O vegetarianismo
Não me lembro da
primeira vez que tive contacto com o vegetarianismo. Vagas recordações de
infância, algumas referências esparsas. Talvez o primeiro contacto tenha sido
com o irmão mais velho de um amigo meu, que se tinha convertido ao vegetarismo.
Conversão era a palavra certa, porque pretendia mudar toda a sua vida, embora
não tenha mudado alguma da sua agressividade natural. Talvez fosse mais
paliativo que tendência.
Já via argumentos agastados
de um lado e de outro da discussão. Talvez por isso seja melhor salientar
alguns aspectos. Como em todas as áreas, mais importante que a convicção que
cada um tem, é o de saber se é honesta, profunda, se é efectivamente própria, e
não algo postiço que se tem para mostrar aos outros. Ao longo da minha vida
alguns vegetarianos provocavam a minha repulsa porque eram presunçosos, achavam-se
superiores aos outros, proselitistas assanhados. O problema não era o de serem vegetarianos,
mas o de tudo o resto que eram. De igual forma, respeito profundamente a
coerência dos vegetarianos que, não suportando ver o sofrimento animal, não se
alimentam deles. Uma artista francesa há uns tempos atrás dizia com alguma graça
que não comia nada «que possa olhar para mim».
Sejamos mais precisos. Nunca
fui capaz de caçar, apesar de ter família que caça. Da mesma forma nunca condenei
a caça. Nunca tive grande paixão por touradas, mas isso não me impediu de respeitar
quem delas gosta. Tolerância não é tolerar o que se gosta, mas o que não se
gosta. Respeitar o facto de os outros serem efectivamente diferentes e serem
legítimos na vivência dessa diversidade. Em boa verdade respeitei
particularmente os forcados, por se atirem mãos nuas a um touro... Mas não desenvolvo
esse tema, que mereceria por si mesmo outra atenção.
A questão é que existem
muitas motivações para se ser vegetariano. Sejam higiénicas seja éticas. Como
disse, respeito-lhes a coerência, mas esta apenas nasce ao custo de novas
fragilidades e incoerências.
Em primeiro lugar,
somos todos omnívoros. Em todas as culturas e civilizações os homens são
omnívoros. Comendo mais carne numa ou mais vegetais noutras, variando a dieta
consoante a classe social, não existe cultura em que o ser humano não seja
omnívoro. Talvez isso diga algo sobre a nossa condição animal. Não se pode aqui
culpar a civilização judaico-cristã, as religiões do livro ou outros lugares
comuns dos jornalistas.
Em segundo lugar, é inevitável
matar animais. Quando andamos na rua pisamos animais pequenos. Mesmo o simples facto
de respirarmos, ou por outra forma atirarmos para dentro do nosso corpo, tem um
efeito. O nosso corpo tem este hábito de os matar, eliminar, maltratar. Somos
mesmo um microbiotipo onde usamos bactérias para nos ajudar... Muitas vezes matando
outras. Pagamos assassinos a soldo igualmente, é um facto. O vegetariano tem de
se haver portanto com uma de duas possibilidades: ou assume essa contradição,
ou então despreza os animais minúsculos e reinstaura uma nova forma de hierarquia.
Os animais macroscópicos são objecto do seu respeito, mas não os microscópicos.
Em terceiro lugar,
alguma coisa tem de comer. Vegetais, entendamo-nos. Plantas e fungos, mais
tibiamente. Mas isso significa que apenas estabelece um outro nível censitário,
uma outra forma de aristocracia. Em vez de a linha terminar no homem, como cume
da criação, a linha termina entre os animais e as plantas. Os animais, todos
eles, fazem parte da aristocracia da natureza, e já as pobres plantas podem ser
comidas, usadas para nosso benefício. Ora dá-se o caso de cada vez mais se
perceber que as plantas têm vida social, certas sementes reconhecem as suas irmãs,
porque o seu comportamento concorrencial é inibido por esse facto, as árvores
mães na floresta manterão comunicações com as suas filhas através de filamentos
de fungos.
A Universidade de Nantes
descobriu que era possível fazer diagnóstico precoce da doença de Parkinson (e
pensa-se estender esta metodologia a outras doenças que afectam o sistema
nervoso) – fazendo uma biopsia ao aparelho digestivo do doente. Não ao cérebro,
mas ao sistema neurovegetativo. Precisamente: neuro... vegetativo. Fechner, o
grande criador da psicologia experimental, acreditava que havia uma vida
espiritual das plantas. A vida vegetativa, mesmo a mais elementar, talvez não
seja tão destituída de propósito próprio quanto se diz, e ainda menos de
relevância. As intuições de Teilhard de Chardin, que vê o início da noosfera
desde a origem da matéria (a oposição espírito e matéria é das mais temerárias
que existe) são apenas mais um elo numa cadeia de intuições, estudos,
conclusões, hipóteses, teorias ou verificações seguras que apontam de alguma
forma nesse sentido. Nada há de estranho nisto. Toda a biologia nasceu de
pressupostos metafísicos, e materialistas como Haeckel e Darwin não escaparam a
eles. Nada mais poético que presumir o acaso, tanto quanto presumir a correspondência.
Os animismos apenas são pobres porque exclusivos ou apressados.
O vegetarianismo não é
a imposição da igualdade na natureza, da igual dignidade de todos os seres
vivos. É apenas um alargamento da base censitária da nossa alimentação.
Alarga-se a aristocracia, mas existem ainda seres que podemos comer. Mesmo os
vegans, que supostamente apenas podem comer plantas já caídas pelo solo,
aceitam comer mortos de plantas, mas não animais naturalmente mortos ou a
carcaça do seu colega de trabalho recentemente falecido. A tanatofagia
estabelece novas hierarquias, de uma forma ou de outra, mesmo que se alimente
de inevitáveis mortes.
Não há maior coerência
entre os vegetarianos, é verdade. Mas resta ainda um quarto aspecto. E esse sob
o ponto de vista civilizacional é preocupante. Talvez o mais deslumbrante teórico
da abstinência seja Porfírio, um filósofo do fim do séc. III, início do séc. IV
d.C., um pensador com uma influência maior, mas pouco conhecido. Basta dizer
que marcou profundamente Santo Agostinho, toda a filosofia medieval assenta em
grande medida nele, a ele devemos a edição das obras de Plotino, e foi o único
grande pensador anticristão de grande substância. Porfírio tem mesmo um tratado
dedicado em especial à abstinência, onde trata da abstinência da carne dos
animais.
O vegetarianismo desenvolve-se
em épocas de recusa do corpo, como os medioplatónicos e neoplatonismo mostram. Porfírio,
na sua grandeza, é um bom exemplo disso. E as épocas de recusa do corpo são
menos saudáveis, menos vitais, menos viçosas que as outras. Não fora o
cristianismo imperar a partir do século IV d.C., poderíamos ter um percurso do
pensamento antigo a caminhar para o desastre da absoluta descorporização. Há um
desgosto pela condição natural da vida, pelo sofrimento que implica
necessariamente, pelo facto da vida se alimentar inevitavelmente de mortes, seja
de animais, seja de plantas. Excluindo os vegetais, tudo o resto para se manter
vivo tem de provocar a morte.
A vida tem aspectos
muito desagradáveis, reconheço. Mas querer recusá-los é querer fazer recusar a
vida. A decisão nesta matéria não é indiferente moralmente. Seria muito estóico
falar aqui de indiferentes. Mas a escolha por ou contra o vegetarianismo não dá
razão moral a quem escolhe um lado ou outro. E criar restrições na vida não é
em si mesmo empobrecedor. Toda a mística, a vida consagrada e a vida contemplativa
estão por aí a mostrar-nos isso. Mas também a Mãe que abdica pelo filho, o
herói pelo seu povo. Toda a vida é feita de restrições, tudo está em saber o
que escolher. Umas escolhas são boas para uns e apenas postiças para outros.
Mais uma lição a retirar: não tenhamos orgulho por ter feito uma escolha ou a contrária.
Pensemos apenas se ela é autêntica e deixemos os outros em paz nas suas
escolhas e tentames. Somos seres destinados ao erro. Não o cumulemos com a presunção.
Alexandre Brandão da
Veiga
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