quarta-feira, 16 de março de 2016

Pátroclo e Aquiles II


 

 

Mas há Briseide. Aquiles afinal tem apego por uma mulher, que é suficientemente importante na sua vida para largar a sua arte principal, a luta contra os troianos. Suficientemente importante para cortar a sua relação com o groso das tropas dos aqueus.

Sim, Briseide é importante na história. Mas a que título? Vemos a sua importância por três vias.

Em primeiro lugar, do que se queixa Aquiles é ter sido retirado o seu despojo de guerra, não o seu amor. A ofensa que lhe fazem é militar, uma ofensa e militar, não um desgosto de amor.

Em segundo lugar, Agamémnon tem de jurar, quando devolve (lietralmenet0 Briseide a Aquiles que não a levou para o leito. Também Agamémnon, que gosta d mulheres, não sua sexualmente do despojo de guerra forçosamente. Repare-se que Agamémnon tem de o jurar perante os deuses e perante o povo dos aqueus, a forma mais solene de juramento. Não poderia incorrer qualquer ira divina. A situação era ariscada demais para o fazer. Agamémnon diz portanto a verdade. Não foi para a cama com Briseida. Assim sendo é natural que Aquiles também não a tenha usado sensualmente. É menos certo mas não deixa de ser provável.

O terceiro elemento é Briseide chorar sobre os despojos de Pátroclo. Tem por Pátroclo uma ternura, uma exposição da sua doçura que não seria muito verosímil se partilhassem ambos o leito com Aquiles. É certo, tudo é possível, e à falta de juramentos solenes com risco da derrota total e ira dos deuses e vergonha absoluta como o de Agamémnon apenas podemos colocar hipóteses. Ménage à trois, a muitos (há outras escravas junto de Aquiles), amor entre Briseida e Aquiles e Pátroclo apenas amigo…

As hipóteses são muitas mas ficam reduzidas. Aquiles não lutou de morte pelo retorno de Briseida, queixa-se do dom de guerra, do despojo, não teve desgosto, mas despeito, ira, a boa da «menis». A «menis» é uma ira sagrada. Mas já com a morte de Pátroclo a sua ira é bem humano é o «cholkos». Nunca chorou por Briseida, apenas amua. Chora, e chora precisamente por Pátroclo.

Pátroclo não era um amante ritualizado, já o vimos. Não era o «eromenes» de Aquiles. Não o podia ser. Não era mais novo. Mas era sobretudo um guerreiro já preparado e que guerreio. Quando usa as armas de Aquiles, que guerreiro… Mata e mata e mata. Pátroclo não é morto por ser um presunçoso que decide pôr-se nos calcanhares de Aquiles. Morreu porque até os grandes guerreiros morrem. Heitor, o próprio Aquiles, embora isso nãos seja contado na Ilíada, mas seja nela muitas vezes anunciado. Pátroclo morreu porque chamou a si as atenções, a sua exibição foi a sua forma de sacrifício. Morreu porque se tornou fascinante, presa de todos os troianos, porque os deuses o decidiram, porque assim acontece com os melhores guerreiros.

Pátroclo não é um amante ritualizado, portanto. O primeiro casal da cultura europeia, o primeiro cujo amor e dificuldades, eros comuns e tragédia aperce em toda a sua glória é o que forma Pátroclo e Aquiles. São eles o paralelo de Ulisses e Penélope na odisseia.

A questão não passa por ideologias simplistas que orgulhos, de orientações, de opções sexuais. Não passa pelo discurso igualmente vácuo sobre a natureza, o valor das instituições, ou dos sacramentos. Os problemas existem, porque existe uma coisa chamada realidade. Invocar a complexidade é vácuo, enunciá-la necessário. Inútil, aceito, inútil muitas vezes numa época que se delícia com os brocardos e a chamada rápida de atenção, que não gosta do fundamento.

Mas é sobre esta obra poderosa, muitas vezes crua, outras delicada, de guerreiros que fazem sacrifícios humanos – Dólon no Canto X é morto de forma indigna porque é feio e deseja acima do seu nível – de guerreiros mortos selvaticamente despojados das suas armas, como animais a quem se retiram os cornos, ou a pele, de Aquiles levando Heitor arrastado por correntes enfiadas nos seus tendões. Os calcanhares mais uma vez. É neste mundo com uma relação directa coma violência, com o mundo que nos invade de forma dura, que assenta toda a cultura europeia. Não apenas sobre ele. Também nós somos mais complexos. Mas também e muito fundamentalmente sobre ele.

E desse mundo faz parte o primeiro casal que partilha destinos, a tenda o barco, a glória, a vida. Pátroclo e Aquiles. Aquiles o homem da dor, seguido de Ulisses, o odiado, nome dado pelo seu avô materno. De onde vem o amor? Procurar as origens é sempre contemplar o abismo.

 

Alexandre Brandão da Veiga.

 

(mais)

terça-feira, 15 de março de 2016

Pátroclo e Aquiles I


 

A boa da etimologia prega-nos surpresas. Pátroclo é a «glória do Pai», sendo bem possível que Pai seja Zeus. Pátroclo é nesse sentido o contrapeso de Héracles, a glória de Hera. Aquiles para uma boa etimologia é a dor (ainda hoje em dia em inglês «ache» como em headache mostra este significado) e dor do «laos», do «povo em armas». Exactamente a origem do laico, e laicismo.

Até ao momento parece estarmos a brincar com palavras. Há brincadeiras mais perigosas, é verdade. Mas a questão interessa-me noutros planos.

Desde sempre achei que o primeiro ser humano, o primeiro que sai completamente do baixo-relevo de Gilgamesh ou do alto-relevo da Ilíada, é Ulisses. Ulisses tem tudo, do bom e do mau, fada e demónio, humano em suma. As personagens de Ilíada sempre me apareceram mais planas, por vezes altos revelos, mas não se destacando do pano de fundo geral de que apreciavam. Com volume, mas não totalmente descoladas da pedra do templo sobre o qual tinham sido esculpidas.

Somos sempre injustos. Também isso é verdade.

O primeiro casal é Penélope e Ulisses. Pela primeira vez duas pessoas com pleno volume se encontram, sem paixões apressadas, com desejo de fidelidade. Penélope e Ulisses encontram-se também pelas suas semelhanças. São inteligentes. Cada um na sua forma, dentro das suas possibilidades sociais. Mas são um casal. Um casal a serio, não uma história de amor até ao encontro fatal, mas depois do encontro. É depois do encontro quês e desvela a história mais importante. Não é a história do «casaram-se e foram felizes para sempre» numa felicidade remissiva. É exactamente o oposto: «já se tinham casado e eis a felicidade que se encontra». A uma felicidade rugosa, imperfeita, marcada por uma longa separação.

Penélope e Ulisses não se amam por terem ilusões sobre um futuro comum. Amam-se porque sabem que são o presente um do outro. Neste sentido são o verdadeiro primeiro casal da História, o primeiro a ser representado na sua plenitude. Significativo o facto de tanto Odisseu, como Penélope como Telémaco serem unidos não pela deusa do lar, Héstia, ou do casamento, Hera, ou por Afrodite. É Atena quem protege os três. Não há nenhuma «agape» que unifique as relações entre as pessoas, todas as pessoas. É a inteligência, e uma inteligência guerreira que as pode unir.

De novo, pareço divagar.

Voltemos a Pátroclo e Aquiles. A erudição clássica, os filólogos, os antropólogos que se preocupam com a Grécia antiga, e aqui a escola francesa de um Gernet, de um Sergent são magistrais, mostram que havia uma tradição homossexual aristocrática, iniciática guerreira. Estes adjectivos não estão aqui por acaso. Quando se pretende usar os gregos como exemplo para liberdade de costumes é preciso ter cuidado, rever os seus brasoes, se os temos realmente, a nossa coragem, se dela somos dotados, o nosso espírito de aventura, se o possuímos. Não é para todos. Nada nas culturas antigas é para todos. Foi essa capacidade de diferenciação que lhes permitiu ser cultura.

O problema é que Pátroclo e Aquiles transcendem esse esquema. Não o põem em causa, coisa que alguns extremistas iriam logo dizer. Peritos da excepção, do contra-exemplo, gostam de invalidar toda a regra apenas porque são cultores da confusão. Mas a regra nunca impediu a flexibilidade, como gramática nos ensina, com as variantes e a excepções. Mesmo elas tem uma causa, não são prova de anomia, mas de vitalidade.

Os esquemas tradicionais desta homossexualidade ritualizada quebram-se todos com Pátroclo e Aquiles. Aquiles é socialmente dominante, manda Pátroclo preparar as acomodações, e mesmo a comida, mas Pátroclo é um pouco mais velho. Aquiles não pode ser o «eraste» nem Pátroclo o «eromenos», um o amante outro o amado, um o professor, outro o discípulo. Se o mais velho e socialmente o mais apagado isso só pode significar que o esquema tradicional seria cortado.

Mas já o velho discurso de Tétis, com a morte de Pátroclo, lembrando Aquiles de que também existe amor pelas mulheres. Outro corte com a ritualização. Depois da prova o «eromenos» deveria tornar-se adulto, ou seja, casado, ter filhos, largar o seu papel de «eromenos». Ora Aquiles nem é o amante nem o amado ritual, já o vimos. E não larga uma vida que supostamente seria transitória. Adolescente irrecuperável? Seria fácil dizê-lo. Quantas conversas teria tido com Tétis não relatadas por Homero?

(mais)