Citação e referência
Nada tenho contra citações e referências. São uma boa ajuda para escorar o percurso intelectual e sobretudo marca de honestidade intelectual. Se a ideia não é nossa, é bom que se indique tem a teve.
Nem sequer me oponho a que na conversa corrente surja a referência erudita, ou sequer a citação. Basta que seja sinal de intimidade e tenha pertinência para estarem legitimadas uma e outra.
Está dito o essencial; não me oponho por princípio a tais práticas. Cada uma tem a sua razão de ser, o seu local próprio e a sua pertinência.
Podemos entrar assim na sua dimensão pantanosa, no seu lado obscuro.
Cita-se um texto, refere-se um autor ou uma obra. Existem diferenças importantes entre um e outro facto.
Quem cita tem boa memória. Integrou em si um pensamento, uma observação, um modo de ver o mundo. Ou ao menos sabe onde procurá-lo. Não é mau em si mesmo. Quem refere apenas menciona. O conteúdo não o ocupa forçosamente, avança com um sinal, uma bandeira, alerta, demarca. Nada mau em si mesmo da mesma forma.
Coisa diversa é o citador impenitente, o referenciador obsessivo, sobretudo sem pertinência. Geralmente esconde vários vícios.
O primeiro, o da parasitagem. Quer dar-se por via de outros um prestígio que pelas suas ideias não obtém.
O segundo, o da fraqueza de espírito. Como não tem forma pessoal de preencher o espaço, enche-nos de referências e citações. Aflito por estar presente invade-nos o espaço com restos de ideias alheias, de glórias de outrem.
É evidente que existe uma tipologia ainda vivaz de espécimes desta natureza.
O mais conhecido, que ainda permanece, é o citador e referenciador solene. Coloca a gravata sempre que diz a palavra “Platão”, precisa da maiúscula gráfica para esconder a minúscula intelectual. O “Ser” tem sempre maiúscula, não se vá pensar ser ele mais reduzido. O citador solene pode ter o mérito da memória, e quando o tem é realmente mérito. Mas não lhe serve para nada na vida. Rapidamente se percebe que tende a ser inútil e enfadante.
O segundo é igualmente clássico. O citador lúdico, que tende à paródia por vezes. Para ele, citar é uma forma de festa, referir, uma brincadeira. Pode suscitar a boa disposição, mas é na melhor das hipóteses uma boa sobremesa que se saboreia e se esquece. Na pior, apenas inconveniente.
Mas o terceiro tipo é o mais usual na nossa época e o mesmo conhecido: o citador angustiado. Oscila entre a solenidade e o jogralesco. Na forma pretende-se descontraído, mas no fundo quer ser levado a sério. Jogral na ideologia aliás mais que na aparência, vive na aflição de nada ter para dizer e nem sequer ter graça.
As suas técnicas são conhecidas. Para dar o ar jogralesco mistura Bach com uma cantadeira menor, Homero é citado ao lado de Hemingway se for o caso, ou então, se quiser forçar ainda mais a nota, cita a literatura light. Se usa a palavra “metafísica” exorciza-se falando de imediato em futebol.
Quer-se intelectual, mas conhecedor da vida. Como não reconhece a elevação (ela denunciá-lo-ia) baixa Aristóteles ao nível do tenista do dia. O seu registo poderia parecer o do mediano, mas em bom rigor é apenas o do difuso. Tudo do que se fala participa da mesma nuvem indefinida em que umas coisas sobem, outras descem, em que tudo se agita, mas nada tem o seu lugar. É um agitador de poeira.
Em si a idolatria do vital, da pujança física, da beleza visível fica-se pela palavra, porque geralmente não é bom exemplo de nenhuma dessas coisas. Esconde-se por isso. Passa a vida escondido como os pequenos mamíferos que ainda assistiram à vida dos dinossauros. E é apenas mais uma marca da imensa tristeza que o mundo pode conter.
Alexandre Brandão da Veiga
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