca o Poder.

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Maio 68 (1)

Para ser sincero o Maio de 68 não está no meu imaginário. Tinha 5 anos e ouvia a música dos anos 60 nas festas dos mais velhos: Beatles, Neil Young, Rolling Stones, Melanie, Cat Stevens. Pressentia a clivagem das gerações mas a política ainda não existia para mim.
O Maio de 68 também não terá sido perceptível em toda a sua extensão nesses tempos em que ocorreu. Os idealistas de então não tinham ainda completado o ciclo que viria a revelar as suas plenas intenções e os seu plenos interesses. Ser de esquerda, mesmo com reservas aos regimes comunistas plenamente implantados na altura, era ser marxista, leninista, maoista, trotskista, etc... O que verdadeiramente importava naquela sinestesia ambiental não era tanto a experiência desses ismos mas a teoria que lhes estava na raiz. A realidade teórica poderia, então, ainda, superar o falhanço evidente.

A via da legitimação dessas ficções era de algum modo a destruição pela força da vontade popular das estruturas organizadas do poder, um poder sempre negativo que o anarquismo conveniente à data estava disposto, mesmo sem modelo organizacional e por isso mesmo, deitar por terra. À distância há quem diga que naqueles dias, semanas de Maio e dos meses seguintes, pelo menos até às eleições, se viveu numa autêntica sociedade sem classes em que todos, sem hierarquia, faziam um pouco de tudo e comungavam as alegrias e o pão sem o vil metal de permeio. Todos? Não todos os que participavam e queriam provar que era possível. Pelo menos até se fartarem. Mais tarde, feito o balanço, não terá sido bem assim, e os que pilotavam a refrega, sempre com estatuto especial, acabaram engagés nas estruturas de poder que não se abalaram. A caravana passa..., em terra de cegos..., muito sabem os provérbios...
Dois grupos teriam interesse directo nas lutas: os estudantes e os operários. Os estudantes, burgueses, filhos de uma classe média em ascendência em tempos de abundância, vislumbravam uma saída para uma sociedade em que não queriam participar, diga-se, produzir. Por outro lado, os operários, sentindo uma oportunidade para reivindicar direitos, cavalgaram a onda com um capital moral que os estudantes não tinham no plano político-laboral: eles, os estudantes, iriam ser doutores e engenheiros, teriam as suas carreiras mais tarde ou mais cedo garantidas e eles, os operários, teriam de continuar a reivindicar os seus direitos e os seus benefícios numa luta contra o patronato, contra o Estado e contra uma sociedade que os fazia viver do seu trabalho (proletários). Ou seja, a luta dos estudantes poderia ser uma festa temporária e sem consequências, a luta dos operários (proletários, porque vivem apenas do seu trabalho) teriam de manter, permanentemente, a luta.
Também os partidos e os grupos de esquerda politicamente organizados tentaram tirar partido, senão mesmo instigar e promover, o clima de desordem pública e de fervor revolucionário, para, aproveitando as simpatias ideológicas, irem ajudando a ampliar a onda de revolta, municiá-la de instrumentos de acção que dominavam, e poder vir a controlá-la segundo os seus interesses. Essencialmente, tratava-se de lançar as grandes questões da esquerda na discussão como forma de pressão na opinião pública, tratava-se de conduzir o condicionamento mental de toda uma geração de estudantes e com eles de jovens, e de instruir e ampliar no mundo operário o princípio reivindicativo e de subversão do poder e da ordem num anarquismo perpétuo e sempre possível se o princípio da desconfiança ficasse bem enraizado. No fundo interessava que o ideário da esquerda se tornasse transversal à esquerda e à direita, ou à esquerda e na organização tradicional da sociedade, ainda que as “políticas” continuassem as mesmas, mais liberais, porque apesar de tudo é necessário criar riqueza antes de pretender nacionalizá-la e começar a distribui-la sem mérito nem justiça.
Ao fim de algumas semanas tudo se esvaiu. Ch. de Gaulle venceu retumbantemente as eleições que a democracia popular não queria realizar e aquele mito que o povo estava com os revolucionários desfez-se. A revolução enrolou as suas bandeiras e foi para casa. Afinal tinha sido uma festa, talvez até, para muitos um sonho, mas que acabou quando desceram à realidade, regressaram às aulas, finalizaram os seus cursos, integraram-se no mundo laboral, e muitos dos seus líderes radicais, integraram-se nas estruturas políticas, governamentais e públicas onde continuaram as suas actividades políticas bem menos exaltados. Com o tempo percebeu-se que, no fundo eram burgueses que queriam apenas realizar o ideal de todas as burguesias: ter uma vidinha organizada e, de preferência, com sucesso, viver de amizades e de grupos que lhes dêem uma identidade, e poderem alardear uma superioridade moral pelos cargos que ocupam nas Empresas, no Estado, em Institutos, nos Media e em Partidos, ou se não for o caso, alardearem a superioridade moral (e estética) de terem lá estado, de terem conhecido os que triunfaram, de terem tido o seu momento de participação na história e poderem contá-lo na primeira pessoa aos netos.
Os operários, mais realistas, acataram a ordem e mantiveram com os seus aliados de sempre, as lutas que as esquerdas radicais e as esquerdas moderadas quando na oposição, sempre mantêm, para justificação da sua existência, sejam os partidos sejam os sindicatos. Participaram, desconfiados, da festa, não sei se lhes aproveitou alguma coisa objectivamente.
E o mundo? O que ficou desse Maio? Se a alteração da ordem económica não era no fundo uma possibilidade realista, que outra ordem veio a alterar-se no rescaldo do Maio de 68?

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Manuela ganhou

Manuela ganhou. É, no PSD, a vitória da sensatez e do pragmatismo. Saúdo os meus co-bloggers que, ao contrário de mim, não desesperam e acreditam que o país tem soluções que não passem por abdicarmos da soberania a favor de Espanha ou, firmemente convencidos de que não há pecado abaixo do Equador, entretermo-nos com dinâmicos e ambiciosos negócios em Angola. Seja como for, e sem desfazer, expliquem-me lá, por cortesia, para que tortuososos abismos e sacrificados esforços é que a inabalável e vetusta Manuela nos vai agora convidar? E que caminhos serão esses que não tenham já sido o nosso ditoso fado, de Guterres a Sócrates, passando por Durão e Santana? Valha-nos o facto de Manuela ter tido um lustro sabático (nas ilhas do Pacífico?) e nunca ter sido decisora nessas trágicas e obscuras governações.

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O caso do vidro que veio enganado...

Há mais ou menos quinze dias assaltaram-me o carro. Partiram o vidro, mexeram nas minhas coisas, roubaram um GPS e, na pressa causada pelo troar do alarme, levaram metade de um rádio, que sinceramente espero que funcione melhor do que a metade com que eu inutilmente fiquei.
Enfim, já muitos passámos por isso. Uma chatice: telefonar ao ACP para guardar o carro durante a noite; fazer queixa à PSP porque sem isso não podemos accionar o seguro do carro; fazer uma peritagem num local indicado pela seguradora; dirigirmo-nos a uma garagem onde, primeiro, nos façam um orçamento e, depois, nos arranjem o carro… e tudo isto, claro está, no meio dos normais afazeres do dia a dia.
Já quase tudo passado, faltava-me apenas substituir o vidro do carro, o qual foi encomendado há já mais de uma semana (tenho andado com um plástico colado à porta do carro, que simpaticamente puseram na oficina, o que me obriga a estacionar, à noite, em cima dos passeios, quase encostado às paredes das casas). Telefonaram-me finalmente com a boa notícia de que o vidro já cá estava e ontem, sexta-feira, lá deixei o carro logo de manhã na oficina para o poder ir buscar, já pronto, à hora de almoço.
A meio da manhã, no entanto, recebi uma mensagem no meu telemóvel que textualmente dizia: «Bom dia fala da ....... venho por este meio informa-lo que o vidro pra a sua viatura não veio correcto, sendo assim fico aguardar um contanto. Obrigado». Fiquei a saber, portanto, para além das evidentes qualidades ortográficas de alguém daquela oficina, que o vidro tinha vindo enganado.
Chegado à oficina à hora do almoço, como combinado, informei amavelmente que os vidros não se enganam, pedindo que me explicassem o que é que se tinha passado. O meu objectivo não era retórico, mas, em vista de uma óbvia dificuldade, descobrir um responsável para, a partir daí, poder resolver o problema. Mas, manifestamente, eu não estava a perceber, porque várias vezes me explicaram que o vidro tinha mesmo vindo enganado.
Já no fim da conversa, consegui a custo arrancar o nome de um longínquo Sr. José Ângelo, que, ao que parece, tinha trocado os vidros, sendo que estava no Porto e era da concessionária, factos que, a mim nada adiantando, cumpriam, no entanto, a função de manter a responsabilidade distante e alheia.
Daqui para a frente o diálogo tornou-se impossível, porque à pergunta: «Então quando é que o vidro cá vai estar?», imediatamente se seguia: «O mais depressa possível». Claro que eu então perguntava: «Mas concretamente quando é que isso vai ser?», ao que amavelmente respondiam: «Ai isso não lhe posso dizer». E quando eu indagava: «Porquê?», as respostas variavam entre: «Depende do Sr. José Ângelo», «depende da concessionária», ou «depende do Sr. José Ângelo, que é da concessionária».
Vim-me embora – à espera de uma nova chamada, que não sei quando vai ser. Mas, entre o vidro e o Sr. José Ângelo, dei por mim uma vez mais a pensar que é este, talvez, o principal problema do nosso povo: a inexistência de um verdadeiro sujeito, criador, activo e responsável. Porque quando alguma coisa acontece no nosso país, em todos os seus diferentes e variados níveis, sempre aparece alguém que, com simpatia e boa vontade, nos explica que a responsabilidade é distante e é alheia.
Ora, nunca é demais lembrar a história de Adão e Eva, que, depois de desobedecerem a Deus, não quiseram reconhecer, perante Ele, a sua responsabilidade: Adão apontou para Eva e Eva para a serpente, a qual não apontou para ninguém, pois como se sabe, não tem dedos. Pelo castigo, porém, Deus não queria fazer-lhes mal, mas repô-los no bem (castigare, em latim, vem de castus + agere, que literalmente significa agir castamente). Para isso eles tinham que assumir a responsabilidade do que tinham feito. Não o fazendo, foram expulsos do paraíso, para que o fizessem, aí começando a história da salvação. E é essa a lição que queria deixar para Portugal: sem reconhecermos as nossas falhas não assumiremos quem somos e continuaremos perdidos, sozinhos e com medo, longe de nós e de Deus. No instante da escolha, pode parecer mais fácil, como bem sabem as crianças, mas a longo prazo não é, como julgo que sabemos todos nós.

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Da Visão: Desigualdade

Em teoria, e como muito melhor do que eu algum dia saberia fazê-lo, o demonstraram brilhantes pensadores liberais como Friedrich Hayek ou Robert Nozick, a desigualdade na repartição de rendimentos não é necessariamente um indicador de injustiça social. Por uma razão que, de resto, é fácil de compreender. Num mundo ideal, com regras genéricas e iguais para todos, mas sobretudo com oportunidades rigorosamente idênticas para cada cidadão, a simples diversidade original dos membros da sociedade resultaria necessariamente num padrão de distribuição desigual. Que em teoria, repito, poderia precisamente espelhar a diferença de mérito e de trabalho entre cada cidadão ao longo de uma vida. Aliás, o que numa sociedade assim idealizada resultaria numa verdadeira injustiça seria a tentativa de imposição de um padrão comum de riqueza. Em face de cidadãos diferentes, o Estado teria forçosamente de violar o princípio da igualdade perante a lei e tratar cada cidadão de maneira diferente para garantir uma distribuição igualitária do rendimento.
Mas chega de teoria. A verdade é que o mundo está longe de ser a sociedade idealizada assim descrita. E Portugal, em particular, está muito longe de ser um país caracterizado pela igualdade de oportunidades com que sonharam Hayek e Nozick. Razão pela qual o recente «Relatório Sobre a Situação Social na EU» que classifica Portugal como o país da União com maior desigualdade na repartição de rendimentos deve ser encarado com profunda preocupação. Estamos muito longe, de facto, de ser o paraíso da igualdade de oportunidades. Desde logo porque temos um sistema de justiça totalmente disfuncional que na prática premeia a violação das regras mais diversas e põe, nos mais diferentes domínios, os cidadãos prevaricadores em posição de vantagem em relação aos cidadãos cumpridores. Porque temos uma asfixiante burocracia estatal que abre avenidas de oportunidade a uma economia paralela onde não triunfam os mais capazes e os mais trabalhadores mas os menos comprometidos com o insustentável peso das «tralhas morais». Porque temos um sistema de educação pretensamente igualitário mas que, por ser tão ineficiente e irresponsável, cava um fosso de perspectivas entre os que têm meios para recorrer a sistemas privados e os que se vêem entregues ao mirabolante ensino público (perpetuando assim as desigualdades de oportunidades que o tal sistema igualitário visaria atenuar). Porque temos uma máquina fiscal que continua sobretudo a penalizar os pequenos contribuintes menos sofisticados. Porque temos uma lei do trabalho que não cria qualquer distinção entre os que trabalham e os que vegetam. E porque, por mais incrível que isso pareça, continuamos a ser um país com uma rigidez social própria dos tempos da outra senhora.

Se regresso aos clássicos do liberalismo, se cito Hayek e Nozick, não é portanto para fazer uma apologia irresponsável da desigualdade profundamente iníqua que existe no nosso país. É para sublinhar que essa iniquidade tem mais a ver com uma escandalosa inexistência de oportunidades equitativamente repartidas do que com um padrão de distribuição de riqueza concreto. Em tempos de crise e de desbragado populismo nunca é demais lembrar isto.

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sexta-feira, 30 de maio de 2008

A Preto e Branco

Elas são mesmo irmãs. Mais ainda: elas são gémeas. As duas de olhos azuis, uma de gentil pele leitosa, a outra com bela tez achocolatada.


Não sei se a Natureza também tem direito a assunções ideológicas ou não, mas a verdade é que este casal – ambos filhos de mães inglesas brancas que casaram com pais negros – teve gémeas, uma de cada cor. Presumo que o pessoal skin não aprecie por aí além tanta ironia genética.

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Sobre o PSD, para memória futura (III)

Amanhã haverá eleições. Depois de uma campanha centrada na discussão das pessoas. Ainda e sempre, quase só das pessoas.

As tentativas de ideologização das várias candidaturas (social-democracia versus liberalismo versus populismo) serviram uma pura lógica de confronto e, nesse sentido, acabaram por simplificar a própria expressão das diferenças. Para dentro, talvez chegue. Para fora, parece-me claramente insuficiente.

No fundo, sabe-se muito pouco acerca do que poderá vir a ser o dia seguinte. E, por isso, a escolha do melhor candidato não será condição bastante.

Infelizmente, a equação eleitoral foi pensada para funcionar pela negativa: cada candidato empenhou-se mais em afirmar o que jamais seria susceptível de realização pelos demais concorrentes do que em assumir o seu próprio compromisso de acção, como futuro – ou futura – líder. Por isso, custe ou não aceitá-lo, o voto em Manuela Ferreira Leite terá o objectivo primordial de não permitir a eleição de Pedro Santana Lopes ou Pedro Passos Coelho. Como o voto em Pedro Santana Lopes visará, antes de mais, não eleger Manuela Ferreira Leite ou Pedro Passos Coelho. Assim como o voto em Pedro Passos Coelho quererá, sobretudo, assegurar a não eleição de Manuela Ferreira Leite ou de Pedro Santana Lopes. Fruto do estado a que chegaram as coisas partidárias, é este o ‘pathos’ da escolha social-democrata.

Por mim, já o assumi, votarei em Manuela Ferreira Leite. Porque, por razões várias que nem sequer têm a ver com a pessoa de nenhum dos outros candidatos (embora resultem de uma convicção reflectida acerca do que os condiciona, fragiliza ou determina), sei o que não quero para o PSD. Mas reconheço que é pouco. E tenho pena desse pouco.

Gostaria de ter sentido mais densidade no debate político. Mais convicção política. Mais lastro político. Gostaria de ter visto afirmados princípios, valores e modelos políticos. Gostaria de ter sido confrontada com um programa. Um programa claro, consistente, pensado.

Como, aliás, gostaria de ter tido uma luz, um sinal, sobre a futura equipa. Em política, as pessoas não são tudo. Mas é facto que, também em política, as pessoas são decisivas. A diferença possível passa, inelutavelmente, por elas. Mas, sobre isso, não sabemos nada. A partir das muitas caras que surgem – ou ressurgem –, sobra a dúvida essencial: quais ficarão?

Seja como for, e apesar da centralidade das muitas incertezas que permanecem, em causa estará sempre – amanhã – a plausibilidade de um novo PSD. Na sua prática interna, em que tudo ou quase tudo requer reciclagem urgente. No seu compromisso com o País, em que tudo ou quase tudo exige uma mudança radical.

O que importa é, afinal, a possibilidade de refundar a esperança. E isso vai depender do dia seguinte. O PSD só poderá propor um caminho de futuro se conseguir: (i.) pensar politicamente o País; (ii.) arejar as ideias, a 'praxis' e os protagonistas que são a manifestação visível do 'status quo' partidário; (iii.) abrir-se à verdade da vida das pessoas concretas, das suas dificuldades e dos seus sonhos.

No início desta campanha, escrevi (ver aqui): «Portugal tem, hoje, um problema de liberdade. Como tem um problema com a qualidade da sua democracia. (…) Mais, Portugal tem um problema de governabilidade. Como tem na política a dificuldade maior da sua economia».

A urgência é, pois, política. A partir de domingo, veremos se o PSD quer – e sabe – voltar à política.

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quinta-feira, 29 de maio de 2008

Lágrimas Negras

Tenho imenso medo de que não gostem desta canção. Há quase 5 anos que é uma das minhas favoritas. Faz-me pensar, sofrer e amar. Chama-se “Lágrimas Negras” e escreveu-a o "criador de boleros" Miguel Matamoros. Interpretam-na o lendário pianista cubano Bebo Valdés e o cantor de flamenco Diego El Cigala.



Agora que já ouviram, posso só dizer mais uma coisa? Além de Bebo e Cigala, merecem ovação, o Paquito D’Rivera no sax alto, o Javier Colina no contrabaixo e o Piraña “en el cajón”.
E posso ainda contar-vos um segredo? Há uma interpretação da Sarita Montiel. É realmente outra coisa. Uma diferente, violentamente diferente, Weltanschauung. Mas ao ver o videoclip descobri que a ouvi num filme qualquer, no cinema da 7ª Esquadra, em Luanda, do balcão dos chefes e sub-chefes da polícia local. Reavivou-se uma ferida antiga – uma ferida feliz, não se iludam. De repente, do escuro alçapão da minha infância (mentira, mas está bem assim) sai-me a visão dos dentes brancos de Sarita, os lábios cor de rosa, a língua enrolada a desdobrar-se com vida própria para dizer “tu me has echado en el abandono”, os longos brincos faíscantes a anunciar os ombros nús. Língua e ombros que foram o berço inocente de um erotismo de pacotilha que adoro.
Vá lá, vou ser sério, aqui vai a letra:

Aunque tú me has echado en el abandono / aunque ya has muerto todas mis ilusiones, / en vez de maldecirte con justo encono / en mis sueños te colmo / en mis sueños te colmo /de bendiciones.

Sufro la inmensa pena de tu extravío / siento el dolor profundo de tu partida / y lloro sin que tú sepas que el llanto mío / tiene lágrimas negras / tiene lágrimas negras /como mi vida.

Viendo el Guadalquivir / Las gitanas lavan /Los ninõs en la orilla /Viendo los barcos pasar / Agua del limonero / Agua del limonero / Si te acaricio la cara / Tienes que darme un beso

En el Guadalquivir / Mi gitana lavaba / Pañuelo de blanco y oro / Que yo te daba, que yo te daba

Tu me quieres dejar, / Yo no quiero sufrir, / Contigo me voy, gitana / Aunque me cueste morir
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Chamem a Autoridade!

Ando seriamente preocupada com o meu estado mental. Há cerca de quinze dias vi no Parlamento o nosso Primeiro-Ministro de forma decidida a avisar a nação de que ía chamar a Autoridade da Concorrência para estudar a questão dos combustíveis.
Fiquei muito preocupada.
Ora, eu enquanto jurista de um departamento jurídico de uma SGPS, que por mero acaso detém uma empresa do ramo dos combustíveis, ía jurar, que há um ano atrás a empresa já tinha sido instada pela mesma Autoridade da Concorrência a fazer largas explanações sobre o tema, quem fornece o quê a quem, em que termos, a que preços, quem compra, quem distribui, etc. e tal.
Como nada disto parece ter-se passado, se eu ando a ver coisas, e parece que ainda estou a ver o texto e os power points, é com certeza porque a minha condição mental se deteriorou e não dei conta.

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Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo


Amor que acaba, nunca foi amor. Amor que é amor é eterno e não faz batota. Reciclo um post com mais de um ano, mas é mesmo assim que as coisas devem ser: amor que é amor nunca acaba.

Quem cantou a ideia de “amor único” foi Nelson Rodrigues, cronista brasileiro que, em “A Cabra Vadia” ou “O Óbvio Ululante”, escreveu com ortográfico desacordo um português querubínico. A Nelson sempre o atormentava a mesma nostalgia, a nostalgia do amor único e eterno. O amor do menino pela menina da porta ao lado, que começa aos 12 anos e dura a vida toda, o amor dos amantes que se matam, consolados pela vertigem duma paixão que os dispensa, sem cerimónias, de prestar contas ao mundo ou aos homens, a Deus ou ao Diabo, ao Céu ou ao Inferno.

Mas dito isto, pergunto: será que estamos preparados para os extremos inclementes de tanta paixão? Ou será que o amor eterno, o amor único, é apenas literatura?

E se a paixão for vil ou mentirosa, ou luminosa e efémera como um relâmpago, é menos paixão? Deixem-me dar exemplos. Literatura por literatura, basta-me como exemplo a volúpia dos encontros proibidos de alguns escritores. Anaïs Nin e Henry Miller tiveram o mais vicioso dos romances, ali mesmo, nas barbas do marido de Anaïs, sem que jamais ele suspeitasse. Era menos amor o amor deles por causa da mansa e traída fidelidade desse homem para cujos trémulos braços, no fim, a escritora voltou, acusando Miller de reduzir as mulheres à contingência biológica de “um buraco”?

Foi menos amor o desesperado e maldito “affair” em que F. Scott Fitzgerald, esquecendo a sua deprimida Zelda, se entregou a Dorothy Parker, ainda que, nessas brevíssimas e ternas noites, a Dorothy apenas a inspirasse uma profunda compaixão?

O amor que acaba não era amor, quis ensinar-nos Nelson Rodrigues. Mas também foi ele que disse “não se poder amar e ser feliz ao mesmo tempo”. Nelson, Nelson, com um veneno nos matas, com outro veneno nos curas.

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quarta-feira, 28 de maio de 2008

Simplesemente grotesco




No recente terramoto de Sichuan terão perdido a vida mais de 65.000 pessoas. De entre estes, estima-se que cerca de 10.000 fossem crianças. Razão pela qual a comissão de planeamento provincial daquela região resolveu autorizar as famílias que tenham perdido filhos a «conceber» um segundo (abrindo assim uma excepção à regra geral de «uma família, um filho»).
Não tenho sequer comentários para este horror «burocrático». É o planeamento socialista levado a um absurdo que ofende. É simplesmente grotesco.

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terça-feira, 27 de maio de 2008

Céu ou Inferno?

As relações entre o sagrado e o profano já não são o que eram. E o mundo também já não é o que era, novidade que repetimos, despreocupados, ano a ano, século a século.

Mas há talvez, entre os insanos e mais recentes indícios, razões para crer que o mundo mudou mesmo. Dou um exemplo: há poucas semanas, Chávez, el presidente, e Naomi, the model, fizeram a Imprensa suspender a respiração. Anunciaram à humanidade incrédula uma insuspeita e improvável afinidade electiva. Naomi, que há 40 anos, seria o mais imprestável modelo de alienação marcusiana, veio proclamar a sua admiração por Chávez, um símbolo da revolução (linha mariachi). O símbolo gostou e retribuiu com requintes bolívarianos. Perante o espectáculo, e se não se importam, tenho até saudades do marxismo messiânico do Che ou mesmo do jovem Fidel.
Pouco importa: com ou sem Chávez, com ou sem Naomi, mudou a natureza do trabalho, mudou até a natureza do mercado, mudou a natureza do conhecimento.

Esperamos, esperávamos que houvesse coisas que nunca mudassem. A Penthouse, por exemplo. Durante décadas a revista americana ofereceu ao público masculino um entretenimento que, até pela abertura a que a modesta Playboy não se atrevia, diríamos estar já no domínio da pornografia soft, ainda que socialmente aceitável.

Era o que era: um valor seguro. Mas a Penthouse decidiu passar do gozo terrestre ao gozo celestial. Uma mudança que vai mergulhar alguma viril humanidade na dúvida e no desespero. Respondendo à concorrência da pornografia gratuita da internet, os gestores da Penthouse descobriram e juntaram a religião ao conjunto das suas revistas e sítios soft-porn. A Penthouse e a Big Church, o novo website já em português, integram o mesmo portal. Nunca o sagrado e o profano tinham alcançado tão íntima fusão. O céu e o inferno, o deboche e a santidade, o porno e o pio estão irmanados.

O promotor desta revolução – prova última da mudança do mundo – é o gestor Marc Bell, o novo guru de um grupo que foi criado para ser uma referência de honesta devassidão, passe o triste oxímoro. Com Bell no comando, e com os negócios em crise, a Penthouse aderiu a uma nova teologia: "Bringing people together in love and faith." Ao lado do velho emblema, surgem agora os sítios de encontro de parceiros para cristãos. Com resultados: “As minhas orações para encontrar um homem respeitável, foram escutadas. Obrigado BigChurch.com”, disse à Newsweek uma das veneráveis utilizadoras.

O acréscimo da religião e doutros sítios de “interesse social”, diversifica e expande o negócio da Penthouse até agora tão obscuramente focado. A crise será luminosamente vencida.

O mundo mudou. Mas confesso alguma cristã nostalgia dos bons tempos em que Sade ou Bataille eram os nossos campeões da mística associação entre o erotismo e o mal.


Com a devida vénia ao Pnet Homem, onde, com "love and faith", me aturam às 3ªs.

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segunda-feira, 26 de maio de 2008

O zero de Gwalior



Ao contrário de outros membros do blogue, (ainda) não fui à Índia. Mas quando for, gostava de não perder Gwalior - por uma questão de zeros.

Gwalior é uma cidade antiga encravada no norte do estado do Madhya Pradesh, quase no ponto de confluência de três estados: o Rajastão, Uttar Pradesh e o Madhya Pradesh, um pouco a sul de Agra (famosa pelo Taj Mahal). Parece não ser muito conhecida fora da Índia. E no entanto é em Gwalior que se encontra uma peça científica de interesse extraordinário. Não num museu, não em representações, mas exposta ao ar livre: o primeiro zero (ou melhor, "0") de que há registo na história de humanidade.

A cidade de Gwalior tem um centro histórico antigo, rodeado por uma fortaleza medieval (do século XV). A fortaleza rodeia um templo muito mais antigo dedicado a Vishnu, chamado Templo de Chatur-bhuja ("do deus dos quatro braços", como ele está representado).

O que vou relatar foi aparentemente conhecido apenas aquando da tomada de Gwalior pelos britânicos, em meados do século XIX. Na câmara do lado direito da estátua de Vishnu está uma placa com a dedicação do templo, datada do ano de 876, que reproduzo parcialmente acima. Começa: "Om. Adoração a Vishnu! No ano de 933, no segundo dia da metade brilhante do mês de Magda (...) a cidade ofereceu ao templo (...) um terreno de 270 hastas de comprimento e 187 hastas de largura (...)"

Eu não sei quanto quanto media uma hasta, nem sei ler hindu do ano 876. Mas ao olhar para a fotografia da placa em questão, tive um calafrio. Olhem bem para a 2ª linha. Esse pedaço está recortado do lado direito a vermelho. O que é que lá está escrito, com caracteres reconhecíveis do século XXI?

"270"!

Esta é uma peça de arqueologia científica extraordinária. É o primeiro registo conhecido do "zero" enquanto algarismo de numeração posicional. E é extraordinário como quer a notação aritmética quer os próprios símbolos para os algarismos (há mais números na placa) são praticamente idênticos aos que usamos hoje, de tal forma que olhando para a placa se conseguem reconhecer... os algarismos.

A história do zero é frequentemente mal entendida por quem fala sobre ela: é um mito urbano dizer que foram os árabes ou indianos a "inventar" o zero. Não usar um símbolo para zero, como os romanos faziam, não significa que desconhecessem o conceito (pelo contrário: é impossível realizar os complexos cálculos astronómicos necessários para construir um calendário sem conhecer o zero!). Eles não usavam, no entanto, numeração posicional, e portanto não utilizavam um símbolo para o zero.

Pelos poucos registos que existem, a numeração posicional terá sido inventada pelos babilónios, utilizada pelos astrónomos da Alexandria grega e transportada para a Índia. Nos séculos que passaram transformou-se de tecnologia ao alcance de uma elite superiormente instruída em ferramenta disseminada pelo povo, juntamente com a base decimal (provavelmente porque, com dez dedos, o ser humano tem mais facilidade em contar em base dez - se tivéssemos doze dedos provavelmente utilizaríamos base 12).

E, pelos vistos, em 876 tudo isto já estava tão disseminado na Índia profunda como a escrita. É assim que aparece o zero de Gwailior. Quem soubesse ler também já sabia ler números em notação decimal. O zero já é uma descoberta democratizada.

Mais ou menos na altura do zero de Gwailior, os árabes dão-se conta da revolução tecnológica que é a numeração decimal e adoptam-na. Na Europa, este processo demorará séculos; ainda hoje lhe chamamos "numeração árabe" porque foram os árabes que a introduziram ("algarismo" é uma corruptela do nome do matemático árabe Al-Khwarizmi, um dos responsáveis por este processo).

Mas não foram eles que a criaram. É arrepiante olhar para a placa de Gwalior e reconhecer os números tal como os escrevemos.

Até o zero.



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domingo, 25 de maio de 2008

Chamem a Autoridade

O caso é sério. É de certeza merecedor de investigação. Haverá concerteza um problema de concorrência. Ou de falta dela. Posso assegurar que, no mínimo, existe concorrência desleal. Refiro-me obviamente ao facto de o Benfica ter a partir de hoje o Quique Flores e o Rui Costa e nós termos o Paulo Bento e o outro moço. Sei do que falo, chamem a Autoridade!

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Chamem a Autoridade

Era para se chamar assim o post de hoje. Escrever uma coisa séria sobre a Autoridade da Concorrência. Aconteceu, como já me aconteceu antes, que o Manuel Fonseca, com a crónica de Cans, me levou a escrever uma coisa inteiramente diferente.
Ele há o campo, e ele há o campo. Há o campo hardcore e o campo softcore.
Quem não conhece bem o país, fala amiúde sobre a beleza da vida do campo. Fala sobre o silêncio, as cigarras à noite, se for no Alentejo, e muitas vezes, havendo idílio e fundos, até compra um monte, para reconstruír, com aquecimento e piscina. Esta versão softcore do campo leva a que se seja profundamente contra a destruição destes cenários idílicos, contra qualquer modificação, alteração e desenvolvimento destas aldeias portuguesas de presépio.
Depois, claro, há o campo hardcore, aquele sobre o qual já escreveram Soeiro Pereira Gomes, Saramago, José Luís Peixoto. É miserável, é atrasado, é pobre, esventrado, varado pela distância, habitado por gente que fala quase sempre com sotaques cerrados, que quando aparecem na televisão, nos apetece gritar:"- Ponham legendas! ". Das encostas cerradas na Madeira, a Trás-os montes, vemos o fumo a saír das suas casas de pedra mal-amanhadas, com as velhas de preto, curvadas até ao inverosímel.
Os conhecedores do campo softcore, ignoram a vida brutal das pessoas destes sítios, e por isso se interessam tão pouco pelo desenvolvimento do país, ou achando que é melhor que fiquem assim, até para turista ver.
Eu tive a sorte do campo fácil, porque se via o mar da minha casa, de que distava apenas 4 kilómetros. Mas era campo. É verdade que por isso me emancipei, que me viciei nas coisas citadinas, que passo a vida a dizer mal do desconforto do campo. Mas também é verdade que, embora vá o caminho inteiro a resmungar, quando chego sorrio, pensando na sortuda que fui e que sou. Saber de onde vêm as pevides e os tremoços, saber como se faz um chouriço, saber se vai chover ou fazer sol, jogar ás escondidas numa rua inteira, e galgar o mundo sentada numa bicicleta.
Olhar à minha volta, ver aquela gente, atrasada por vezes, a minha gente, ainda que por vezes eu não gostasse que fosse, que sabe que a fruta se começa a descascar pela parte que está tocada ou podre, e pensar, este povo merecia melhor sorte.
É assim ou não é Manuel?

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Sem poetas nem ideais

A nostalgia do passado e a melancolia são sentimentos do Homem de todas as gerações. Sentimos hoje em dia, alguns, senão muitos, que esses sentimentos correspondem a uma mudança de paradigmas na condução do mundo, como se o Progresso inevitável nos levasse sem remédio, nem apelo, para o que não queremos, mas que mesmo assim nos arrasta numa onda avassaladora que o nosso imaginário saudoso não tem força suficiente para travar ou inverter.

No século XX houve uma, para nós, evidente mudança de paradigmas. Um deles é o que corresponde à mudança da noção de tempo. Não que essa mudança tivesse sido inventada no século XX pois, a filosofia moderna já a tinha gizado em Descartes e confirmado com Kant, mas porque o pensamento filosófico “constrói” realidades muito antes dos homens as “viverem”. Não obstante, pelo menos, o romantismo alemão coetâneo cantara logo a sensação de perda de uma vida idílica de harmonia entre o homem e a natureza, em que a natureza era um espelho de uma alma cuja Pátria não estava neste mundo.
Se percorrermos a história da Poesia, encontraremos em diferentes formas este canto e este louvor da união esponsal entre Homem e Natureza nas Cantigas de Amigo ou, muito antes, nas Geórgicas de Virgílio. A própria cultura megalítica, origem da arquitectura, isola no meio da paisagem o lugar de uma manifestação metafísica ao construir templos para uma morada da alma imortal. Como se essa morada fosse uma porta para outro mundo e não alguma coisa que pertencesse a este mundo.
O sentimento romântico de uma Pátria espiritual, uma Ilha dos Amores, ou um Paraíso Perdido, é comum em diferentes expressões e com diferentes oportunidades a toda a Poesia e a toda a Arte.
Teixeira de Pascoais definiu em “Verbo Escuro” o Poeta com aquele que sobe aos píncaros da vida e depois volta cá abaixo para contar aos outros homens aquilo que viu. O Homem constrói através do sentimento saudoso portas para uma outra realidade, um outro mundo por que anseia e que persegue. Entretanto, esta sensação de distância, reforçada por um espírito do tempo que a nega e impossibilita esse desejo de regresso ao Paraíso e cimenta um afastamento inexorável”adoece” a alma dos homens conscientes de que a efemeridade do que vivem se desfaz, se desconstrói e se desertifica sem esperança.
Filho das promessas da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, o Homem do século XX pôs muito alta a fasquia da sua autonomia em relação ao mundo espiritual , ao mundo das ideias enquanto perscrutação do mundo ideal, e, com isso, construiu um desistente realismo sociológico em que , na impossibilidade de travar a onde que o arrasta e inunda, melhor fora organizar-se dentro dessa vertigem e afundar-se no seu realismo desesperado.

Cabe esta reflexão na sugestão balizada pelos posts recentes da Madalena Lello aqui e do Manuel S. Fonseca aqui e no reconhecimento de que vivemos um tempo em que se fala de ideias sem ideal, em que se confundem ideias com acções e programas políticos. É que nessa confusão que não tem qualquer valor lógico-filosófico, se reflectem o tempo do vazio que vivemos inundados pelo “tsunami” da ignorância, da indolência e da apatia. Os políticos que dizem ter uma ideia de qualquer coisa são a expressão acabada dessa ignorância, dessa indolência e dessa apatia, porque ao dizê-lo sabemos logo que têm ideias sem ideal, ou seja, não tem nem podem ter qualquer ideia, porque não abrem qualquer porta para uma outra realidade que nos libertasse do fatalismo e pessimismo do mundo sem ideal.
Ao tempo cujo ideal, ainda que distante, ou por isso mesmo, era um motor da imaginação e da renovação do mundo, sucedeu um tempo em que o ideal foi substituído pelo realismo sociológico. Esse realismo sociológico de fácil apreensão, ou seja, acessível a qualquer homem sem imaginação nem inteligência, naturalmente tem grande difusão pelas suas potencialidades demagógicas. No mesmo passo que semeia a pobreza, vende o igualitarismo que destrói a diferença que sustenta o mundo, a avareza que destrói o amor ao próximo e a inveja que destrói nos outros o Outro. Mas, acima de tudo, o que destrói é o mundo das ideias deduzidas de um Ideal de que cada um, à sua maneira é um intérprete pelo contributo da sua imaginação e inteligência. Planificado, o mundo, deixará de ter Poetas que subam aos píncaros da vida e depois voltem cá abaixo contar aos outros homens aquilo que viram.
O sofrimento consciente ou não do homem actual, filho da modernidade, não é o mesmo do Homem romântico do enlace com a natureza divinizada, nem do Homem saudoso do Paraíso perdido. É o Homem a quem é cortada essa ligação pela destruição do valor da imaginação e da inteligência na relação com o ideal e que assim fica reduzido ao imanentismo da sociologia, ao falso realismo da sociologia, ao pessimismo.

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sábado, 24 de maio de 2008

Jan Fabre no Museu do Louvre em Paris


Absolutamente a não perder!
Desconcertante para quem se inquieta com a vida. Uma mistura perfeita entre as obras e o olhar dos séculos passados com uma visão inquietante sobre o milagre da vida e das suas desordens. A reter, a instalação sobre as insónias. Pernas , braços e demais membros cobertos por olhos de vidro bem abertos para o terror de uma noite em branco e tudo o que se pensa e vê nessas horas infidáveis.Vale a pena não deixar passar...

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sexta-feira, 23 de maio de 2008

Festival de Cinema de Cans

Posso dar-vos um bom exemplo de iniciativa (privada?), com sentido (de humor!)? Simples: o Festival de Cinema de Cans. Por estranho que pareça, grafei correctamente o nome. Não se dobra o n e dispensa-se a segunda vogal: Cans não é Cannes. Estamos na Galiza, bem longe da Côte d’Azur.
É uma aldeia de 300 habitantes. Este ano realiza-se ali, pela 5ª vez, um festival que concorre no tempo e ganha em originalidade ao Festival de Cannes, em França. Exibindo só curtas-metragens, o Festival de Cans é a epítome do “agroglamour”. (Não se poupem: fixem-me este conceito).

Entre sacos de batatas e espigas de milho, com aquele aroma que enerva citadinos e tranquiliza pituitárias mais telúricas, o Festival de Cans, que está agora mesmo a decorrer, junta aos 300 indígenas recenseados mais de 4 mil peregrinos que sabem ao que vêm. Vêm assistir às projecções dos filmes que se fazem em 10 salas bizarras: tres alpendres, dúas adegas, dous baixos, unha vella casa abandonada, unha antiga lareira e un galpón, como se vangloria o site do Festival.

Em vez das limusinas que se esfalfam entre os grandes hotéis da Côte d’Azur, em Cans o transporte de sala em sala faz-se em atrelados puxados por tractores.

Encostada a Porriño, a 15 minutos de Vigo e uma hora de Santiago, Cans é, durante três dias, uma fantasia que nenhum surrealista teria sido capaz de inventar. É o género de coisa que deprimiria Freud e que não faria Marx sentir-se nada bem.

Para mim foi até hoje um segredo que só mesmo a cumplicidade do mais galego dos portugueses me faria descobrir. Para o ano, fico à espera do convite.
Ver para crer? Então vejam:

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quinta-feira, 22 de maio de 2008

A Primeira Vez


A PRIMEIRA VEZ
que eu vi mesmo o mar foi já no meio do Oceano Atlântico. Em Lisboa, Cais da Rocha, tínhamos entrado no Vera Cruz; descemos logo ao camarote e quando voltámos a subir – no dia seguinte? – cercava-nos um vasto tapete ondulado, de um azul inútil e livre. Flutuávamos num lençol oscilante: Houdini tinha escondido a terra.

A PRIMEIRA VEZ
que tive um medo inexplicável, nu e solitário, foi quando, sendo menor mas emancipado, um agente da DGS, em Luanda, me fez a entrevista prévia para ter o passaporte que ia abrir-me as fronteiras de alguns países europeus. Eu achava que ele detectaria, irremediavelmente, as obscuras e obscenas motivações que me dilaceravam, a saber: descobrir a liberdade de Paris e nunca mais cá pôr os pés ou, moreno e baixinho, converter-me no objecto sexual das louras de Estocolmo. Objectivos, confesso, falhados sem glória.

A PRIMEIRA VEZ
que senti a ontológica e perturbadora diferença da sexualidade feminina foi quando a minha mão pousou sobre a coxa de uma inocente Pandora (chamemos-lhe assim). Eu ainda longe da “idade de homem”; ela, “mais velha”, de shorts, num país tropical. O gesto foi cândido, mas o calor da lábil curva inflamou, de forma tão inesperada como agradável, o meu ego. Já não me lembro se trazia blusa ou de que cor, resta-me o ardor, o mesmo doce ardor, na palma da mão.

Escrever, meus caros bloggers da Geração de 60, é uma actividade tauromáquica e íntima. Quem é que entra a seguir na arena?

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O Mia Patria, sì bella e perduta

É tão ingénua a ideia de um pensamento que voa com asas douradas! E quem me dera dizer, em tom terno e fadista, "o mia Patria, sì bella e perduta!"



Este é o famoso coro "Va Pensiero sull` Ali Dorate" da ópera "Nabucco", de Giuseppe Verdi. Metropolitan Opera House, com direcção de James Levine, 2001.
Aqui vão as palavras para que cante a plenos pulmões:

Va', pensiero, sull'ali dorate.
Va', ti posa sui clivi, sui coll,
ove olezzano tepide e molli
l'aure dolci del suolo natal!
Del Giordano le rive saluta,
di Sionne le torri atterrate.
O mia Patria, sì bella e perduta!
O membranza sì cara e fatal!
Arpa d'or dei fatidici vati,
perché muta dal salice pendi?
Le memorie del petto riaccendi,
ci favella del tempo che fu!
O simile di Solima ai fati,
traggi un suono di crudo lamento;
o t'ispiri il Signore un concento
che ne infonda al patire virtù
che ne infonda al patire virtù
al patire virtù!

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Tempo e Silêncio

É do que preciso: tempo e silêncio. Y una casa en el cielo.



Cantam Cesária Évora e Pedro Guerra. Juntos, dzem as palavras que estão alinhadas abaixo. Parece espanhol. Podia ser espanhol. Mas, ditas como eles as dizem, não são palavras: são cielos y besos. E não é nenhuma língua: é só um desejo de estrelas.

TIEMPO Y SILENCIO
Una casa en el cielo

Un jardin en el mar
Una alonda en tu pecho
Un volver a empezar.

Un deseo de estrellas
Un latir de gorrión
Una isla en tu cama
Una puesta de sol.

Nacer en tu risa
Crecer en tu llanto
Vivir en tu espalda
Morir en tus brazos.

Tiempo y silencio
Gritos y cantos
Cielos y besos
Voz y quebranto.

(Pedro Guerra/ Luis Pastor)

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quarta-feira, 21 de maio de 2008

Verdade ou Consequência

Como bem refere Paulo C. Rangel, a entrevista de Manuela Ferreira Leite à SIC Notícias mostrou elementos inovadores relativamente ao canónico discurso político português, o maior dos quais terá sido a referência à "verdade" da mensagem. Eu, que fujo das entrevistas políticas como um benfiquista do Alvaláxia, suspendi a ida à cozinha para tomar o comprimido de lítio (brincadeira) e dei à senhora 2 minutos e 20 segundos de benefício da dúvida.
Por 2 minutos e 20, acreditei religiosamente em MFL - a fé, apesar de perigosa, também pode ser o início da compaixão -, como se estivesse num "remake" mental de "O Candidato" de Michael Ritchie, ou de "Network" e "As Chaves do Poder" de Sidney Lumet (nos três casos, infelizmente, quem fala a verdade lixa-se). Mas MFL sabe melhor do que eu que a verdade - como a realidade, de resto - não é um valor absoluto. Como diria o emérito alquimista Pôncio Monteiro, ela "depende do ponto de vista".
Apesar disso, as convicções de MFL quanto ao assunto parecem-me genuínas, e a rigorosa figura ser capaz de projectar nos possíveis eleitores essa convicção de genuinidade já não é coisa pouca. Pese os erros do passado, não é preciso ser um engenheiro nuclear para perceber que há mais esperança num bocejo de Manuela Ferreira Leite do que em todo o lóbulo frontal de Santana Lopes. Ou na enternecedora estratégia a longo prazo de Pedro Passos Coelho.

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terça-feira, 20 de maio de 2008

Vitor Constâncio

Vitor Constâncio deu um "aviso" segundo o qual o Governo não devia esperar muito do investimento público. Quando as dúvidas sobre o investimento público chegam ao governador do Banco de Portugal e este dá o sinal correspondente, então é mesmo preciso entender o que se passa. Este ambiente desfavorável ao investimento público parece generalizado, e quase só tem sido contrariado por gente que está próxima da área do governo - e por este vosso criado. O que se passa então? Eis uma explicação. Posso estar errado, mas que é uma ideia, é.

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Sistema de ensino: rumo à infantilização crescente

Ao que parece o Conselho Nacional de Educação - com a bênção já há tempos anunciada do Ministério da Educação - vai propor a fusão do primeiro e do segundo ciclos do ensino básico. Medida cujo intuito será o de submeter as criancinhas dos seis aos doze anos ao regime maternal-paternal do professor único (ou melhor do professor tendencialmente único). Tudo isso com o superior propósito de evitar os traumas da transição de um sistema de um único docente para um sistema de vários docentes.
Em Portugal, continua-se no trilho da infantilização e desresponsabilização de crianças e jovens. Que trauma pode sofrer um ser humano de dez anos por passar de um regime de professor único para um de cinco ou seis professores (se forem dez, como se diz, serão, de facto, demais...)? E esse trauma não se agravará se vier a ser sofrido aos doze ou treze anos, altura em que tem de lidar com todas as mudanças da adolescência?
Aos dez anos, não haverá já maturidade psicológica para viver com a diversidade e a multiplicidade das relações e dos carismas humanos? Não será altura de as crianças saírem do casulo para o mundo multipolar da teia de relações? Não será benéfico conviver com diferentes perfis e métodos de ensino e aprendizagem? Não se ganhará com a competência especializada dps professores de cada área? E já agora que tem isto tudo a ver com a pobreza infantil, que foi, pelo menos, no anúncio dos media, associada a esta reforma visionária?

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segunda-feira, 19 de maio de 2008

Histoire des Idées Politiques de l’Europe Centrale, Chantal Delsol, Michel Masłowski, (direction), PUF, Paris, 1998


Nunca poderei salientar vezes demais o meu menor interesse pela ciência politica. Não somos obrigados a gostar de tudo e entre a beleza de um teorema ou de uma obra de arte (a diferença é apenas formal) e a da dita ciência (para quem generosamente lhe quer dar esse nome) política a minha escolha está feita.

Mas diferente da ciência política é o pensamento político. O pensamento nunca pode ser desmerecido enquanto tal. As únicas épocas que o desprezaram com alguma autoridade estavam empanturradas dele. A nossa não se pode dar a esse luxo. O que é raro é valioso. Encontrar por isso quem tenha pensamento político é uma benesse e uma oportunidade.

A obra em questão em muitos aspectos, mais que História de um pensamento, é História de estruturas políticas e em parte de eventos políticos. Nenhum problema há nisso. Só por isso já é instrutiva. Mostra que na Europa Central se levou algum tempo a produzir um pensamento que fosse simultaneamente original e profundo. Não é grave. Raras épocas e raros países preencheram cumulativamente estes requisitos.

O que mostra é até que ponto não podemos tratar a Europa Central (e já agora a de Leste) com a condescendência que o temos feito nos últimos anos. Um dos problemas, e não o menor, é que temos feito uma transposição etnocêntrica em relação a ela. “Coitadinhos deles, são mais pobrezinhos que nós, têm tanto a aprender connosco”. E é verdade no que respeita à democracia e à economia do mercado.

Mas no que é substantivo na Europa, toda a Europa é constitutiva da civilização. Muitos dos movimentos espirituais, intelectuais da Europa encontram o seu centro e a sua origem da Europa Central e de Leste. Muitos dos problemas do que é ser europeu é ainda na nossa época que são lá pensados. Os problemas da decadência, da pequenez, que tanto preocupam muitos europeus, embora sejam muito acto de propagandas menos honestas, foram tratados com maestria pelo pensamento centro-europeu.

Que tenha sido João Paulo II um dos grandes reformadores da Europa não deve ser visto como estranho. O antigo papa não era uma aberração na Europa Central. Era um seu produto. Não apenas nas experiências ma igualmente nas ideias. Tendo feito as experiências dos limites, conhecendo os totalitarismos de direita e de esquerda, percebia o que uma civilização devia à sua espiritualidade.

Mais uma vez o duplo fundamento da Europa se encontra na Europa Central. Os pilares são o cristianismo, de que o exemplo mais recente é João Paulo II, e o paganismo indo-europeu, de que Patocka é o mais contemporâneo dos representantes. Um centrado em Cristo, outro no socrático cuidado da alma como fundamento da Europa, mostram que na Europa Central, exactamente por não se estar tão instalado num conforto de curto prazo, se foi capaz de pensar a Europa de uma forma muitas vezes mais profunda, mais responsável e mais pertinente que no lado ocidental do continente.

De entre estas personagens, destaco um padre polaco do século XVI. Piotr Skarga. Pacificar povos é coisa difícil. Pacificar igrejas ainda mais. Uni-las, obra de titã. É de sua obra em grande parte que ainda hoje em dia a Ucrânia uniata e ortodoxa seja simultaneamente uma zona de fricção mas igualmente de diálogo com a Rússia. A oportunidade e o risco foi em parte por ele criado. Cabe-nos a nós saber se estamos à sua altura.

http://www.puf.com/Book.aspx?book_id=011811
http://univ.gda.pl/~literat/autors/skarga.htm
http://www.staropolska.gimnazjum.com.pl/renesans/renesans_006.html
http://pt.wikipedia.org/wiki/Piotr_Skarga
http://www.alapage.com/-/Fiche/Livres/9782130490715/LIV/histoire-des-idees-politiques-de-l-europe-centrale-chantal-delsol.htm?donnee_appel=GOOGL




Alexandre Brandão da Veiga

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MFL: Regresso ao Futuro

Para aprofundar e aguçar o debate sobre uma querela política e partidária mais relevante para o nosso futuro colectivo do que a espuma dos dias deixa adivinhar, aí fica um texto publicado no Diário Económico de hoje.

Manuela Ferreira Leite tem centrado o discurso (também) num retorno do PSD às suas raízes (humanistas, reformistas, sociais-democratas, não populistas).
Muitos têm confundido (ou têm feito por confundir) essa tomada de posição ideológica com um regresso ao passado, uma “reprise” anacrónica dos “bons velhos tempos”. Enganam-se rotundamente.
A atitude programática e o perfil de liderança de Manuela Ferreira Leite representam, não um retorno, mas uma inovação – uma verdadeira ruptura na política portuguesa. Pela primeira vez, um líder se propõe falar verdade e só verdade. Com ela, o PSD e o país poderão ser governados com base numa visão realista, sem as lantejoulas da propaganda e do delírio.
Num país viciado em anúncios e lançamentos, em estatísticas deturpadas e manipuladas, nas discursatas do sentimento e da sensação, um político disposto a pagar o preço da verdade é pioneiro e abre uma janela de esperança. Manuela é um regresso, mas um regresso ao futuro. Ao futuro da política.

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domingo, 18 de maio de 2008

Direita e esquerda – ensaio de reabilitação (III)

Nos estados contemporâneos, a grande questão política formula-se na resposta ao desígnio da justiça. E, mais especificamente, da justiça social. Isto é, da capacidade de uma sociedade organizada prover às necessidades dos seus membros, de modo a assegurar a todos condições de dignidade e de realização.

A esquerda responde à questão, historicamente, pela via igualitária. O seu impulso cultural é o sentimento de insatisfação e de sofrimento perante as iniquidades das sociedades contemporâneas. A sua proposta política é, pois, a remoção dos obstáculos que tornam as pessoas menos iguais ou mesmo desiguais.

Saber se algum dia a utopia igualitária poderá concretizar-se em obra social realizada, é uma pergunta que parece desinteressar a actualidade. As cidades ideais dos filósofos estavam destinadas a ser apenas isso: ideais. E, efectivamente, a primeira vez que a grande utopia igualitária entrou na História converteu-se no seu oposto. Tudo isto parece ainda demasiadamente presente...

É certo que há problemas no mundo contemporâneo que os movimentos tradicionais de esquerda nunca tinham colocado a si próprios, e que, paralelamente, desapareceram alguns dos pressupostos em que esses movimentos tinham baseado não só o seu projecto de transformação da sociedade, mas também a sua força.

Nestas circunstâncias, portanto, a esquerda de hoje não é a esquerda de ontem. Seja como for, a verdade é que reage à desorientação com um fechar da guarda em torno do seu grande axioma: ainda e sempre, a igualdade.

Ora, talvez seja este, justamente, o equívoco da esquerda. O equívoco em que a esquerda persiste. Para fundar a justiça, a esquerda continua a perseguir a igualdade.

Fazendo-o, prossegue um desígnio de nivelamento. Que é, necessariamente, feito por baixo, obedecendo aos apelos dos que reivindicam a igualdade absoluta. A exigência da igualdade universal é sempre uma especulação na baixa (Max SCHELER). Enquanto pura ideia racional, a igualdade nunca pôde mover vontade, desejo ou emoção. E, enquanto exigência, oculta o ressentimento e a dor perante o espectáculo de valores eminentes. A igualdade moral dos homens é um falso pressuposto, negado pela cultura helénica, como depois o foi pelo cristianismo. Mas, de alguma forma, é retomada pela esquerda moderna e, a partir dela, acaba por fundar os vários relativismos contemporâneos. Noutro plano, só aparentemente contraditório, o apego às noções objectivas e universais nega a ideia de revelação e, assim, o facto, incontestável, de que nem todos lhe acedem e que, no próprio universo dos que o fazem, nem todos acedem de modo igual. Nega-se, pois, toda a teoria do conhecimento e de uma cultura verdadeiramente humana.

A moral igualitária – e, portanto, a esquerda, enquanto a preconizar - nega a hierarquia, o pensamento, a transcendência... (João Luís FERREIRA).

Talvez por tudo, tenha Karl Popper confessado um dia: se pudesse haver um socialismo combinado com a liberdade, ainda seria socialista (Busca Inacabada, Esfera do Caos, 2008, p. 57).

Pretende certa esquerda, que não há nenhum contraste entre o ideal da igualdade e o reconhecimento da diversidade. A diferença entre direita e esquerda residiria, afinal, na diferença de critério que permite julgar quem são os iguais e quem são os diferentes.

Mas o ponto é que, em rigor, só a esquerda persegue a igualdade. A direita, funda-se na liberdade, para alcançar a justiça – o que é, substancialmente, diferente.

A liberdade é a confiança em si mesmo. A liberdade funda a percepção do êxito como recompensa.

A fonte reside na inteligência que concebe, na imaginação que faz empreender, na obstinação que leva a perseverar. Afinal, a liberdade radica numa imensa aposta nas possibilidades da própria liberdade.

Quanto à sociedade liberal, é claro que as hierarquias que nela introduzem as desigualdades das situações económicas fazem do exercício da liberdade o monopólio dos privilegiados. Produto da liberdade, o capitalismo gera o proletariado. No entanto, não é nesta perspectiva pessimista que o liberalismo nascente considera a liberdade. O liberalismo dá mais importância ao seu fundamento do que às suas consequências. E a liberdade pertence a todos os homens, ainda que nem todos estejam igualmente habilitados a usá-la (Georges BURDEAU). Mas esta desigualdade não é uma predestinação – a experiência e a reflexão podem corrigi-la.

As espantosas semelhanças quanto ao modo de compreender a liberdade entre o Bill of Rights, a Petition of Rights, as Declarações da Virgínia ou do Massachusets e a Declaração de 1789 demonstram que a liberdade não foi criada – ou outorgada – mas que existe. Indelevelmente ligada à natureza humana, nada deve às autoridades sociais. A liberdade é prévia à instituição do poder e, numa decisiva implicação, limita o poder.

A profissão de fé na liberdade obriga a tomar consciência de que a essência da democracia está nela e nunca no exercício do poder. Não existe um exercício democrático do poder ‘a se’. A democracia justifica-se, obriga-se e limita-se na liberdade. E implica uma permanente suspeita sobre o poder, em nome dessa liberdade legitimadora.

Na doutrina liberal tradicional, o Estado exige pouco do indivíduo, mas pelo menos espera dele que subordine a sua atitude à consideração dum bem colectivo em cuja definição participa enquanto ser racional e responsável. Esse bem é a paz obtida por um escrupuloso respeito da lei. Tradicionalmente, qualquer perturbação desta ordem é considerada como um germe de anarquia.

Este raciocínio foi e é usado pelos governantes para exigir dos governados o estrito cumprimento dos seus deveres. Mas continuará válida uma tal identificação entre civismo e abnegação?

Se a regra deixa de exprimir um imperativo da consciência iluminada pela razão, a política deve aceitar ser discutida A eclosão de determinados movimentos sociais, designadamente no campo do ambiente e da ecologia ou dos direitos das minorias, são um sinal do despertar da consciência cidadã que já não aceita as regras impostas sem considerar as suas exigências. Nesta perspectiva, é a contestação que se torna um dever, já que, mostrando que a regra é vulnerável, torna imperativa a exigência da sua modificação.

A nova dialéctica entre civismo e contestação faz perder ao primeiro o seu aspecto de aceitação e à segunda o seu travo de rebelião (Georges BURDEAU). Portanto, não só não se excluem mutuamente como é muito plausível que este novo civismo contestatário possa devolver ao liberalismo a sua pureza inicial.

Na minha opinião, é a esta outra luz que deve revisitar-se, hoje, a mais segura e inspiradora tríade política de sempre: i.) liberdade individual; ii.) santidade da justiça; iii.) limitação do poder do Estado.

Mas estes não são pressupostos de esquerda.

Continua…

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sexta-feira, 16 de maio de 2008

A liberdade segundo Luís de Molina

Agradeço ao Martim Avillez Figueiredo a informação sobre Philippe Van Parijs, autor que desconhecia e que, à primeira vista, me parece ter a enorme virtude de querer repensar o marxismo à luz das mudanças económicas e sociais ocorridas durante todo o século XX. O Ocidente, de facto, enquanto não fizer as pazes com o marxismo não poderá afirmar-se verdadeiramente no mundo. Nesse processo, porém, teremos de acertar as contas com o materialismo, pecado original da modernidade pós-cartesiana, de um modo geral, e do marxismo, em particular, que continua a empurrar o homem para baixo daquilo que ele pode e deve ser.
É nesse sentido que já há alguns anos tenho chamado a atenção para os pensadores ibéricos da segunda escolástica, cuja originalidade surge definitivamente expressa no pensamento de Francisco Suárez – autor extraordinário, cuja ineficaz influência no pensamento ocidental advém sobretudo do facto de estar enterrado em Portugal. O referido curso da Universidade Católica dedica-lhe, aliás, penso que uma aula, ao que sei a cargo da Dra. Ivone Moreira.
Ora, no que diz respeito à liberdade (sobre a qual falarei neste post, deixando para o próximo a questão da sua relação com a igualdade), Suárez continua a meditação de Luís de Molina, tal como vem desenvolvida na sua obra «Concórdia do livre arbítrio com os dons da graça, divina presciência, providência, predestinação e reprovação, a partir de alguns artigos da Suma Teológica de São Tomás», publicada em Lisboa, em 1588. Resumirei aqui apenas a disputa II, que justamente pergunta: «O que deve entender-se pelo nome de livre arbítrio?» (traduzo a partir da edição original de Lisboa, que é a que tenho à mão, embora tenha sido recentemente editada uma tradução castelhana, acessível em http://www.filosofia.org/).
Liberdade – diz Molina – pode entender-se de três modos: um, enquanto se opõe à servidão do pecado, isto é, enquanto beatitude – trata-se, neste sentido, de liberdade religiosa; outro, enquanto se opõe à coacção, isto é, enquanto impulso natural, ou espontaneidade – trata-se, neste sentido, de liberdade física; outro, enquanto se opõe à necessidade, isto é, enquanto acção propriamente humana – trata-se, neste sentido, de liberdade moral.
Ora, a liberdade, como se verifica pela experiência, é um acto próprio da vontade, o qual tem de ser antecedido, porém, por um juízo, ou arbítrio, da razão. De facto, para que um acto seja moral, tem que poder imputar-se-lhe ou o mérito ou a culpa, o que só poderá acontecer se aquele que age tiver previamente discernido o bem e o mal moral, relativamente a esse acto, por meio da razão. Depois dessa apreensão racional relativa à bondade ou à maldade do acto, porém, a vontade tem que permanecer livre para agir e para não agir, ou para agir de tal maneira que possa fazer tanto uma coisa como o seu contrário, sem o que esse acto não poderá verdadeiramente dizer-se livre.
É no terceiro sentido, portanto (isto é, enquanto liberdade moral), que a liberdade propriamente se dá, segundo o qual se diz que agente livre é aquele que, estabelecidos todos os requisitos para agir, pode agir e não agir, ou então agir de tal maneira que possa fazer uma coisa tanto quanto o seu contrário. Eis a definição que Molina dá de liberdade, a qual tantas controvérsias haveria de gerar na história.
A liberdade, deste modo, embora dando-se formalmente na vontade, não se identifica absolutamente com ela, já que a vontade não tem este poder de escolha perante todos os seus actos. O acto livre, portanto, é o acto da vontade que, precedido pelo juízo da razão, e com os limites próprios do poder de Deus, por um lado, e da inclinação natural, por outro, pode agir e não agir, e agir de uma determinada maneira ou daquela que lhe é contrária. Ora, este é o acto moral, que é aquele que, segundo Molina, tem plena e perfeitamente a natureza da liberdade (Cfr. Concordia…, disp. II, num. 1-5).
Era isto o que, fundamentalmente, aqui queria relembrar: Falar de liberdade é falar do homem, o qual é matéria e forma, corpo e alma. Reduzir o homem à sua dimensão corporal implica reduzir a liberdade a um mero impulso, ou espontaneidade natural, tal como reduzir o homem à sua dimensão espiritual implica reduzir a liberdade a uma simples obediência a Deus. Num e noutro caso estamos, ainda que diferentemente, no domínio da necessidade. A liberdade física, ou ausência de coacção (segundo a qual a pedra, ao cair, se diz livre), e a liberdade religiosa, ou ausência de pecado (a que imediatamente se adere pela presença de Deus), dizem-se liberdades, portanto, por uma certa analogia com a liberdade moral, que é aquela em que a liberdade própria ou essencialmente se dá.
É esta a pobreza das doutrinas marxistas, que, compreendendo todas as coisas no seio de um desenvolvimento histórico feito a partir de um princípio material, reduzem o homem à sua praxis económica, primeiro, e económico-política, depois, a partir do que reduzem a liberdade à mera ausência de coacção exteriormente imposta aos desejos de cada um (vide a definição de liberdade de Van Parjis vertida no post do Martim Avillez Figueiredo).
Ora, as propostas da chamada terceira via – em que Van Parjis necessariamente se inscreve – não são mais do que o fruto maduro da associação ideológica subterraneamente estabelecida entre o liberalismo e o marxismo, cujo resultado não pode ir além da definição política de limites económicos: rendimentos mínimos garantidos para toda a gente (que em Portugal foram introduzidos por António Guterres), ou rendimentos máximos estabelecidos para alguns (agora em discussão na União Europeia a propósito dos ordenados dos gestores).
Seja como for, neste estado de coisas, a Sofia Galvão tem razão: liberdade e igualdade não são compatíveis, pois que, no mundo das coisas materiais, ou se limita a liberdade em nome da igualdade, ou se limita a igualdade em nome da liberdade. Pretender o contrário é esquecer a questão imposta pela crise ambiental (a única que talvez venha a pôr definitivamente em causa o capitalismo): os recursos não são ilimitados!
Para que liberdade e igualdade possam ser conciliáveis – melhor, possam pôr-se de acordo (assim lembrando, uma vez mais, a obra de Molina: Concordia liberi arbitrii cum gratiae donis…), teremos de compreender o homem e o mundo também a partir da dimensão interior do ser, na qual, apenas, poderemos (re)descobrir a comunidade. Mas isso ficará para o próximo post.

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quinta-feira, 15 de maio de 2008

AINDA O "CASO ESMERALDA"

Suponho que muitos estarão completamente desinteressados deste "caso". Contudo gostaria de deixar aqui o prefácio que escrevi para o livro de Margarida Neves de Sousa e Rita Marrafa de Carvalho: "Esmeralda ou Ana Filipa, dois nomes, dois pais" porque acredito levantar algumas questões de interesse geral:
..."Confesso que até ao convite para o programa “prós e contras”, não tinha acompanhado de perto, antes de forma distraída, o “caso da pequena Esmeralda”. Parecia-me haver aspectos de exibição mediática que me desagradavam profundamente, porque contrários a uma análise séria e racional de um caso seguramente complexo. Mais tarde, alguém me referiu um editorial da revista “Sábado”, onde, contra a corrente, se defendia uma posição favorável ao pai biológico, e se descreviam detalhes que outros “media” pareciam não estar interessados em divulgar, talvez porque se esvaziasse o entusiasmo das massas que animavam o circo televisivo.
Ainda hoje me sinto algo irritado com a forma incompetente como não consegui transmitir com clareza o meu pensamento no programa de debate público, mas também indignado com a forma intelectualmente desonesta como a questão foi por muitos abordada. Devo declarar, em primeiro lugar, que não sei se foi boa a decisão judicial. Este é um ponto crítico. Não sei se foi boa por muitas e diversas razões. Não conheço a criança nem o seu pai. Não conheço o sargento e a sua família, nem estou plenamente informado sobre as importantes questões jurídicas que rodeiam o caso. Nem eu nem a enorme maioria dos opinantes, que com segurança afirmam posições inequívocas a “favor da criança”, manifestando indignações de justo perante os Herodes judiciais. Estou seguro que este livro trará uma luz mais diversificada sobre esta questão.
A forma demagógica como muitas vezes o tema tem sido tratado causa repulsa. Quantas vezes o “pai” adoptante foi designado de pai “afectivo”, parecendo criar à partida uma diferença para com o pai “biológico”, como se este não fosse também, e seguramente, sujeito amante da sua filha. Muitas mães adoptivas utilizam a expressão: “tu és filho do meu coração”, para salientar a importância da escolha voluntária daquela criança, que por isso teria mais valor do que a lotaria biológica. A verdade, porém, é que quase sempre, a ligação biológica traz consigo laços afectivos que são, muitas vezes, inexpugnáveis, como todos nós, pais e mães, bem o sabemos. A Dra. Maria de Jesus Barroso, por quem tenho o maior respeito, e que formalmente aqui expresso, parece-me ter sido vitima e cúmplice de afirmações emocionais que escondem verdades mais prosaicas. Assim, não teve pejo em afirmar, que o Snr. Sargento tinha sido preso por “amar uma criança”. Extraordinária afirmação de quem ao longo de toda a sua vida defendeu o Estado Democrático e as suas instituições. Não, este militar não foi preso por amar, antes foi preso por desobediência aos tribunais, atitude que seguramente a Dra. Maria de Jesus, não defende como legítima. Claro que a pena parece ser absurda, mas essa é uma outra questão.
Talvez a minha indignação maior se volte contra os “profissionais dos afectos” e seus sacerdotes máximos, que com modulações adocicadas de voz, e a segurança dos verdadeiramente ignorantes, provocam náuseas e estragos. A mente é demasiadamente complexa, as influências múltiplas, a nossa experiência limitada, para que alguma vez se possa afirmar com inteira certeza as consequências para a Esmeralda da decisão judicial. Este é um ponto essencial que nos deve fazer parar para reflectir, e com humildade confessar que mesmo a nossa melhor opinião, poderá não se transformar na melhor decisão. Gostaria apenas de levantar alguns pontos que me parecem importantes de considerar para trazer maior ponderação ao debate. Todos nós temos uma História. Eu sou, em boa medida, e não só do ponto de vista estritamente biológico, o que herdei dos meus pais e avós. Sou também os episódios contados de geração em geração, a casa que já não é, as medalhas do bisavô Governador. É essa a minha pertença, é essa a minha herança, a ela tenho direito porque de mim indissociável. É isto que uma adopção não pode dar, será talvez por isso, que muitas crianças adoptadas, quando chegada a adolescência, procuram desesperadamente as suas origens, perante o pasmo das famílias que todo o amor e conforto lhe deram. Não é razoável supor-se que mesmo aceitando a adopção, se obrigasse a criança a cortar todos os laços com o seu pai. Que conflitos emocionais, quantas tensões e divisões ocorreriam nesses encontros, em que decerto “eu sou o teu pai” seria ouvido mais de que uma vez, e a culpa sentida pelo inocente. Como explicar aos amigos e outras crianças que aquele senhor fardado que a levava à escola não era “bem” o pai, ou se afirmasse o contrário, não se sentiria traindo aquele que sendo verdadeiramente o pai, por ela lutou e tanto a quis?
Mais uma vez declaro que não sei se foi boa a decisão judicial. É, aliás, a minha única certeza. Cuidado, porém, com os psicólogos sábios, técnicos infalíveis das profundezas das mentes, definidores do branco e do preto, criadores de lobos maus e capuchinhos vermelhos, que ao fazerem afirmações peremptórias, onde não surge a sombra de uma dúvida, insultam a inteligência, assumem vestes que lhes ficam largas, mas sobretudo, ao esquecer as forças que ligam pais e filhos, decerto misteriosas, sem dúvida poderosas, reduzem a Vida."

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É bom...

...estar acompanhado no optimismo (os que não têm tempo
vejam sobretudo o último parágrafo).

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A Igualdade e Liberdade em Coimbra - declaração a uma faculdade


Esta é uma declaração de amor a uma Faculdade, à minha: a Faculdade de Direito de Coimbra. E só o texto oportuno do Martim Avillez Figueiredo teve o condão de me a suscitar. É o meu texto sobre a Igualdade e a Liberdade, sem o brilho académico do Martim ou da Sofia Galvão.

A Faculdade de Direito congregava os espíritos mais díspares que se possa imaginar:tínhamos Professores tão conotados com o antigo regime que no 25 de Abril haviam sido saneados, bem como outros que, sendo de esquerda, haviam sido proibidos de dar aulas nesse regime. Ou seja, tínhamos Professores saneados à esquerda e à direita. Em 1990 já haviam sido recuperados, retomando as suas cátedras. Tínhamos por isso um ensino dialéctico, dual, esquisofrénico, dicotómico, antagónico. Linha dura PCP em Economia Política com Avelãs Nunes, estudando, os sistemas económicos na perspectiva da gloriosa transição para o socialismo, Direito do Trabalho com Jorge Leite, Direito Constitucional com Gomes Canotilho já mais próximo do PS, passando pelos ensinamentos preciosos deixados por Mota Pinto em Direito Civil, até Direito das Coisas, ou das Obrigações dados por Henrique Mesquita e Ameida Costa - ou de como o direito existe para proteger a propriedade e os credores.

Tínhamos assim que nas aulas dos Professores de direita, criticar ferozmente os desvios de esquerda, e nas aulas dos mestres de esquerda defender os trabalhadores, as cooperativas e as máximas de esquerda na Constituição.

O mais extraordinário é que o próprio ambiente da faculdade era assim: no mínimo eclético. Salvo algumas excepções, não tínhamos carro ( o que justificava a nossa elegância). Vestíamos mal e ninguém tinha um ar sofisticado. Devia ser por isso que o traje académico tinha muita saída. Havia muitos colegas dos PALOP que passavam mal naqueles invernos. Tínhamos muitos filhos de operários e oriundos dos meios rurais, ou do pequeno comércio. Muitos moravam em residências universitárias. Havia também "filhos família", que vinham essencialmente da burguesia do norte e das famílias de Coimbra. Ninguém sobresssaía muito. Uns porque eram pobres, os outros, porque não o sendo, tinham pais que cultivavam a modéstia e a discrição.

É claro que esta distinção também determinava o futuro das profissões jurídicas: geralmente para os primeiros o notariado e as magistraturas, para os segundos a advocacia e maior protagonismo público.

Todavia, nessa altura ainda não sabíamos isso e travávamos discussões de dimensão biblíca sobre o estado do mundo no bar, enquanto o Sr. Beltrão impaciente guardava os nossos livros na sala de leitura.

Havia no entanto, um factor de absoluta homogeneidade em todo aquele ambiente: a cultura da exigência. Só ia às aulas quem queria, não existia qualquer tipo de obrigatoriedade. Fomentava-se a dificuldade a todos os níveis. Tudo era espartano e feito pelo mínimo. Não havia salas, não havia materias de apoio, havia um frio de rachar os ossos que fazia com que soubesse bem o quentinho daquelas centenas de almas tão juntinhas. Ninguém cuidava de nós, porque se partia do pressuposto saudável que aos 18 anos sabemos cuidar de nós. Eu não devia saber porque vendi apontamentos, sebentas e livros só para ter mais uns trocados aplicados em coisas muito pouco nobres que mais tarde me fizeram falta.

Dêem-me um aluno de Direito de Coimbra e eu mostro-vos alguém capaz de desmontar argumentos, um advogado do diabo tal qual a Santa Sé os inventou.

Quanto a mim, que aos seis anos, no dia em que entrava na escola primária, tive um pai que me chamou e disse "Vai, cuida de ti, nunca me faças queixas, porque jamais irei à escola defender-te, resolve lá os teus problemas" senti-me em casa naquele lugar.

Parece-me que acabei a escrever, novamente, sobre direita e esquerda. Quem diria, só queria escrever sobre Igualdade e Liberdade...

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Da Visão: Cenários

1 – Pedro Passos Coelho é o vencedor anunciado das próximas directas do PSD. Não me refiro a uma vitória no sentido literal, bem entendido. Mas o objectivo de Passos Coelho não é, nem poderia ser, esse. O candidato, que beneficia grandemente de um enorme deficit de expectativas, dificilmente não sairá reforçado do acto eleitoral. Basta-lhe não ser estrondosamente «esmagado». A partir daí tudo jogará a seu favor: a idade, a novidade, a experiência do «padrinho» e sobretudo a enorme probabilidade de a próxima liderança do PSD só vir a gerir o partido até à «débacle» de 2009. Já o disse e repito: dos três candidatos (omito deliberadamente as restantes «non-entities») é o único que pode representar e (consequentemente) vir a ter um futuro a longo prazo. Se tivesse de apostar diria que Pedro Passos Coelho vai ter um. Assim tenha a arte e o engenho para não se colar demasiado aos apoios menezistas.
2 – Santana também não está exactamente morto. Politicamente, diria que é mesmo uma espécie de morto vivo. Nas próximas directas ninguém lhe pede que ganhe (embora esse não seja um cenário absolutamente implausível, até porque o extraordinário submundo do PSD já deu provas suficientes da sua imprevisibilidade). Uma derrota marginal teria todas as vantagens práticas de uma vitória sem nenhum dos inconvenientes que aquela acarretaria. Com um «poleiro» no Parlamento, com um lugar cativo nos media e com um «killer instinct» que nunca perdeu, passaria os próximos meses a conspirar e a fazer a vida negra a um próximo líder do PSD fragilizado por uma vitória inexpressiva. Com os olhos postos num desaire em 2009 que tudo faria para alimentar. E que lhe permitiria voltar ao mundo dos vivos na própria noite das eleições legislativas. Nem George Romero inventava um guião assim.
3 – Paradoxalmente, Manuela Ferreira Leite é portanto a candidata com a vida mais difícil. É obviamente a única que não pode perder. Mas é também a única a que não basta ganhar. Pede-se-lhe que ganhe «por muitos». Qualquer outro cenário coloca-a na situação fragilíssima de não poder controlar a sua própria sucessão depois de 2009 (já o escrevi: Manuela Ferreira Leite será, quando muito, uma líder para atravessar o período de nojo de que o PSD precisa para esquecer as suas insanas derivas dos últimos tempos). Acontece que, para ter sucesso, Manuela Ferreira Leite não pode mostrar tão obviamente ao que vai. Uma coisa é que toda a gente saiba que está numa transitória missão de sacrifício, outra coisa é que toda a gente pressinta o enorme enfado com que se presta a tão ingrata tarefa. Não se mobiliza ninguém com o ar maçado de um Hércules com o mundo às costas.

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quarta-feira, 14 de maio de 2008

Porque é que não há parasitas no Hawai


Ah grande blogue! Comentários estimulantes. O meu amigo Tiago Mendes ralhou comigo lá de Oxford. Diz que nos blogues não se pede quórum. Pronto, estou ensinado. Vou tentar escrever por isso pouco, mas ser claro. Van Parijs tem uma resposta para o problema da igualdade formal e dos recursos escassos de que fala a Sofia Rocha e o Pedro Lains. E usou os surfistas (que surgem na capa do livro) para provocar o governador do Hawai, Wadsworth Yee, dizendo-lhe que estava enganado quando, em 1971 (referindo-se aos surfistas que inundaram a sua pequena ilha para 'surfarem' o generoso sistema de welfare local) os mandou embora dizendo: "We want no parasites in paradise".




Para resumir, imaginem uma situação original em que duas pessoas recebem duas porções de terra. Uma delas é trabalhadora (Parijs chama-lhe Crazy), a outra easy going (ele chama-lhe Lazy). Nessa sociedade, aos dois é dada a liberdade formal de fazerem o que desejam (livre de interferência dos outros através da aplicação vigorosa do direito de propriedade) e concedida absoluta igualdade formal (ambos têm rigorosamente os mesmos meios).
Sucede que, passado algum tempo, Crazy já plantou tudo - e retira daí o seu rendimento - enquanto Lazy lavrou metade da terra apenas, vivendo feliz com esse rendimento menor e dedicando-se depois ao lazer.
Suponha-se, agora, que Crazy (que era já o mais rico) reclamava. Prometeram-lhe liberdade de fazer o que queria e igualdade - ou meios para ao atingir. Porém, era-lhe vedada a possibilidade de trabalhar mais, já que a terra de Lazy estava protegida legalmente. Ora, nesta sociedade simples, o único a quem era concedido o direito de ser verdadeiramente livre e igual (feliz?) era o mais pobre (Lazy). Crazy era aquele a quem era vedada a liberdade formal e a igualdade formal (ele não era livre de desejar o que queria nem lhe eram concedidos os meios para o concretizar).
Parijs inverte os papeis de propósito - ele quer convencer os capitalistas que o seu modelo se ajusta às necessidades dos mais ricos em vez de se destinar a proteger os mais pobres ou mandriões.
Como sugeria o Pedro Lains, o Governador dessa pequena terra poderia responder - os recursos são escasssos. Mas Parijs não se dá por vencido: ele prometeu que Crazy seria tão livre e igual como Lazy, e para isso precisa de lhe dar a fatia de terra que este último, por vontade própria, nunca quis cultivar. Como? Uma venda normal não funcionaria - isso impediria essa sociedade, no caso de Lazy um dia mudar de ideias e desejar mais terra, de lhe garantir também igualdade formal toda a vida. Isto é, o valor de mercado da terra disponível nunca seria equivalente ao valor da garantia de existência de igualdade formal.
Pois bem: é aqui que Parijs introduz o seu conceito de rendimento garantido. Em vez de uma venda, Lazy trocaria o seu direito de cultivar terra por um direito universal e para toda a vida pago em dinheiro. Por isso o rendimento é incondicional - mesmo que Lazy um dia se torne mais rico, recebe-o. O rendimento é a expressão universal da sua igualdade formal e a garantia da sua liberdade.
Repare-se: Van Parijs está aqui a legitimar a diferença social baseada no rendimento. Era possível - e até desekável - que existissem muitos Crazy nessa sociedade. Porquê? Porque só isso lhe permite defender com a mesma convicção esse ideal de esquerda de que uma sociedade deve salvaguardar todas as formas de vida. Se alguém escolhe nada fazer, nesta sociedade isso é possível e financiado pelo rendimento garantido. Porque essa pessoa é tão livre e igual como um milionário - e é a existência das duas posições (ou formas de vida) que assegura a sobrevivência dessa sociedade.
Dito de outra forma ainda: é a existência de pessoas que não querem trabalhar que legitima a existência daquelas que o querem fazer. E vice-versa. Isto é, ambiciosos e preguiçosos completam-se. Uns não poderiam viver sem os outros. E Van Parijs, que não esquece a economia, recorre a Schumpeter para contornar a inevitabilidade da lei de Malthus - os recursos são escassos numa sociedade não criativa. Nesta, o engenho (ou a destruição criativa) dos Crazy geraria mais recursos, uma vez que a existência de Lazy se encarregaria de alimentar permanentemente o sistema com novas oportunidades (mais pedaços de terra disponíveis).
Percebe-se assim a provocação lançada ao Governador do Hawai. Um surfista, nesta sociedade, não é um parasita: é uma peça que alimenta o sistema porque deixa oportunidades livres para outros, mais empenhados em fazer dinheiro com elas.
Parece demasiado bom, não parece?

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