Precisamos da democracia?
Um conjunto de selvagens reúne-se
para decidir se hão-de comer um prisioneiro. A maioria vota a favor. Como há
dois que se opõem veementemente são mortos. E para festejar a decisão espancam
as mulheres.
Este pequeno cenário mostra que
estamos a falar de uma democracia, e de uma democracia directa em cúmulo.
Etimologicamente é o poder do povo quem determina a vida em colectividade.
Mas isto basta-nos? Não. Porquê
então achamos que esta democracia é insuficiente?
É que o que designamos por
democracia recolhe muitas experiências históricas diversas.
Em primeiro lugar, o próprio
poder do povo, mas por via do nexo de representação. Uma ideia sobretudo grega.
Em segundo lugar, a ideia de
Estado de Direito, estóica e romana na origem. Esta nada tem a ver com a democracia.
Mas atravessou toda a História da Europa. O poder obedece a regras, está
limitado por elas. Quem pode, quando pode, como pode. E no entanto, não
concebemos democracia sem Estado de Direito, mesmo que a sua origem seja bem
diversa. O império, os príncipes europeus, o papado, não concebiam a vida sem a
legitimação e a limitação jurídica. E nós igualmente. Este é um traço que a
democracia herdou, não criou.
Em terceiro lugar, a proibição de
divinização do homem. Não concebemos prostrar-nos perante ministros ou chefes
de Estado, como o grego se recusava a fazer. Era bárbaro. Sempre que existem
regras de prosternação na Europa elas surgem por influência oriental. O homem
europeu pode fazer reverência, mas não se prosterna. Não adora o poder, os
homens do poder. A democracia recebe esta ideia e não a cria igualmente.
Em quarto lugar, a dialéctica.
Mas esta ideia surge do anti-democrata Platão e não com a democracia. A
democracia ateniense praticou-a, mas o seu desenvolvimento teórico deve-se a
anti-democratas. Mais uma coisa que a democracia herda e não criou.
Em quinto lugar, a ideia de
legitimação pelo bem comum. Ideia sobretudo helenística e cristã. Mais uma vez
a democracia herdeira e não criadora.
Em sexto lugar, a tradição
liberal. A protecção das liberdades de acção, expressão, reunião, associação. A
tradição liberal foi quase sempre antidemocrática, e no entanto só concebemos
democracia de acordo com essa tradição. Herdeira, herdeira mais uma vez, não
criadora a democracia.
Em sétimo lugar, a dignidade
humana. Ideia cristã, muito anterior a qualquer democracia moderna. Ainda mais
uma vez herdeira.
Em oitavo lugar, a igualdade da
mulher, ideia sobretudo aristocrática e régia, profundamente anti-burguesa,
anti-republicana (segundo o padrão do civismo republicano).
Em nono lugar, a economia de
mercado, que pode ser adjuvante da democracia, mas é igualmente um enorme
problema para ela, na medida em que distribui o poder de forma
anti-democrática.
Em décimo lugar, uma determinada
concepção da mulher, da criança, do velho, do homem adulto e das relações entre
eles que se formou com a matrona romana, o cristianismo, e igualmente a senhora
medieval.
A democracia constrói-se sobre
muitas tradições que apenas recolheu e que em grande parte surgiram de pessoas
que a ela se opuseram. Ao contrário do que se julga não foi a democracia que as
criou, quando muito é a que a melhor tem garantido nas últimas décadas.
Porque é de décadas que tratamos,
ou seja, de um espaço cronológico muito apertado.
Todos nós somos sobretudo herdeiros
de anti-democratas, e de não-democratas ou de pessoas que só não eram contra
porque nem sequer concebiam a sua possibilidade. A Europa encontra a democracia
como uma solução histórica para um tempo determinado que se dá o caso de ser o
nosso. Mas da mesma forma que o império ou o feudalismo ou do domínio dos
príncipes pareceram realidades eternas durante séculos, temos de aceitar que a
democracia poderá não ser o esteio final das nossas sociedades no futuro.
A Europa sempre foi Europa, e no
entanto só de há muito pouco foi democrática. Meio século para os mais
velhotes, uma década para os mais recentes. Historicamente é uma camada muito
fina, muito frágil e muito menos determinante que as outras.
Sejamos claros. Habituados que
estamos a considerar a democracia como o nec plus ultra da existência
humana olhamos para os nossos antepassados com algum desdém porque eles,
coitados, não viviam em democracia. Tenhamos então algum bom senso e reponhamos
as coisas nos devidos lugares.
Na nossa época histórica a
democracia tem sido o sistema que melhor tem garantido essa herança, esse
património. Para um teórico político do século XVII o principado era o mundo
natural, não obstante exemplos exóticos como os Países Baixos ou a Suíça, e em
parte Veneza e a Polónia. E não era imbecil por assim achar. Tinha mais solo
histórico sobre que assentar que nós quando falamos de democracia. Um pouco de
humildade ficaria bem aos beatos da modernidade (com ou sem “pós” é a mesma
coisa, porque quem apenas sabe conceber a sua vida como após uma anterior
mostra que não a superou).
Mas isso não quer dizer que é o
sistema definitivo na História. Muito do óbvio deixa de o ser. E quando
queremos procurar o que pode estar em perigo, não é nos slogans dos bem
pensantes que se encontra, mas no que consensualmente todos dão por certo.
Sobretudo, como a democracia não é
fundamento último, mas escora-se ela mesma em fundamentos que a precedem,
fundamentos bem mais profundos que ela mesma, tudo querer assentar na
democracia leva a uma sobrecarga da mesma. O fim da democracia aproxima-se na
altura em que sobre esta tudo se quer assentar.
Quando se quer definir a Europa
pela democracia, esquecendo que esta é uma condição e não um fundamento, e daí
se retira como conclusão que todo o bárbaro pode ser europeu, aliás, que quanto
mais bárbaro, mais europeu pode ser (“mas porém a que cuidados?” e com que
interesses?) os pilares quebram para deixar vir ao de cima o que é realmente
fundamental.
Vivemos milhares de anos sem ser
democratas, mas sendo europeus. Mesmo sem democracia não deixámos de ser
franceses, portugueses, polacos, russos. E não produzimos por isso medíocre
cultura, salvo se Goethe e Gauss devessem ser deitados ao lixo. Vivemos há
milhares de anos desta confluência entre cristianismo e paganismo indo-europeu.
Quando nos dizem que somos democracia, só democracia e economia de mercado, o
confronto com outras culturas que de comum só têm connosco isso partirá o
próprio sustento dessa democracia.
É certo que os cultores do curto prazo não se importam de
assentar mais andares num prédio. E vão acrescentando mais e mais. No seu tempo
de vida julgam que não pagarão preço nenhum. Mas quando o cidadão comum vir que
se vai a votos para a antropofagia, ou para qualquer outro costume mais ou
menos janízaro, e que no dia a dia se degolam carneiros nas escadas do seu
prédio, ou que a criança, a mulher, o homem respiram muito diferente ar,
veremos o que sobra. Se o húmus fértil em que nos gostamos de instalar e a que
chamamos de democracia, ou se a rocha ou o magma sobre o qual assenta. Nessa
altura é evidente, os sacerdotes da deusa única democracia já a estarão a
incensar alhures. Aceitaram a destruição do templo para apenas manter o altar.
Mas ao relento a tempestade levá-lo-á. E as suas fundações permanecem.
Precisamos da democracia? Sim. Como protecção e conclusão (até haver outra) de
um processo. Mas sem ilusões de que o tecto substitua as fundações.
Alexandre Brandão da Veiga
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