Porquê Beethoven está fora de moda?
Não se trata aqui se de saber quem é o maior músico, até porque esta obsessão de podia é profundamente imbecil. A partir de um certo grau parece-me que não tem sentido dizer quem é o maior. Se Dante ou Homero ou Camões, se Bach, Mozart ou Beethoven, se Gauss, Poincaré ou Leibniz, se Rafael, Da Vinci ou Rembrandt... A obsessão dos pódios mostra até que ponto a nossa época é unilateral; nada diz sobre o objecto do seu juízo, mas apenas sobre a falta de justiça do mesmo.
O relevante para o que me interessa é bem diverso. A que estado de espírito corresponde este fenecimento relativo de Beethoven? E que relevância tem isso no espaço público, que nos pode dizer nomeadamente sobre a política, e o que, e mais uma vez, subtende à política?
Beethoven era um compositor de palavra. O seu amor ao texto escrito manifestava-se no seu amor à obra de Goethe, nomeadamente. Mais, mais ainda, conta-se que registava ideias musicais em palavras. Quem ouve as suas obras facilmente verifica que são dialécticas, seja o piano a dialogar com a orquestra (banal no género, pode-se contra-argumentar, mas forte em Beethoven como em poucos). As peças para piano são diálogos, outras vezes conversas, outras reflexões isoladas, mas em que o isolamento existe porque alguém de afastou do grupo, não porque esteja originariamente só, ou outras vezes ainda fortíssimas discussões. A palavra tem de tal forma força na sua obra que irrompe da Nona Sinfonia. Suprema heresia, a forma sonata por excelência, a sinfonia, transforma-se em cantata. Isto apenas para fazer vir ao de cima palavras.
Mas Beethoven é também o homem que traz o sentimento para a música. Não que antes ela fosse dele destituída. Mas dá-lhe o mesmo valor que à regra pela primeira vez de forma consistente. Equilíbrio extremamente difícil entre pensamento e razão, a obra de Beethoven apela para o homem completo, para o homem na sua totalidade.
Basta fazer a experiência de ir a um chat na Internet. Numa sociedade que se diz de imagem, que destronaria a palavra, mostra-se a necessidade de palavra na nossa época... e a incapacidade de a vivificar. Os discursos são repetidos, entrecortados, boa parte deles gastos apenas para fazer contacto entre as pessoas. Tentei várias vez ir a chats de política, filosofia, arte, dos mais variados. Verifiquei que não há uma ideia que neles circule, se não quando muito uma ânsia de auto-sagração por certos temas, ou quando muito uma curiosidade insatisfeita, mas que nem tem o mínimo vislumbre de como se começar a satisfazer. Falta de método, por outras palavras. Falta de cultura.
Um mundo em que a palavra é meramente funcionalizada, em que a mensagem foi substituída pelo slogan, em que o paradigma da comunicação é o discurso publicitário, falho de demonstração, não apenas pela sua ausência, como pelo desconhecimento da sua necessidade. Convence-se ainda, mas não demonstrando, não enchendo corações, mas motivando meros comportamentos, simples actos.
O estertor da palavra surge da fanática separação do espaço público e privado, como se o ser humano se pudesse reduzir a uma solução que é funcionalmente útil, mas essencialmente limitadora. A palavra já não vivifica, é um mero instrumento, uma máquina. Se compararmos os textos de análise política de um Burke, de um Tocqueville ou de um Maistre com os actuais vemos que um mundo os separa. Não em maior lucidez, mas de menor estilo. O estertor da palavra é também o do estilo.
Mas igualmente o sentimento está na mó de baixo. O sentimento admissível é público, pré-formatado, um mero produto industrial. O que se deve amar ou não está previamente definido. Amam-se: as culturas não europeias, os esfomeados, as lutas ecológicas, (certas) minorias. Odeiam-se: o elitismo, a procura de excelência, o auto-aperfeiçoamento, a correcção, a crítica à mediocridade.
O cristianismo criou a civilização mais diferenciada sob o ponto de vista sentimental que o mundo já viu. Esta diferenciação tem por fonte o “ama os teus inimigos” e o “ama o teu próximo como te amas a ti mesmo”. Sentimentos que nos parecem “naturais” são o resultado de séculos de difícil elaboração, auto-reflexão, de dolorosas lutas internas e públicas.
É compreensível. O espaço público está repleto de pessoas em que o convívio com a palavra complexa não foi aprendido em casa, mas na escola. Não estão habituados a associar a palavra rica ao amor. Da mesma forma, recrutados de classes muito baixas, as suas memórias são as da distante contemplação de classes altas de racionavam a sua manifestação de sentimentos. Confundem assim a aristocracia com a inexistência de sentimentos, equívoco de camponês mal informado.
Beethoven está fora de moda? Sem dúvida. Para quem queria a nobilitação do ser humano deveria ser cruel ver um mundo em que até a nobreza se plebeizou. Um mundo plebeu, dominado por plebeus, de sangue, de alma, de sentimentos é sempre um mundo sem espaço para a palavra ou o sentimento. Subiram por uma escada de esforço e é com ar de esforço de manifestam qualquer elevação.
Fora de moda? É certo. Porque quem não incarna regras, sempre que quer mostrar sentimento apenas mostra cacofonia e quando quer usar a palavra desconhece a noção de harmonia.
Fora de moda, não obstante. Não caduco. Chanel dizia que a moda é o que passa de moda. Sendo a História mais justa do que se crê, o seu retorno será particularmente cruel para os Metternich do politicamente correcto, os amantes serôdios de Congresso de Viena hoje em dia mais mal vestidos e mal falantes. E o regresso virá. Sempre mais tarde do que se deseja, mas sempre mais cedo do que os beneficiados julgam.
Alexandre Brandão da Veiga