sexta-feira, 27 de março de 2020

Dogmáticos e compromissórios II






Porque se usam dois critérios tão diferentes, um para a História das ciências, outro para a História das religiões? Porque na primeira os compromissórios passam por ser catedráticos medíocres e sem génio e para a segunda passam por ser pessoas tolerantes?


Mais uma vez o problema não está no objecto, mas no sujeito. O que diferencia a coisa não é o que se estuda, mas o historiador que a estuda. Quem vê com olhos comovidos os compromissórios presume duas coisas. Presume, porque nunca o diz, são premissas ocultas e por isso dificilmente controláveis, escondidas (aliás, muitas vezes aos próprios que estudam) que:

a)     A religião nada tem a ver com a verdade;

b)    A religião é só uma questão de política.


Uma premissa e a outra estão obviamente ligadas.


A religião nada tem a ver com a verdade, que os cientistas se espatifem entre si para descobrir a verdade é a glória da ciência. Desde que não se diga em voz alta que é a verdade com artigo definido do singular, é evidente. Mas, como a religião nada tem a ver com a verdade, é puro fanatismo querer estabelecer o que seja a verdade religiosa. Afinal, a religião nada mais é que uma fantasia tolerada no espaço público, como a diferença entre quem gosta de feijoada e quem prefere a batata frita. É uma mera questão de gosto, em suma.


Isto porquê? Porque a religião é apenas uma questão de política. E por isso deve estar sujeita aos critérios benemerentes do compromisso social. Se não o fizer, é apenas uma forma de fanatismo. É curioso que são os primeiros a criticar a religião por ser um fenómeno meramente político a criticá-la de novo… por não ter um comportamento político. Querem que a religião seja algo reles para a poderem criticar e não admitem que ela tenha uma esfera de vida própria.


Em suma, a turba, o homem da rua, e o senhor Hitler têm razão? Têm todos razão no seu meio de vida. Se e na medida em que a religião nada tiver a ver com a verdade, e for apenas política, os compromissórios são os heróis. Quanto mais irénico, quanto mais compromissório melhor. Um fundador de religião diz que se tem de matar os inimigos e outro diz que se os deve amar… É mais ou menos a mesma coisa. Um fundador diz que se deve repartir justamente o saque roubado aos inimigos vencidos, outro que se deve dar aos outros os bens materiais, é quase a mesma coisa. Um diz que uma menina de nove anos é fresquinha para o sexo, outro manda cuidar das crianças como sagradas, é quase a mesma coisa. E isto vai obviamente até à dogmática. Se Jesus é Deus, quase Deus, apenas um homem, um santo em especial, qual o problema? Tolstoï passa de grande romancista a grande teólogo, mesmo que tenha sido o primeiro e nunca o segundo.


Se bem se vir, o fundamento desta perspectiva é o mesmo que encontramos sempre que vemos a turba. O desprezo. Um mundo que se despreza a si mesmo, o mundo do plebeu, apenas pode assentar os seus juízos no desprezo. Tudo é que é vida é desprezível. A ciência pode falar da verdade, mas apenas enquanto é vista como fenómeno longe da vida. Mas tudo o que cheira à vida é desprezado. A religião nada tem a ver com a verdade, é apenas política, porque faz parte deste mundo baixo que observamos cá de cima. 


No pátio onde circula o plebeu vendem-se galinhas e discute-se a missa do domingo anterior. Esse o seu lugar natural; no pátio não é comum falar de positrões nem de topos. Mas, se Deus deixa que d’Ele falemos ao pé das galinhas, é no pátio a que pertence. E por isso traz consigo o cheiro dos pátios. No fundo, no fundo, vejamos… O que faz o académico que tem esta postura é revelar que nunca saiu do pátio e que sob a capa académica se escondem dois ovos que pilhou ao vizinho do lado. Servo da gleba, essa a sua glória. Que Deus deixe em paz a sua mente, porque a sua inteligência já lá está desde a origem. Em descanso. E em paz. A paz que tanto elogia.





Alexandre Brandão da Veiga


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quinta-feira, 26 de março de 2020

Dogmáticos e compromissórios I


Ora observemos mais uma vez o que se passa no pátio do bairro. Não nos misturemos com a turba, mas observemos o que ela vai dizendo. É claro. A instituição do dogma é o resultado de um espírito fanático, as igrejas cristãs sempre foram intolerantes, contra a abertura e tolerância das religiões antigas. Ouvimos quem o diz? Mas é evidente. Muita gente. Lá em baixo vejo mesmo um senhor com bigodinho que o dizia em conversas privadas. Chamava-se Adolf Hitler. Um fervoroso seguidor de Gibbon, também ele achava que o cristianismo tinha sido a causa da queda do império romano.



Vejamos se a turba tem razão. E o melhor para o fazer é irmos para um lugar paralelo.


Uma classe de físicos, chamemos-lhe de clássicos, dizem que o aumento da energia em nada afecta a matéria, são realidades diversas. Outros, chamemos-lhe de relativistas, mas poderíamos usar outro nome, se o leitor preferir, dizem que não é assim. Que energia a massa são apenas aspectos de uma mesma realidade. Embora sejam necessárias grandes quantidades de energia para criar uma sensível alteração da massa, a verdade é que são realidades indissociáveis.


Estes dois clubes lutam entre si e não dão razão nem a um nem a outro. Os segundos lembram que em pequenas quantidade de energia os clássicos têm razão aproximadamente, mas os clássicos não aceitam este argumento. Nem os clássicos nem os relativistas, estas seitas de dogmáticos, parecem querer dar razão uns aos outros.


Mas eis que aparece um compromissório. E para satisfazer ambas as partes diz: vejamos, a energia poderá ter algum contributo para a massa, mas ponhamos os seus contributos numa escala logarítmica. Assim o efeito na energia é quase imperceptível, ainda menos, muito menos que para o relativístico, assim se satisfariam os clássicos. Mas, apesar de tudo, será algum, e assim se satisfazem os relativistas.


O que foi dizer o compromissório… Tanto os clássicos como os relativistas caem em cima dele, queixam-se de ele estar a ter uma atitude oportunista, política, mas de não querer saber da verdade, da verdade, a que tem um artigo definido do singular a defini-la.


O coitado do compromissório é afastado por esses dois grupos de fanáticos, porque ninguém aceita a sua mediação.


Com este lugar paralelo percebe-se o absurdo da argumentação. Se a História da ciência fosse contada nestes termos, se a verdade científica decorresse de compromissos como estes, pouco teria evoluído a ciência. Em vez de procurar a verdade, a mesma, a com artigo definido do singular, teria andado a pulular entre interesses, desejos, expectativas de uns e de outros. E bastava haver apenas um a dizer que os homens tinham uma «rete mirabilis» na nuca para haver alguém que diria que devemos admitir que em alguns casos isso seria verdade, ou que existiria sempre mas tão pequena que seria imperceptível. Galeno e a anatomia cristã do século XVII teriam sido conciliados. Isto, mesmo que o estudo da anatomia humana tivesse demonstrado que o ser humano não tem nada disso.


Toda a gente acharia absurdo que a História da ciência desse lugar aos compromissórios. Porque se vê então com simpatia os compromissórios na História do dogma? Por que razão os monotelistas, os cultores do «henotikon» e quejandos (não se preocupe o leitor em saber o que é isto, são os compromissórios) são deixados para trás na História de religião? Não será isto a prova de que na história das religiões a vergonha é que vencem os dogmáticos e perdem os compromissórios, os homens realmente tolerantes? Afinal tudo faz sentido. A História das religiões é apenas uma história de fanatismos… Pelo menos a do cristianismo. De preferência, a do cristianismo. Hitler dixit, e ele era capaz de representar algo da alma do pequeno burguês actual, que tem sempre uma pontinha de Hitler dentro de si.


Afinal o imperador Heráclio queria a pacificação do império. Estava em guerra com os persas, e a perder territórios no extremo ocidental do império. Tinha de pacificar esses fanáticos que são os religiosos. E por isso uma visão de compromisso da religião faz todo o sentido…

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