sexta-feira, 5 de novembro de 2021

A responsabilidade histórica

 

É o que vemos nas tabernas e na televisão. Falam-nos de responsabilidade histórica. A Europa tem responsabilidade histórica, coisa que mais ninguém tem. Invocação de privilégio aristocrático único, quem o invoca deve ser visto com particular admiração, ou suspeita. Porque julgas ter o que mais ninguém tem? O que te leva a sentir tão especial?

O problema é que a responsabilidade histórica… não é um conceito histórico. O adjectivo «histórica» está plantado como uma peruca torta numa cabeça mirrada que não a sustenta, como uma coroa feita para mais imperial cabeça. Não é tarefa histórica atribuir responsabilidades. Essa é tarefa de advogados, juízes, executores. Porque se precisa de usar o adjectivo «histórica» para fazer algo que a História não pode fazer?

Este conceito levanta mais um outro problema. É que quem fala da responsabilidade histórica dos seus antepassados mostra não conhecer bem os seus costados. Talvez não tenha sido claro para todos, mas os arranques industriais são feitos explorando em primeiro lugar os próprios provos, e só depois outros. Talvez tenha ficado algo esquecido, mas havia um proletariado inglês, alemão, francês, belga. Que significa isso? Que os primeiros explorados pela expansão capitalista são os próprios povos. Foi o que fez a Europa ao longo do século XIX, foi o que fez a China desde o fim do século XX.

A maioria das pessoas descende, não dos dominantes, mas dos dominados. Por isso, se alguém diz que tem responsabilidade históricas porque os seus antepassados exploraram outros, terá de verificar bem se não estará a violar não apenas a estatística, mas igualmente a sua história familiar. O mais provável é que seja descendente da criadagem, de proletariado, tão explorados quanto o nativo nas colónias. Posso por isso anunciar uma boa nova: não têm responsabilidade histórica. Os seus antepassados foram tão explorados quanto o indígena, são descendentes de explorados, tal como o colonizado.

A sensação desagradável que julgavam sentir pelos privilégios que tiveram os seus antepassados é apenas fruto de alguma presunção. Olhem-se ao espelho. Descendem de degradados, é de baixo coturno, tem finalmente motivo para se alegar pelo facto. Não têm responsabilidades históricas.

Resta portanto saber quem tem responsabilidade histórica. Mas é evidente: os descendentes dos dominantes. E quem são estes? A nobreza, é evidente. São os nobres quem descende de uma mais longa linhagem de exploradores, esses sim têm responsabilidades históricas.

Mas também aqui nos deparamos com um problema. É que desde há cerca de quarenta anos me dizem que não existo. Que não há nobres. E ficamos todos felizes. Os únicos com vocação para serem culpados são considerados inexistentes pela mesma ideologia que procura culpados a todo o transe.

As responsabilidades históricas são assim um conceito espúrio que apenas pode nascer em mentes muito fracas: são privilégio de europeus, e não de mais nenhum povo que teve impérios.  Os turcos e árabes podem ter impérios, mas não têm responsabilidades históricas. Pena que só atinge uma raça, estranha doença. Provoca sintomas ginecológicos em homens, até estes descobrirem que lhes é impossível apanhar a doença.

São descendentes de explorados, e ainda não perceberam que se podem reivindicar vítimas. E os únicos, os restantes, únicos culpados, de tal maleita não existem. Exclusividade, intensidade, reflectividade e inexistência. Cheira quase a criação de uma estrutura algébrica. Mas por quem não sabe fazer contas. Pode, por isso, o leitor alegrar-se sempre que vir alguém invocar responsabilidades históricas. Significa apenas que tem semblante não decorativo, e interior não funcional.

Façamos uma síntese. Quem fala de responsabilidades históricas:

1)   1) É confuso: confunde História com contabilidade e direito;

2)   2)  É racista: considera que a responsabilidade não vem do que se pratica, mas de uma raça, tem um pensamento racista (se forem outras culturas a fazer os mesmos que os europeus já acha que não têm responsabilidades; assim os turcos e os árabes, que fizeram impérios a que devemos muito);

3)  3)  É desprezante: despreza o proletariado;

4)   4)  É desprezante de si mesmo: despreza os seus antepassados;

5)   5)  É presunçoso: quando se sente responsável sente-se de origem nobre;

6)   6)  É inconsistente: o único responsável consistente que existiria, ele mesmo diz que é inexistente.

Em suma, não é muito dotado sob o ponto de vista intelectual. O que em si não é pecado. Salvo quando se demonstra que é ideias que pretende criar. Que um destituído intelectual queira fazer desporto, em nada tem de condenável. Que queira ter ideias… Apenas mostra que quem o segue com ele sente afinidades… Intelectuais.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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