A herança do nazismo
Pode-se dar o caso de todo o povo alemão ser culpado, admitamo-lo. Como a França e a Inglaterra que com ele pactuaram e que tiveram nas suas elites fortes defensores do nazismo, o mesmo se dizendo de Portugal, Espanha, Roménia... A lista não pararia. E a verdade é que se trata do único povo da Historia que pagou efectivamente os custos das suas asneiras. E em grande medida motu proprio. A principal teorização anti-nazi parte em grande medida da própria Alemanha e nunca um povo com o poder que tem o alemão desde os anos 60 pagou tão colossais indemnizações de guerra.
Para o pensamento oficial o nazismo não faz parte da História, é como uma Encarnação do Mal, uma História de Anticristo. Ao contrário de todos os outros fenómenos históricos, que têm uma perspectiva de compreensão humana, o nazismo é dado como o incompreensível. Até Átila, as crueldades assírias, dos turcos e mongóis, o genocídio dos arménios e assírios pelos turcos em 1915, até isso tem explicação e pode ser objecto mesmo de simpatia. Mas o nazismo é considerado fora da compreensão humana.
O nazismo para esse mesmo pensamento oficial foi apagado. Mas como tudo o que é afastado por um passe de mágica aparece onde menos se espera. Em vez de se ter integrado o nazismo no nosso passado comum, praticou-se um exorcismo; faz-se de conta que já foi apagado, salvo uns grupúsculos que são considerados como casos clínicos.
Este pensamento oficial é ele mesmo patológico e infantil. Porque nada está fora da História, nada na vida humana está fora da vida humana, mesmo que se possa entender que a sua fonte lhe é externa. O nazismo como uma anti-Encarnação é um mito anticristão ele mesmo, mas construído com instrumentos de pensamento cristãos. Nada se apaga da História, e quanto mais recalcada uma realidade, mais ela se manifesta de forma difusa, inconveniente, inesperada. Por isso as metástases do nazismo são tão insistentes na nossa época.
É isso que tentarei fazer. Ver as heranças do nazismo que imperam no actual espaço público.
Algumas são evidentes. Existe uma herança cultural que não se deve tanto ao nazismo, mas à Alemanha enquanto era nazi. Enquanto o era não deixou de ser Alemanha, e não deixou de produzir génio e excelência. Heidegger, Benn, Heisenberg, Richard Strauss não passaram a ser lerdos só porque viviam num regime totalitário, como Prokofiev ou Chostakovski não passaram a ser duros de ouvido por viverem em ditadura. São conhecidas as caças aos cientistas e descobertas alemães depois do nazismo. E se os Estados Unidos devem o programa espacial a von Braun, o caso mais conhecido, ainda estão por esclarecer os roubos que americanos e soviéticos fizeram à ciência alemã. Malvados e imperdoáveis os nazis, mas pelos vistos bastante valiosos para os vencedores.
Mas esta não é uma herança do nazismo propriamente dito, embora Heidegger, um dos grandes mestres da esquerda libertária europeia, esteja bem longe de ser um anti-nazi. A sua herança encontra-se noutros planos.
Em primeiro lugar, o anti-cristianismo. O nazismo não inventou o anti-cristianismo. Este existe desde que existe cristianismo. Todos os grandes movimentos geram reacções e adversários. E em graus diversos sempre existiu na Europa, sob a capa da heresia, da política de Estado, interesses comerciais ou outros. Mas o nazismo é filho da Revolução Francesa (onde se viu um cabo austríaco a governar um país, como lhe chamava o aristocrata Churchill), da revolução industrial inglesa, do empirismo e do racionalismo, tanto quanto dos movimentos irracionalistas do século XIX. Hoje em dia alguns intelectuais anticristãos (penso em Onfrey em França, por exemplo) inventam simpatias do nazismo pelo cristianismo que não existiram. Mas a frase de Hitler: “primeiro os judeus, depois os católicos”, a perseguição de clérigos, a perseguição das aparições marianas dos anos 30 em nome da ciência (?) e da ordem pública (!), o especial cuidado em eliminar os judeus convertidos ao catolicismo, e a própria mensagem racista e eugénica negam frontalmente tanto os ensinamentos crísticos como o das igrejas institucionais. Isto associado à simpatia de Himmler pelo Islão, de tal forma que criou Waffen SS constituídas exclusivamente por muçulmanos. O nazismo não foi original neste papel em comparação com o comunismo, salvo na preservação das igrejas como monumentos históricos. É o mesmo modelo que se encontra hoje em dia. Acarinham-se os templos como meros monumentos históricos, ao mesmo tempo que se recusa o seu papel constitutivo da cultura europeia. Nisto a Europa actual é herdeira do nazismo mais uma vez.
Em segundo lugar, o ódio à tradição. A tradição não é o antigo, ao contrário do que se pensa. É o transmitido. O que é transmitido pode ser bem mais recente. Muitos tradicionalistas do Vaticano I foram confrontados com críticos que se escoravam... nos Padres da Igreja. E para se criticar a moral cristã recorreu-se mil vezes a Epicuro e aos cirenaicos, muito mais antigos que os ensinamentos de Cristo. Também nisto o nazismo não é original. Participa do mito da criação do homem novo, e da mesma seiva dos movimentos futuristas. O futuro como exclusivo motor associado a um passado reinventado é apanágio das ditaduras do século XX, sobretudo do nazismo e estalinismo. Uma Europa que se quer construir com base num passado mítico, em que afinal tivemos mil imperadores e génios muçulmanos, em que afinal fomos apenas encruzilhada de civilizações e não uma civilização em pleno título, associado a uma ideia que nos temos de virar para o futuro depois de termos arrumado sumariamente o passado é o paradigma da actual fase da construção europeia.
Em terceiro lugar, o culto da natureza, do corpo e do desporto associado a uma ideia de superioridade moral do vegetarianismo. Também aqui o nazismo não é original, tendo ido beber à República de Weimar a sua imensa capacidade de antecipar o futuro do século XX. Ainda está por se fazer um hino ao desporto como o filme de Leni Riefenstahl sobre Munique. Mas está lá antecipado muito do espírito da Europa actual. O que nos ocupa tempo dá-nos a medida da importância que objectivamente lhe damos. O tempo que nos ocupam estas tendências diz muito sobre que solo se quer construir a Europa actual, mais uma vez aqui antecipada pelo nazismo (lembro mais uma vez que dos primeiros panfletos ecológicos em papel reciclado era anti-semita, da extrema esquerda alemã).
Em quinto lugar, como não podia deixar de ser, o anti-semitismo: no fórum altermundialista de Durban circulavam entre ecologistas, altermundialistas e fundamentalistas islâmicos o Protocolo dos Sábios de Sião e o Mein Kampf. O anti-semitismo passou a ser frequentável, e refere-se hoje em dia expressamente ao nazismo, não tanto nos movimentos de direita (que salvo franjas recorrem mais à tradição anti-judaica cristã que ao anti-semitismo) mas mais do lado das novas esquerdas. Sob a capa do anti-sionismo o ódio ao judeu instila-se nos sacerdotes da verdade absoluta dos relativismos culturais.
Em suma, e em tema difícil de caber em poucas linhas, dois efeitos teremos desta invasão nazi no nosso espaço público. Uma diferenciação sentimental que se esbate, orientalizando a Europa, que já está disposta a ter residentes oprimidos em nome em nome de culturas em declínio e abrindo mais ainda o espaço à crueldade. E consequentemente à guerra. E uma Europa de mentiras marteladas até cheirarem ao sangue da verdade. Até que comece a correr um outro mais verdadeiro.
Alexandre Brandão da Veiga