Ser e dever ser
Quando andava na faculdade ouvia uma ladainha sempre
repetida que opunha o mundo do ser ao do dever ser. O mundo do ser era
descartado e dedicávamo-nos ao mundo do dever ser. Esta obnubilação da
ontologia era apenas o primeiro problema. Bem maior era o de pessoas que se
diziam cristãs sentarem os seus pouco estéticos traseiros sem pensar o que
tinha de artificiosa a distinção. Para um cristão o auge do ser e do dever ser
é Cristo. Mas esta era uma ideia que não lhes passava pela cabeça.
A ideia de dever pode existir em várias gramáticas. Mas
entre os gregos e os romanos era bem mais difusa. «Officium» em Cícero, sem
dúvida. Mas o verbo é usado sobretudo no latim medieval. No latim clássico
usa-se o gerundivo, que se traduz como dever. Em vez do medieval «distinguere debemus»
surge o muito mais elegante «distinguendum est». A própria construção
verbal com o verbo «esse», ser, mostra que a visão romana é antes do mais
ontológica. Está-se a falar do que é. Em vez de se falar em dever talvez se
devesse falar de tarefa. É tarefa distinguir. Muito melhor assim.
Uma coisa é uma tarefa que está à nossa frente e parte da
nossa essência, outra coisa é um dever que se pode mesmo colocar no centro da
alma, mas que se opõe à realidade. Uma tarefa é uma realidade que decorre do
que somos, um dever opõe-se ao que o mundo é.
Não faço jogo de palavras. Não é por mera ocasião que quem
mais teoriza essa distinção é Kant. Kant é um imenso génio ao estilo medieval, que
faz obras de grande relojoaria como os escolásticos, em que da primeira à
última palavra tudo está concatenado. O vulgar não percebe até que ponto ele é
medieval na sua consistência lógica e por isso sente-o como moderno. E sente-se
moderno quando o lê. Ora, o que se chamavam a si mesmo os medievais? De
medievais? É evidente que não. Chamavam-se a si mesmos de... modernos.
Kant permite aos seus leitores serem medievais sob a
condição de abdicarem da ontologia. De início como modo de pensamento. De
seguida, nos seus sequazes, mesmo como aspiração. E ainda mais os seus leitores
se sentem modernos por terem sido desapossados. Mas tiveram alguma vez posses?
As obras éticas de Aristóteles mostram a mesma frescura. Não
se diz: deves fazer isto. Mas: olha o que fazes e vê as consequências. As
acções vêm do seu autor, são expressão do que ele é, as suas consequências são
postas no mundo. É evidente: Aristóteles não é um simples moralista. É um homem
com uma gigantesca capacidade ontológica.
Quando vejo alguém que só fala de moral e valores penso que
é sempre um duplo sinal. De amputação intelectual. Incapaz de ontologia, escuda-se
no dever ser. De reles origem, quer primar por uma nobreza interior
insindicável. Sou melhor que os outros apesar de ser um esfacelo e um burgesso,
é o que está a dizer. O mundo moral é invisível e insindicável, bom refugio
para os desgraciosos.
Não é por coincidência que segue, mesmo que não queira, os
pós-modernismos. O exercício de dissolução do ser que lhe impõem não lhe dá nem
trabalho nem sacrifício. Pronto a vestir é o seu mundo. Já tem tão pouca
substância e de tão pouco valor que lhe é fácil abdicar de coisa tão ligeira e
de tão escassa valia.
O grau mais reles deste pensamento é o dos que dizem que não
têm identidade, que são cidadãos do mundo, que as fronteiras são apenas as dos
direitos do homem. Como acham que o mundo do dever ser se configura livremente,
acabam por achar que o mundo realmente importante é o da sua fantasia. E como
também esta é fraca, tudo o que lhe agrada à primeira impressão é colocado
neste mundo.
A questão é que nada nesse seu mundo de fantasia tem
consistência. Diz não ter identidade, mas passa a vida a defender a identidade
de outras culturas religiões e modos de vida. Presunçoso, considera-se superior
aos outros, enraizados, e ele sem raiz. Os que vê como seus concidadãos são os
que falam um inglês sem Pope nem Donne como ele, como ele usam a Internet, e
como ele defendem causas ambientais. Incapaz de pensar uma real diferença,
julga-se universal porque vê o mundo à sua medida: chão e uniforme. E as
fronteiras delimitadas pelos direitos do homem consolam-no por lhe permitirem atingir
uma universalidade sem ontologia.
Um mundo moral, o mundo da sua fantasia, um mundo em que
aceita que nada é perene. Como ele, é tudo caduco, previsível, enfadonho, sem
aventura. A sua leitura não é a epopeia nem o texto sagrado. Mas o hipertexto. Ou
seja, um texto prenhe de possibilidades nunca realizadas, mas de conteúdo nulo.
Celebra-se. E é bom que se celebre. Que depois da sua morte ninguém o vai
fazer.
Alexandre Brandão da Veiga