Relações de vizinhança
O que é um vizinho? É o que está perto de nós. Quando os vizinhos são países nem nós os escolhemos nem eles a nós. Foram meras vicissitudes históricas (a História tem importância afinal) que nos fizeram ficar perto. Conheço europeus que sentem muito mais afinidades com indianos, chineses ou brasileiros. Mas a verdade é que lá estão eles, teimosamente, os nossos vizinhos. São outros. São árabes, turcos e turcófonos.
Independentemente de maiores ou menores simpatias um vizinho tem um estatuto especial. Está perto. Cola-se à nossa vida e nós à dele. Podemos ignorá-los mais ou menos, mas nunca completamente, nem eles a nós. Não se trata portanto de simpatias especiais. De entre os não europeus tenho mais simpatias pelos indianos, pelos persas e pelos árabes, porque admiro mais povos criativos que medíocres. Mas isso é questão de gosto pessoal. Irreleva portanto.
O que fazem os vizinhos? Podem ignorar-nos, mas não é o caso porque somos mais ricos, mais ricos económica e culturalmente e, esquecemo-nos desse facto, somos muito grandes. Grandes demais para ser ignorados. Podem entrar-nos dentro de casa pela emigração, ou querer ser o que nós somos por uma paixão doentia e não correspondida, como acontece com os turcos. Podem odiar-nos, invejar-nos, ter ressentimentos em relação a nós e ao mesmo tempo admirar-nos.
É evidente que cada um dos nossos vizinhos é diverso do outro. Uns são particularmente sofisticados, como os do Levante (Médio Oriente e Egipto), outros um pouco menos (como os do Maghreb) outros nem sabem bem o que são, como os turcos e turcófonos da Turquia e da Ásia Central.
Mas têm aspectos comuns. Participam de processos civilizacionais falhados, que não produzem nenhum génio desde o século XII (árabes), ou nunca produziram (turcos). E que já não são potências relevantes desde o século XVIII no melhor dos casos (Turquia).
Que relações queremos ter com os nossos vizinhos? Para quem quer a paz, prefere que sejam boas. A ideia miraculosa da Europa, típica do seu espírito cristão, é o da engenharia histórica. Queremos convertê-los em europeus. Como? Através da ajuda humanitária e da ajuda ao desenvolvimento. Achamos que se eles forem ricos como nós estarão pacificados. E como enriquecê-los? Transformando-os em economias tipicamente europeias, em sociedades europeizadas. O herdeiro do espírito da cruzadas, generoso, mas visto como agressivo pelos nossos vizinhos.
É que se esta ajuda é sinal de sensatez, de sentido de responsabilidade e de generosidade, no que concedo, esquece o facto de que os povos não se alimentam só de pão. O que diríamos nós se a nossa última glória cultural fosse Santo Anselmo? Se não houvesse, nem Bach, nem Gauss, nem Tolstoï, nem Kant, nem Heisenberg, nem Camões? Se a nossa última poesia de relevo fosse a trovadoresca, e o nosso último grande pintor fosse Giotto? Que diríamos, caso fossemos turcos, caso não tivéssemos deixado nenhum nome para a História da cultura, ou apenas o conseguíssemos se disséssemos que Rûmi, poeta persa, era turco? Seria como dizer que Portugal é um país de grandes filósofos porque Ortega Y Gassett viveu refugiado em Lisboa algum tempo.
A pacificação pela ajuda é um instrumento, mas não basta. Os povos sentem necessidade de ter orgulho na sua cultura, sentem necessidade de prestígio em suma. O Japão não se pacificou apenas pela prosperidade económica. É porque a sua cultura tem prestígio. A Arábia Saudita, país rico, vive no ressentimento porque não produz um único homem de cultura que tenha prestígio.
O problema é que não podemos ajudar os outros a ser criativos, a serem estudiosos, a serem inteligentes. Pode-se dar o caso portanto de os nossos vizinhos se desenvolverem estrondosamente, mas continuarem estéreis sob o ponto de vista cultural, folclóricos em suma.
Uma das estratégias é a de fazermos de conta que ficamos fascinados com a profundidade da sua cultura. É o que tem acontecido com o cinema turco e com certos músicos turcos que alguns países europeus tentam promover. Mas não se encontram nem Eisenstein, nem Strawinski entre eles. E quanto a matemáticos ou físicos turcos, nem se pode fingir que eles existem. A longo prazo vale o que vale, como todos os embustes. Perceberão que nada resta, porque nada havia de origem.
A outra é a de rezarmos para que eles se resignem. É pia intenção e duplamente arriscada. A longo prazo não é muito sustentável a prosperidade sem invasões guerreiras (caso turco) ou sem criatividade (como aconteceu com árabes e persas). É mesmo duvidoso que se desenvolvam sequer de forma consistente nos próximos tempos. E pode-se dar o caso que um dia acordarem lúcidos e verificarem que têm uma cultura não criativa. Pensamos dizer-lhes: “ora isso não tem tanta importância assim”?
Não é por acaso que há fundamentalismos. O problema é económico-social mas também simbólico e cultural. Aquilo a que os estamos a obrigar é a que deixem o seu paradigma de civilização ou então que retornem a fontes arcaicas. É o que têm.
Daí que a vacina não baste, é necessário o hospital. Não é dizendo que nunca vai haver doença que a evitamos. Da mesma maneira não é dizendo que nunca vai haver guerra que ela nunca se verificará. Ou deixamos o hospital a ser gerido por outros, no caso os americanos, e toda a nossa política fica dependente deles, ou pagamos o preço desse hospital.
Porque historicamente os vizinhos fizeram guerra. Evitá-la implica reconhecer a sua possibilidade. E dotar-se dos meios para a vencer. E se não a queremos, se não a queremos real e profundamente, temos de não depender de guarda-chuva dos outros. Sempre que molhar mais para o lado deles escuso de dizer quem vai ficar protegido. Por isso quando vejo um político dizer que o nosso principal aliado são os americanos, pergunto-me se ele vota para o congresso americano ou o presidente dos Estados Unidos. Não sendo o caso, entrega-se nas mãos do Espírito Santo. E como diz Jung: “que imprudência!” Sobretudo porque não é espírito, e muito menos santo.
Alexandre Brandão da Veiga
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