quinta-feira, 7 de março de 2024

Ser e dever ser

 

Quando andava na faculdade ouvia uma ladainha sempre repetida que opunha o mundo do ser ao do dever ser. O mundo do ser era descartado e dedicávamo-nos ao mundo do dever ser. Esta obnubilação da ontologia era apenas o primeiro problema. Bem maior era o de pessoas que se diziam cristãs sentarem os seus pouco estéticos traseiros sem pensar o que tinha de artificiosa a distinção. Para um cristão o auge do ser e do dever ser é Cristo. Mas esta era uma ideia que não lhes passava pela cabeça.

 

A ideia de dever pode existir em várias gramáticas. Mas entre os gregos e os romanos era bem mais difusa. «Officium» em Cícero, sem dúvida. Mas o verbo é usado sobretudo no latim medieval. No latim clássico usa-se o gerundivo, que se traduz como dever. Em vez do medieval «distinguere debemus» surge o muito mais elegante «distinguendum est». A própria construção verbal com o verbo «esse», ser, mostra que a visão romana é antes do mais ontológica. Está-se a falar do que é. Em vez de se falar em dever talvez se devesse falar de tarefa. É tarefa distinguir. Muito melhor assim.

 

Uma coisa é uma tarefa que está à nossa frente e parte da nossa essência, outra coisa é um dever que se pode mesmo colocar no centro da alma, mas que se opõe à realidade. Uma tarefa é uma realidade que decorre do que somos, um dever opõe-se ao que o mundo é.

 

Não faço jogo de palavras. Não é por mera ocasião que quem mais teoriza essa distinção é Kant. Kant é um imenso génio ao estilo medieval, que faz obras de grande relojoaria como os escolásticos, em que da primeira à última palavra tudo está concatenado. O vulgar não percebe até que ponto ele é medieval na sua consistência lógica e por isso sente-o como moderno. E sente-se moderno quando o lê. Ora, o que se chamavam a si mesmo os medievais? De medievais? É evidente que não. Chamavam-se a si mesmos de... modernos.

 

Kant permite aos seus leitores serem medievais sob a condição de abdicarem da ontologia. De início como modo de pensamento. De seguida, nos seus sequazes, mesmo como aspiração. E ainda mais os seus leitores se sentem modernos por terem sido desapossados. Mas tiveram alguma vez posses?

 

As obras éticas de Aristóteles mostram a mesma frescura. Não se diz: deves fazer isto. Mas: olha o que fazes e vê as consequências. As acções vêm do seu autor, são expressão do que ele é, as suas consequências são postas no mundo. É evidente: Aristóteles não é um simples moralista. É um homem com uma gigantesca capacidade ontológica.

 

Quando vejo alguém que só fala de moral e valores penso que é sempre um duplo sinal. De amputação intelectual. Incapaz de ontologia, escuda-se no dever ser. De reles origem, quer primar por uma nobreza interior insindicável. Sou melhor que os outros apesar de ser um esfacelo e um burgesso, é o que está a dizer. O mundo moral é invisível e insindicável, bom refugio para os desgraciosos.

 

Não é por coincidência que segue, mesmo que não queira, os pós-modernismos. O exercício de dissolução do ser que lhe impõem não lhe dá nem trabalho nem sacrifício. Pronto a vestir é o seu mundo. Já tem tão pouca substância e de tão pouco valor que lhe é fácil abdicar de coisa tão ligeira e de tão escassa valia.

 

O grau mais reles deste pensamento é o dos que dizem que não têm identidade, que são cidadãos do mundo, que as fronteiras são apenas as dos direitos do homem. Como acham que o mundo do dever ser se configura livremente, acabam por achar que o mundo realmente importante é o da sua fantasia. E como também esta é fraca, tudo o que lhe agrada à primeira impressão é colocado neste mundo.

 

A questão é que nada nesse seu mundo de fantasia tem consistência. Diz não ter identidade, mas passa a vida a defender a identidade de outras culturas religiões e modos de vida. Presunçoso, considera-se superior aos outros, enraizados, e ele sem raiz. Os que vê como seus concidadãos são os que falam um inglês sem Pope nem Donne como ele, como ele usam a Internet, e como ele defendem causas ambientais. Incapaz de pensar uma real diferença, julga-se universal porque vê o mundo à sua medida: chão e uniforme. E as fronteiras delimitadas pelos direitos do homem consolam-no por lhe permitirem atingir uma universalidade sem ontologia.

 

Um mundo moral, o mundo da sua fantasia, um mundo em que aceita que nada é perene. Como ele, é tudo caduco, previsível, enfadonho, sem aventura. A sua leitura não é a epopeia nem o texto sagrado. Mas o hipertexto. Ou seja, um texto prenhe de possibilidades nunca realizadas, mas de conteúdo nulo. Celebra-se. E é bom que se celebre. Que depois da sua morte ninguém o vai fazer.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

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