Tenho por muitas vezes atacado
os avatares da modernidade, uma modernidade algo requentada, é certo,
transformada em pós-modernidade, em repetição de si mesma, reactivação de si
mesma, mas sempre versão cansada de um movimento que já nasceu do desprezo de
si mesmo. Fenómeno estranho na História, a modernidade nasceu pela mão de
pessoas que foram os primeiros a desprezá-la, é fruto de desprezo de si mesma. A
explicação é mais simples do que parece. Renascida tentativa de ser um novo
começo, partir do zero, reactivação do Hapax, imitação em modo menor do
cristianismo, a modernidade apenas poderia trabalhar em modo menor, acabando
por se esquecer mesmo do que são as suas grandezas.
É verdade. Mas também
não queria perder o sentido de justiça. De entre quem não se reclama da modernidade
ou pelo menos apenas dela, há muita gente a dizer tontices. Ainda recentemente
um eminente catedrático, segundo parece, afirma que: bem sabemos que somos
todos filhos do direito romano e da racionalidade grega.
Haveria muito que dizer
a propósito, e já o disse bastamente onde melhor cabia. O esquecimento de
outros povos indo-europeus que fizeram a Europa, como os germanos e os celtas,
que tanto influenciaram a Península Ibérica, como dos eslavos, que marcaram metade
da Europa, diz muito sobre a menos que sofrível capacidade de elaboração
teórica da academias.
Mas fico-me apenas pela
ladainha do direito romano e a racionalidade grega.
Filhos do direito
romano? A única coisa que os romanos fizeram teria sido o direito? Quando
conquistaram a Península ibérica inundaram Tartesso, os lusitanos e quejandos
povos de pareceres jurídicos? Teria sido uma coorte de jurisconsultos que se
atirou furiosamente às populações com as suas sentenças? Talvez tenham sido
madeiros com a Lei das Doze Tábuas a ser arremessadas sobre as fortificações
peninsulares.
Ou então, porque termos
de colocar todas as hipóteses, talvez a coisa se tenha passado da seguinte
forma. Chegaram os romanos e mostram aos povos peninsulares um arrebatador
parecer jurídico. Ao que estes disseram: «ah têm toda a razão, façam favor de
entrar e conquistar-nos. Brilhante demonstração jurídica». E entraram os
romanos e dominaram...
O direito romano? Será
que em Suetónio quando Messalina abre as pernas a metade de Roma criou as
situações potestativas? Ou Lucrécia em Tito Lívio quando as fecha cria os bens
de mão morta? Não teria sido bem mais a ética romana a ter maior influência
sobre nós que o seu direito? Não seria Heloísa bem mais estóica que cristã em
muitos dos seus movimentos e não teria sido a moral das elites europeias mais
marcada pelos exemplos dos heróis da República romana que pelos ditos de
Triboniano ou Paulo?
E a organização
política romana, tanta dela prévia ao direito, não nos teria influenciado. Será
que Gaio e as suas instituições marcaram mais a Europa que Augusto ou
Constantino? Conheço a expressão «augusta presença», «gaia presença» não me parece
que tenha acorrido à pena de nenhum escritor.
E será que os romanos
não fizeram literatura que influenciou toda a Europa latina até ao Reino Unido?
A noção de estilo, da fórmula, da eficácia discursiva, do impacto retórico, do
sentido de humor alusivo, com tudo o que tem de bom ou mau, não cobre mais as
nossas vidas que a usucapião ou a manumissão?
E quanto à tanto
referida racionalidade grega? Cleante faz o lírico hino a Zeus por pura
racionalidade? Empédocles filosofa em poesia também com este simples assento?
Toda a filosofia grega vive o terror do infinito. Ao contrário do que durante
séculos se disse os gregos eram capazes de o conceber. E que que maneira. Ao
ponto de os aterrorizar. De Aristóteles, a Plotino, passando pelos atomistas,
todos enfrentam o infinito, tentando contê-lo, evitá-lo domesticá-lo, negar o
seu valor, ou entregando-se a ele como vencidos resignados. Que tem isso de racionalidade
nua?
E não fizeram os gregos
arte? A cara de Alexandre em mosaico que nos resta ou a de Lacoonte revela
apenas racionalidade?
E a literatura? Não
seremos herdeiros dela, bem como da mitologia? Quanto Édipo fura os seus olhos
estará a ser puramente racional? Quando Medeia mata os seus filhos, ou Dejanira
leva Hércules a vestir peles envenenadas que o levam à morte e o conduzem a
deixar-se imolar pelo fogo estarão eles a fazer exercício de racionalidade? E as
ménades e os ritos mistéricos? Não é só Jâmblico, mas igualmente Platão que estão
bem longe de serem apenas, só, sem mais, exemplos de racionalidade.
O «apolíneo» Apolo lança
a peste em Tebas, e é qualificado de «o empalador». Sacrifícios humanos são
feitos em Atenas até ao início da Idade Clássica. Racionalidade? Sem mais?
Herdámos um produto depurado, pasteurizado, estéril? Ou somos herdeiros da
cultura grega, de toda ela, em todas as suas perspectivas?
Estes comentários
mostram que, mesmo quando com boas intenções, o fôlego retórico falha, a
expressão justa claudica, o conhecimento é escasso. Lamento que no espaço
público ainda possam ser ditas tais trivialidades portadoras de injustiça. Injustiça
em relação a nós e em relação aos gregos e romanos. Não somos apenas herdeiros,
nem principalmente herdeiros do direito romano e da racionalidade grega. Se
esses povos apenas nos tivessem deixado tal legado agradeceria muito, mas
deixaria o direito para os tribunais e a racionalidade para os mercados. Se não
trouxessem consigo coisas bem mais importantes, um fogo criativo, uma imensidade
vital, modos de ver o mundo conflituantes entre si, mas por isso mesmo enriquecedores,
passaria quitação da herança e passaria a outras aventuras. Graças aos céus a História
é bem mais rica que quem nela vive.
Mas vamos mais fundo. Qual
é o solo em que assenta este tipo de frases? É evidente que é mera repetição de
uma rotina escolar, escoras cómodas e simplistas, que permitem que um
pensamento não muito vigoroso descanse. Percursos académicos em que, de tanto
se ter de prestar provas do que se sabe, se esquece de saber. É evidente. Mas
há algo mais. Esse algo mais é muito simples. Herdámos do passado apenas
cascas, estruturas vazias, realidades externas à vida. Os que nos antecederam
não tinham linfa, ou pelo menos não nos é possível herdar-lhes a vitalidade.
Nomes, na melhor das hipóteses conceitos, é tudo o que podemos herdar. Por detrás
destas fórmulas vazias está uma concepção do mundo em que falta algo. O seu
nome? Intimidade. Precisamente isso: intimidade. Os antigos não a tinham, não
somos capazes de a herdar. Um mundo feito de mortos que nunca viveram, e que
nunca foram capazes de nos transmitir a vida.
Habituados à separação
entre espaço público e privado, entre racionalidade e irracionalidade, como se
o ser humano não fosse uno, entre ciências e letras, entre afectos e
pensamento, é um homem amputado que é ensinado nas academias, cortado às
fatias, pleno de compartimentos estanques. Nem um homem máquina à moda dos
materialistas do século XVIII, mas mais pobre ainda, um homem cómoda, cheia de
gavetas.
Triste, triste forma de
pensamento, requebrado em alguma rocha exposta aos ventos e sonhando com uma
vida que nunca teve. Por isso, este tipo de sínteses me parece inoperante,
vazia, sem seiva. Não somos herdeiros do direito romano e da racionalidade
grega, porque, caso fossemos apenas disso, sê-lo-íamos de bem pouca coisa, de
meras cinzas. Somos herdeiros de toda a vida dessas duas culturas, dessas
pessoas que as cultivaram, além de muitas outras. Mas, sobretudo, somos
herdeiros de vidas que nos enriqueceram. De gregos e romanos sim, mas não de
tão pouco vindo deles.
Alexandre Brandão da
Veiga