Feitos à imagem de Deus
Assim
é. Lá temos mais um que se acha inteligente por recusar imagens antropomórficas
de Deus. A nossa época dá felicidade a muitos porque lhes dá muitas ocasiões de
se sentirem inteligentes, sobretudo mais inteligentes que os outros. O que é um
sinal de alarme, podendo indicar que a verdade é a inversa.
O
tópico de Xenófanes aparece entre os que têm propensões mais intelectuais.
Xenófanes dizia que os gregos deram forma humana aos deuses, mas não perceberam
que se os animais tivessem deuses dariam forma animal aos deuses. Xenófanes
teria as suas qualidades, mas era algo provinciano. Porque se esqueceu que os
egípcios eram humanos e deram aos seus deuses formas... de animais.
Também
os que brandem o argumento do antropomorfismo mostram assim o seu
provincianismo. Nem sempre fazemos os deuses à nossa imagem. E por isso é
preciso pensar duas vezes antes de acusar a teologia de antropomorfismo. Não é
pelo facto de os polacos venerarem uma Virgem Negra que projectam na santidade
o que são. Para quem nunca viu um polaco seria bom espreitar alguns para se
perceber a ironia.
O
problema é que o argumento de antropomorfismo deixa satisfeito quem sente ter
capacidade de abstracção e não acredita por isso num Deus velho com barbas
brancas. Capacidade de abstracção de jornalista, entenda-se, e desde a metade
do século XIX a de alguns biólogos. Não são o pináculo na matéria, não
aconselharia como modelo.
O
homem não faz Deus automaticamente à sua imagem. Prova são os deuses teriomórficos,
os deuses de formas difusas, híbridas, ou em forma de bétilo ou planta. Os
gregos tinham deuses antropomórficos os árabes adoravam calhaus. Deuses mais
abstractos? Seja. Não é por isso que os gregos eram incapazes de poesia ou
criação racional. Alguém que me aponte um teorema beduíno ou uma epopeia
sarracena... Tanto os gregos como os indianos, que têm ambos deuses
antropomórficos, produziram arte, literatura e matemática como mais nenhum povo
na Antiguidade. Talvez fosse altura de o rapaz com mentalidade de jornalista
começar a pensar... Se lhe for possível.
O
problema é exactamente o inverso. Quando o homem quer pensar num Deus mais
complexo o risco é o de cair no antropomorfismo. O cidadão comum da nossa
época, que se sente sofisticado por só admitir uma visão abstracta de Deus, o
que vê ele? Uma coisa difusa, de fronteiras indefinidas, confusa. Porquê? Porque
para ele são assim as abstracções. Uma antropóloga que conheci na adolescência
disse-me um dia: para mim as ideias são coisas mortas. Ao que eu lhe respondi:
sim, menina, na tua cabeça.
São
os mesmos que dizem ter uma vivência carnal da vida que só admitem a hipótese
de um Deus abstracto. Ou seja, morto, sem viço. Como as suas abstracções. A sua
vida não é contraditória. É só tonta. Por isso, não percebem que são os povos
mais sofisticados que procuram uma imagem viva e pessoal do Deus. Platão
chamava-o de o Vivente e Pai. E quanto a ideias abstractas tenho mais confiança
em Platão que num jornalista americano.
Santo
Irineu de Leão merecia que se falasse muito mais dele. Mas sendo telegráfico, diria
que percebeu algo muito simples: que todas as heresias, e em boa todas as
religiões falsas são projecções. O homem projecta-se na divindade, quere-a à
sua imagem.
Não
que faça deuses antropomórficos sempre. Mas quer deuses que aceitem a vingança,
mesmo que com limites. Que odeiem os descrentes, condenem os que não nos
agradam. Mais importante que a sua imagem aparente são as suas motivações.
Por
isso, torna-se impossível ao ser humano conseguir a suprema conquista
espiritual que é a de um Deus pessoal, apenas acessível aos povos mais
sofisticados, sem cair ao mesmo tempo no antropomorfismo. Não tanto o do Deus
velho de barbas, mas de um Deus que odeia e quer vingança.
Os
sofisticados da nossa época têm dificuldades grandes e não percebem que z
verdade cristã é exactamente a inversa. Não a de um Deus à imagem do homem, mas
de um homem à imagem de Deus. O que isto implica? Que se esvazie de vez das
suas projecções e seja ao mesmo tempo capaz de se confrontar com um Deus
pessoal. Que tenha a suprema capacidade de abstracção de perceber a vida das
suas ideias e que essa vida não vem de si. Mas essa capacidade de abstracção o
transeunte jornalístico da nossa época não o tem. Cansa-se depressa. E depois
de pensar a sua pequena abstracção senta-se. Não viu grande coisa. É evidente. É
a si mesmo que se viu.
Alexandre
Brandão da Veiga