terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

O vegetarianismo


Não me lembro da primeira vez que tive contacto com o vegetarianismo. Vagas recordações de infância, algumas referências esparsas. Talvez o primeiro contacto tenha sido com o irmão mais velho de um amigo meu, que se tinha convertido ao vegetarismo. Conversão era a palavra certa, porque pretendia mudar toda a sua vida, embora não tenha mudado alguma da sua agressividade natural. Talvez fosse mais paliativo que tendência.

Já via argumentos agastados de um lado e de outro da discussão. Talvez por isso seja melhor salientar alguns aspectos. Como em todas as áreas, mais importante que a convicção que cada um tem, é o de saber se é honesta, profunda, se é efectivamente própria, e não algo postiço que se tem para mostrar aos outros. Ao longo da minha vida alguns vegetarianos provocavam a minha repulsa porque eram presunçosos, achavam-se superiores aos outros, proselitistas assanhados. O problema não era o de serem vegetarianos, mas o de tudo o resto que eram. De igual forma, respeito profundamente a coerência dos vegetarianos que, não suportando ver o sofrimento animal, não se alimentam deles. Uma artista francesa há uns tempos atrás dizia com alguma graça que não comia nada «que possa olhar para mim».

Sejamos mais precisos. Nunca fui capaz de caçar, apesar de ter família que caça. Da mesma forma nunca condenei a caça. Nunca tive grande paixão por touradas, mas isso não me impediu de respeitar quem delas gosta. Tolerância não é tolerar o que se gosta, mas o que não se gosta. Respeitar o facto de os outros serem efectivamente diferentes e serem legítimos na vivência dessa diversidade. Em boa verdade respeitei particularmente os forcados, por se atirem mãos nuas a um touro... Mas não desenvolvo esse tema, que mereceria por si mesmo outra atenção.

A questão é que existem muitas motivações para se ser vegetariano. Sejam higiénicas seja éticas. Como disse, respeito-lhes a coerência, mas esta apenas nasce ao custo de novas fragilidades e incoerências.

Em primeiro lugar, somos todos omnívoros. Em todas as culturas e civilizações os homens são omnívoros. Comendo mais carne numa ou mais vegetais noutras, variando a dieta consoante a classe social, não existe cultura em que o ser humano não seja omnívoro. Talvez isso diga algo sobre a nossa condição animal. Não se pode aqui culpar a civilização judaico-cristã, as religiões do livro ou outros lugares comuns dos jornalistas.

Em segundo lugar, é inevitável matar animais. Quando andamos na rua pisamos animais pequenos. Mesmo o simples facto de respirarmos, ou por outra forma atirarmos para dentro do nosso corpo, tem um efeito. O nosso corpo tem este hábito de os matar, eliminar, maltratar. Somos mesmo um microbiotipo onde usamos bactérias para nos ajudar... Muitas vezes matando outras. Pagamos assassinos a soldo igualmente, é um facto. O vegetariano tem de se haver portanto com uma de duas possibilidades: ou assume essa contradição, ou então despreza os animais minúsculos e reinstaura uma nova forma de hierarquia. Os animais macroscópicos são objecto do seu respeito, mas não os microscópicos.

Em terceiro lugar, alguma coisa tem de comer. Vegetais, entendamo-nos. Plantas e fungos, mais tibiamente. Mas isso significa que apenas estabelece um outro nível censitário, uma outra forma de aristocracia. Em vez de a linha terminar no homem, como cume da criação, a linha termina entre os animais e as plantas. Os animais, todos eles, fazem parte da aristocracia da natureza, e já as pobres plantas podem ser comidas, usadas para nosso benefício. Ora dá-se o caso de cada vez mais se perceber que as plantas têm vida social, certas sementes reconhecem as suas irmãs, porque o seu comportamento concorrencial é inibido por esse facto, as árvores mães na floresta manterão comunicações com as suas filhas através de filamentos de fungos.

A Universidade de Nantes descobriu que era possível fazer diagnóstico precoce da doença de Parkinson (e pensa-se estender esta metodologia a outras doenças que afectam o sistema nervoso) – fazendo uma biopsia ao aparelho digestivo do doente. Não ao cérebro, mas ao sistema neurovegetativo. Precisamente: neuro... vegetativo. Fechner, o grande criador da psicologia experimental, acreditava que havia uma vida espiritual das plantas. A vida vegetativa, mesmo a mais elementar, talvez não seja tão destituída de propósito próprio quanto se diz, e ainda menos de relevância. As intuições de Teilhard de Chardin, que vê o início da noosfera desde a origem da matéria (a oposição espírito e matéria é das mais temerárias que existe) são apenas mais um elo numa cadeia de intuições, estudos, conclusões, hipóteses, teorias ou verificações seguras que apontam de alguma forma nesse sentido. Nada há de estranho nisto. Toda a biologia nasceu de pressupostos metafísicos, e materialistas como Haeckel e Darwin não escaparam a eles. Nada mais poético que presumir o acaso, tanto quanto presumir a correspondência. Os animismos apenas são pobres porque exclusivos ou apressados.

O vegetarianismo não é a imposição da igualdade na natureza, da igual dignidade de todos os seres vivos. É apenas um alargamento da base censitária da nossa alimentação. Alarga-se a aristocracia, mas existem ainda seres que podemos comer. Mesmo os vegans, que supostamente apenas podem comer plantas já caídas pelo solo, aceitam comer mortos de plantas, mas não animais naturalmente mortos ou a carcaça do seu colega de trabalho recentemente falecido. A tanatofagia estabelece novas hierarquias, de uma forma ou de outra, mesmo que se alimente de inevitáveis mortes.

Não há maior coerência entre os vegetarianos, é verdade. Mas resta ainda um quarto aspecto. E esse sob o ponto de vista civilizacional é preocupante. Talvez o mais deslumbrante teórico da abstinência seja Porfírio, um filósofo do fim do séc. III, início do séc. IV d.C., um pensador com uma influência maior, mas pouco conhecido. Basta dizer que marcou profundamente Santo Agostinho, toda a filosofia medieval assenta em grande medida nele, a ele devemos a edição das obras de Plotino, e foi o único grande pensador anticristão de grande substância. Porfírio tem mesmo um tratado dedicado em especial à abstinência, onde trata da abstinência da carne dos animais.

O vegetarianismo desenvolve-se em épocas de recusa do corpo, como os medioplatónicos e neoplatonismo mostram. Porfírio, na sua grandeza, é um bom exemplo disso. E as épocas de recusa do corpo são menos saudáveis, menos vitais, menos viçosas que as outras. Não fora o cristianismo imperar a partir do século IV d.C., poderíamos ter um percurso do pensamento antigo a caminhar para o desastre da absoluta descorporização. Há um desgosto pela condição natural da vida, pelo sofrimento que implica necessariamente, pelo facto da vida se alimentar inevitavelmente de mortes, seja de animais, seja de plantas. Excluindo os vegetais, tudo o resto para se manter vivo tem de provocar a morte.

A vida tem aspectos muito desagradáveis, reconheço. Mas querer recusá-los é querer fazer recusar a vida. A decisão nesta matéria não é indiferente moralmente. Seria muito estóico falar aqui de indiferentes. Mas a escolha por ou contra o vegetarianismo não dá razão moral a quem escolhe um lado ou outro. E criar restrições na vida não é em si mesmo empobrecedor. Toda a mística, a vida consagrada e a vida contemplativa estão por aí a mostrar-nos isso. Mas também a Mãe que abdica pelo filho, o herói pelo seu povo. Toda a vida é feita de restrições, tudo está em saber o que escolher. Umas escolhas são boas para uns e apenas postiças para outros. Mais uma lição a retirar: não tenhamos orgulho por ter feito uma escolha ou a contrária. Pensemos apenas se ela é autêntica e deixemos os outros em paz nas suas escolhas e tentames. Somos seres destinados ao erro. Não o cumulemos com a presunção.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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