Tradição e imitação II
A ligação entre imitação e tradição estabelece-se em várias ciências de formas curiosamente próximas. Moléculas que se agregam e que passando uma fase crítica geram transições de fase (as revoluções são uma consequência da tradição como se vê). Com a análise do mercado em Hayek os fenómenos de imitação são a base da auto-organização (uma forma de tradição, em suma). Com Girad análise semelhante mas ainda mais profunda, porque percebeu que a imitação não é neutra na vida humana, mas funda-se e gera uma forma de energia que no ser humano redunda em violência e na sua contenção.
Sob o ponto de vista estrutural evolução, tradição e imitação são indissociáveis. As revoluções, sejam políticas, sejam sociais, de mentalidade, sejam científicas, resultam de uma massa crítica formada pela tradição.
Mas sob o ponto de vista vital é igualmente verdadeira esta relação. Colocando-nos na perspectiva do inovador, ou do revolucionário, não se encontra nenhum que não dialogue com a tradição. Os filósofos gregos com Homero, os cristãos com a filosofia grega e o direito romano, Einstein com Maxwell e Newton, Proust com Racine, Picasso com a tradição ibérica e a pintura da Renascença... É evidente que o ignorante não inova. É evidente que apenas mostra capricho, e depois do sucesso cai no ridículo e mais tarde no esquecimento. Mas a questão vai mais fundo que a lógica pobre da vida do medíocre com presunção, vai além da anedota. É que a criação implica sempre diálogo (exactamente o oposto da conversa de café, que não empenha ninguém). E só se dialoga com o que já existe, através do que já existe, a isso chama-se de tradição.
Na tradição protestante sobretudo desde o século XX que se percebeu que o “sola scriptura” tinha um vício lógico. É que a “scriptura” é delimitada... pela tradição. Tanto católicos como protestantes revalorizaram a teologia do outro lado e por vezes os resultados são inesperados. Mas inesperados só na aparência. É que sem tradição não há diálogo, sem imitação não há aprendizagem.
Ninguém tem mais horror aos seguidistas, às criaturas sem personalidade que se reduzem a ser citadores. Entre estes estão os revolucionários de café, ou de Internet hoje em dia. Mas creio que já apanhamos a sua principal brecha: não querem ou não sabem dialogar, recusam aprender. Recusam a tradição e o que tem de revolucionário. São conformistas. Não se querem confrontar com uma tradição que pela sua grandeza demonstra a sua pequenez. E acabam por seguir uma longa tradição humana: a da desonestidade intelectual.
Resta-nos fazer as perguntas fundamentais. Porque se imita? Porque tem importância a tradição?
Porque se imita? Talvez seja uma estratégia de sobrevivência. Mas talvez signifique antes do mais que o ser humano não é estúpido. Aproveita-se a experiência alheia, o comportamento alheio, os gostos alheios para retirar algo deles. A ideia de imitação foi sempre algo equívoca. Ou se imita a natureza ou os outros seres humanos. Confesso que sempre desconfiei um pouco de uma visão vulgata de Aristóteles que vê a imitação como algo de passivo, como o pintor que supostamente reproduz a paisagem. Mas a partir do momento que percebemos que não existe nunca mera reprodução, que esta é mediada por perspectivas, ênfases técnicas, nunca a imitação é passiva.
Porque tem importância a tradição? A tradição começa por ser a consequência da imitação memorizada. É inevitável que surja tradição quando existe imitação. É o repositório das muitas imitações em cadeia. Para que serve? É uma medida de economia. Não temos de inventar de novo os modos de ver e reagir ao mundo. Tanto melhor. Mas é igualmente um repositório de modos de ver o mundo seleccionados por gerações de seres humanos no qual se vai depositando a sabedoria (e a asneira) humana. Quem a recusa não apenas labora no impossível, mas igualmente recusa qualquer cultura. Não há cultura sem tradição. Quando se fala de cultura, mesmo que em relação a uma fatia cultural apertada, é sempre de uma tradição que se fala. É o estado a que a tradição levou a que certas sociedades chegassem, incluindo as formas como essas pessoas reagem a essa tradição. Mesmo os revolucionários reagem a uma tradição, e é dentro dela que laboram. É sempre num misto de contra e com que os seres humanos laboram a sua vida. Apenas variam os graus. E já é um apenas bem vasto.
Da parte que me toca, desconfio tanto dos que imitam e seguem a tradição por seguir, como os que a elas se opõem sistematicamente. Sempre me parecerem muito parecidos. De uma forma ou de outra são escravos delas. Ao menos os primeiros são um pouco menos enfadonhos porque com menos presunções e um pouco mais de harmonia. Os segundos, na sua presunção poética, tornam-se apenas burocratas do desfazer, e tristes exemplos do contrário do que anunciam.
Alexandre Brandão da Veiga
Sob o ponto de vista estrutural evolução, tradição e imitação são indissociáveis. As revoluções, sejam políticas, sejam sociais, de mentalidade, sejam científicas, resultam de uma massa crítica formada pela tradição.
Mas sob o ponto de vista vital é igualmente verdadeira esta relação. Colocando-nos na perspectiva do inovador, ou do revolucionário, não se encontra nenhum que não dialogue com a tradição. Os filósofos gregos com Homero, os cristãos com a filosofia grega e o direito romano, Einstein com Maxwell e Newton, Proust com Racine, Picasso com a tradição ibérica e a pintura da Renascença... É evidente que o ignorante não inova. É evidente que apenas mostra capricho, e depois do sucesso cai no ridículo e mais tarde no esquecimento. Mas a questão vai mais fundo que a lógica pobre da vida do medíocre com presunção, vai além da anedota. É que a criação implica sempre diálogo (exactamente o oposto da conversa de café, que não empenha ninguém). E só se dialoga com o que já existe, através do que já existe, a isso chama-se de tradição.
Na tradição protestante sobretudo desde o século XX que se percebeu que o “sola scriptura” tinha um vício lógico. É que a “scriptura” é delimitada... pela tradição. Tanto católicos como protestantes revalorizaram a teologia do outro lado e por vezes os resultados são inesperados. Mas inesperados só na aparência. É que sem tradição não há diálogo, sem imitação não há aprendizagem.
Ninguém tem mais horror aos seguidistas, às criaturas sem personalidade que se reduzem a ser citadores. Entre estes estão os revolucionários de café, ou de Internet hoje em dia. Mas creio que já apanhamos a sua principal brecha: não querem ou não sabem dialogar, recusam aprender. Recusam a tradição e o que tem de revolucionário. São conformistas. Não se querem confrontar com uma tradição que pela sua grandeza demonstra a sua pequenez. E acabam por seguir uma longa tradição humana: a da desonestidade intelectual.
Resta-nos fazer as perguntas fundamentais. Porque se imita? Porque tem importância a tradição?
Porque se imita? Talvez seja uma estratégia de sobrevivência. Mas talvez signifique antes do mais que o ser humano não é estúpido. Aproveita-se a experiência alheia, o comportamento alheio, os gostos alheios para retirar algo deles. A ideia de imitação foi sempre algo equívoca. Ou se imita a natureza ou os outros seres humanos. Confesso que sempre desconfiei um pouco de uma visão vulgata de Aristóteles que vê a imitação como algo de passivo, como o pintor que supostamente reproduz a paisagem. Mas a partir do momento que percebemos que não existe nunca mera reprodução, que esta é mediada por perspectivas, ênfases técnicas, nunca a imitação é passiva.
Porque tem importância a tradição? A tradição começa por ser a consequência da imitação memorizada. É inevitável que surja tradição quando existe imitação. É o repositório das muitas imitações em cadeia. Para que serve? É uma medida de economia. Não temos de inventar de novo os modos de ver e reagir ao mundo. Tanto melhor. Mas é igualmente um repositório de modos de ver o mundo seleccionados por gerações de seres humanos no qual se vai depositando a sabedoria (e a asneira) humana. Quem a recusa não apenas labora no impossível, mas igualmente recusa qualquer cultura. Não há cultura sem tradição. Quando se fala de cultura, mesmo que em relação a uma fatia cultural apertada, é sempre de uma tradição que se fala. É o estado a que a tradição levou a que certas sociedades chegassem, incluindo as formas como essas pessoas reagem a essa tradição. Mesmo os revolucionários reagem a uma tradição, e é dentro dela que laboram. É sempre num misto de contra e com que os seres humanos laboram a sua vida. Apenas variam os graus. E já é um apenas bem vasto.
Da parte que me toca, desconfio tanto dos que imitam e seguem a tradição por seguir, como os que a elas se opõem sistematicamente. Sempre me parecerem muito parecidos. De uma forma ou de outra são escravos delas. Ao menos os primeiros são um pouco menos enfadonhos porque com menos presunções e um pouco mais de harmonia. Os segundos, na sua presunção poética, tornam-se apenas burocratas do desfazer, e tristes exemplos do contrário do que anunciam.
Alexandre Brandão da Veiga
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