Há duas vivências que sempre me foram importantes: o respeito e a admiração. Que sejam centrais numa vida pode dizer muito sobre essa vida, mas não diz o que sejam.
Sempre tive a noção dos riscos das etimologias, e bem sabemos como os antigos – não apenas os medievais, ao contrário do que se afirma – eram temerários na matéria. Platão quando pretende fazer etimologias é pura e simplesmente fantasista, bem sabemos. O controlo fonético e o juízo comparatístico passam-lhe ao lado. As suas servem para outras coisas e servem muito bem. Da mesma forma, quando Isidoro de Sevilha as faz, nem sempre o podemos ler com condescendência.
É sempre tarefa arriscada, e por vezes pura e simplesmente estéril. No entanto, quando devidamente entendida, mesmo que sempre arriscada, uma etimologia pode-nos dizer de que matéria é feito um conceito.
O que damos por evidente, disponível, facilmente utilizável, muitas vezes resulta de séculos de maturação, pensamento e experiências. Basta ver os dispositivos tecnológicos que usamos todos os dias para percebermos a imensidão de teorias e tentativas que estão por detrás de uma simples televisão ou um telemóvel.
A diferença é que as palavras vão beber a um magma de significados possíveis, onde uns se destacam de uma forma, outros de outra. E esse magma no fundo acaba sempre por nos lembrar que os significados mais complexos são no fundo muito primitivos. As diferenciações, por mais legítimas que sejam, vão sempre beber, e nunca deixam de o fazer, a um depósito de possibilidades humanas a que chamamos de significado.
Por isso quando dizemos que respeitamos ou admiramos alguém ou algo, a coisa parece-nos tão óbvia que não merece explicação. Se atribuímos valor a essas vivências, e que valor atribuímos efectivamente, pode depender de cada pessoa. Mas parece que nos entendemos todos ao evocar e ao convocar o conceito, e por isso quedamo-nos satisfeitos com a coisa. Seja. Mas não basta.
Não basta porque não se sabe o que é a coisa. A etimologia mostra que as coisas são bem mais primitivas e simples do que julgamos.
Admirar é mais simples de perceber. Admirar é ad-mirar. É ir na direcção (ad) para contemplar com espanto, valer a pena o esforço de sair de onde se está, cansar a perna, gastar o nosso tempo precioso de vida (cada um fale por si), correr o risco de não compreender plenamente, e tudo isto para se ir ter com, para atingir um fim: espantar-nos, ficarmos fascinados.
A admiração implica uma actividade esforçada de quem a pratica e um amor inveterado ao resultado que se almeja: o espanto. Significa acreditar que no mundo há coisas que nos provocam espanto, e que esse espanto nos enche a alma. Muitos gregos sabiam (não apenas Aristóteles) que a filosofia começa com a admiração, com o espanto. Uma pessoa incapaz de admirar é apenas um inepto filosófico. Mas mostra igualmente a sua pequenez, porque não acha que nada valha o esforço da sua deslocação. Fica-se por ali, porque “ali” é sempre o seu lugar natural. Sempre alhures, mas um alhures para onde nunca se vai nem se pretende ir.
A criatura que não admira, ou não vai a lado nenhum, ou vai para onde lhe pode agradar, mas onde não há espanto, nada há de admirável. Guia-se apenas pela sua preguiça e pelo seu prazer, e são ambos o escolho do seu mundo. Um mundo preguiçoso, meio aflito, esperando no máximo algum momento de alívio ou prazer. Nada mais.
O respeito já exige um pouco mais de subtileza linguística. Mas como sou um explorador indecente do meu velho Ernout-Meillet, consegui desembrulhar-me de uma situação de impasse que me seria algo embaraçante, mesmo que com isso confesse a minha muleta, mas não menos o meu trabalho.
Respeitar é olhar para trás, mas olhar para trás virando o peito (res-pectum). Quem respeita não olha para trás apenas por curiosidade. Está disposto a virar o seu corpo, a inverter a marcha, a parar o seu caminho, por causa de algo de ou de alguém. Algo ou alguém merece que paremos o nosso caminho, que invertamos a marcha se for o caso.
Curiosa relação a que existe entre respeito e admiração. A segunda faz-nos andar para a frente, o primeiro faz-nos voltar para trás. Que relação existe entre eles? Muito mais simples do que parece. A imagem do ser humano que subjaz a um mundo que gosta de respeitar e admirar é a de um mundo livre, onde se está disposto a ir para a frente ou ir para trás consoante nos imponham necessidades vitais maiores. Um mundo sem um ou outro é um que não vai para a frente mesmo que ande, que não arrepia caminho, mesmo que recue. Um mundo de partículas que actuam apenas por choque noutras partículas e onde o ser humano não é centro vital do mundo, mas apenas ponto de embate.
Para quem o respeito e admiração são aspectos centrais da vida, não acrescentei nada à sua. Eram-lhe importantes, no que faz muito bem. Se de novo alguma coisa trato não é pregar para convencidos, mas mostrar o que são as pessoas que desvalorizam o respeito e a admiração. Pessoas que andam para a frente e para trás, se for o caso, mas sem rumo nem motivo. Como insectos envenenados girovagam, passeiam-se, circumambulam. Mas, se o seu movimento não tem sentido, a razão é simples: perderam-lhe o sentido.
Alexandre Brandão da Veiga