Quem são os artistas?
Reconheço que não foi um frete, mas seria igualmente exagero considerá-la uma paixão. Um trabalho necessário e frutuoso sem dúvida, pouco mais, e já não é ser pouco. A verdade é que no meio de tantas teorias, ora genialmente elaboradas mas como que nas fronteiras dos grandes sistemas, ora centro de preocupação mas com destrinças algo bizantinas para o meu gosto, tentei orientar-me para dar um assento simples para algo que sabia ser sumamente complexo.
Se algo caracteriza a arte, pensei, é o facto de se tornar presente. A realidade por vezes escapa ao homem e existe sempre um ruído de fundo que nos avisa da relativa dissonância que existe entre o facto de estarmos por aqui e isso tornar-se-nos vivamente incarnado. Para regular esse desvio o homem criou a arte. Torna a realidade real, torna presentes as coisas. O ex-voto é assim uma das pedras fundadoras da arte.
Tornar presente tem sempre três momentos: quem torna presente, o que se torna presente e para quem se torna presente. A situação paradigmática da arte encontra-se na adoração dos reis magos. Mostra que o mais importante é sempre para quem se torna presente. De seguida o que se torna presente. E o menos importante quem dá o presente.
Uma arte que tem o destinatário como centro, desde que este seja o merecedor por excelência é uma arte de grandeza. Uma que se centre no presente é uma de pertinência. A que se centra em quem dá é folclórica. Não é por caso de quando os reis magos se transformam em figura principal do presépio é sinal de que a teologia foi destronada pelo folclore.
O problema é que o folclore redunda rapidamente em comércio quando os reis magos passam a ser substituíveis. Por Pais Natal nomeadamente. Quando o que se dá é centro, mas se torna obsessão, a arte transforma-se em feiticismo. E quando a quem se dá presente passa a ser medíocre a arte passa a ser mera adulação. Comércio, feiticismo e adulação são os três estados tristes da arte.
A herança romântica deu-nos o artista como centro. Os classicismos a coisa em si. E o barroco o destinatário. Cada um deles tem o seu mérito, mas cada um o seu perigo. A verdade é que é a avalanche romântica que ainda nos domina. A arte considerada legítima centrou-se no criador, geralmente a pessoa menos interessante para falar dela e com frequência pessoa pouco interessante em si mesma. Ou seja a arte tendeu a ser folclore.
Mas se assim foi enquanto o artista era insubstituível, quando passa a ser reprodutível passa a puro comércio. Nunca tanto se bradou pela pureza da arte e nunca tanto esta passou a ser comercial. O que há que ver é que espécies de Pais Natal nos aparecem sob a figura de artistas.
Em primeiro lugar são pessoas que “não ligam”. Seja a convenções, seja aos outros, seja às pequenezas da vida, seja à opinião do público. Como nestas coisas os sentimentos são recíprocos, nunca tão pouca gente lhes ligou a eles. Se o Estado os subsidia fá-lo não a vidas de abandono, mas com frequência a vidas de abandonados.
Em segundo lugar são pessoas profundamente preocupadas, que gostam de dizer que andam profundamente preocupadas. O que é estranho para quem não liga às coisas. O que só pode ter alguma coerência caso a sua preocupação seja destituída de conexão. E portanto para não ser muito levada a sério.
Em terceiro lugar são pessoas com sentimentos, pessoas que são movidas pelos sentimentos. O que é razoável na devida dose, mas que corre sempre o risco de criar tartufos quando é permanentemente exposto. E sentimentos geralmente algo malcriados, em que se indicam recorrentemente os sacrifícios e os custos em que incorreram para nos ofertar a obra de arte. Como o oferente malcriado que nos lembra o preço do presente e quanto custou encontrá-lo.
Em quarto lugar, se bem observarmos o espécime típico, são pessoas de expressão espasmódica, do esgar, do olhar virado para o tecto, em que o discurso não fluí, mas é entrecortado por auto-concentração, como se buscassem algures na alma, mesmo no fundo da alma, algo para dizer. O que não é bom sinal, porque quando é necessário ir buscar ao fundo da alma algo que dizer, quer isto significar que se trata de um poço com reservas esgotadas, de colheita difícil. O seu paradigma não é o rio que corre, mas o poço no meio do deserto, de onde se retira o líquido a custo. Mesmo que o espasmódico seja calmo, isto quando não é realmente ciclotímico, mostra que a sua vivência é entrecortada, descontínua, e portanto fracturada. São convalescentes da existência, pouco saudáveis, a recuperarem do facto de existirem.
Tendo exposto este quadro clínico, facilmente verificamos que a arte, e isto é tanto mais verdade quanto mais afastada do êxito de audiência, tende a ser cada vez mais comercial. Centrada no autor deixou de ser folclórica, porque os personagens passaram a ser substituíveis. Contestou os heróis e foi por isso engolida por essa contestação. O artista passa a ser um produtor comercial, fungível, um entre tantos. Perdeu o estrelato.
Comercial?, saltam já algumas almas caridosas? Como, se é tantas vezes contestatária, marginal, fora dos circuitos comerciais? Ora essa, respondo, comercial sem dúvida. Se incompetente, inepta também sob o ponto de vista económico, apenas mostra mais uma sua fraqueza e não uma escusa da qualificação.
Comércio inepto, centrado em produtores desligados, preocupados não se sabe bem com o quê e porquê, proclamadores de sentimentos e de expressão espasmódica. Que arte é esta? Que efeitos pode trazer ao espaço público?
Não vou dizer que uma arte na sua versão menos adulterada serviu sempre a verdade. Não foi de verdade que falei, mas de tornar presente. Se inepta, apenas deixa de preencher a sua função de tornar presentes as coisas. Uma arte inepta começa por ser uma arte desautorizada. Nunca se levou tão pouco a sério os artistas. Mesmo que se possa dizer que os concretos que temos o mereçam muitas vezes, este não é facto que nos deva causar regozijo. Uma sociedade com artistas desautorizados é uma sociedade que desautoriza o próprio facto de tornar presente, de conferir realidade às coisas.
Aqui é difícil destrinçar quem foi a causa quem o efeito. Se os artistas se desautorizaram e desautorizaram o próprio facto de tornar presente na sociedade, ou se o facto de esta ter desautorizado este facto desautorizou os artistas. Ambas as hipóteses devem ser verdadeiras em graus diferentes consoante as épocas. O fundamental é que se a arte sempre serviu a propaganda, mesmo quando o fazia, as origens que tornavam as coisas presentes eram identificáveis. Podiam ser por isso mais facilmente atacáveis. A arte não escapou à deslocalização, à massificação, aos fenómenos do comércio. A autoria evanesce de tanto o autor fungível ser importante. E por isso se a arte perde a sua função de propaganda dirigida, perde também o seu papel identificador. Significativo o facto de à explosão de movimentos de ter seguido a sua quase desaparição. Cada autor gosta de afirmar que não pertence a nenhum movimento, ou pertence a vários.
Deixando de ser propaganda não colabora com a mentira, mas em nada ajuda a verdade. Apenas passou a ser inepta, mais um elemento na paisagem do espaço público dissolvido e mole. Se antes podia manipular, podia igualmente impedir a manipulação. Hoje não faz nem uma nem outra coisa.
O homem público não podia negar nem Vénus nem a Madonna ou o vitral. Estavam presentes, tornavam a realidade evidente. E evidente o passado indo-europeu da Europa. Se se alimenta dele ainda hoje, a arte apenas o obnubila.
Num espaço público em que ninguém assume a função de tornar presente, seja a verdade, seja a mentira, tudo é manipulável, a realidade esvai-se. Por isso é fácil afirmar que os tapetes de Antalya ou Izmir são Europa. Com artistas perpetuamente demissionários, temos mais um elemento que forma o caldo da manipulação do espaço público. Quando contestam, contestam o que é fácil contestar e por isso nem geram escândalo, nem são ouvidos.
Qual a solução? De preferência que os artistas tomem a iniciativa de tornar de novo presentes as coisas. De preferência a verdade. Se ainda forem capazes. E se para isso não lhes falhar a coragem.
Alexandre Brandão da Veiga