Mercado e empirismo
Refiro-me obviamente ao “Economist”.
É apenas um exemplo e não o centro da questão. Mas mostra como uma mitologia apressada pode influenciar um povo de forma tão profunda. O que se vende sobre o povo britânico é que se trata de um povo realista e empirista, cultor do mercado. O inglês mediano (o que é mediano nunca é excitante) assim acredita, e de tanto vender essa imagem acaba por acreditar nela. Vê devolvida a imagem que projectou. Quando o actor e o público acreditam numa personagem, parece tudo correr bem, mas só é assim se de teatro se trata.
Que o povo inglês tenha uma longa tradição de realismo não há dúvida. No sentido medieval da polémica dos universais. Anselmo de Cantuária está-nos presente para nos lembrar disso, bem como John of Salisbury. O problema é que “realismo” nesta acepção, em linguagem algo mais moderna, diz-se... idealismo.
Um país que teve a grande escola platónica de Oxford, William Blake, Turner e todo o movimento romântico, seria amputado de boa parte do melhor da sua cultura sem o que hoje se chama também em acepção popular de... idealismo. Nem a ciência escapa a essa sina. Maxwell e Hamilton, sendo amputados à cultura britânica, seriam uma imensa perda para a mesma... e para nossa.
O problema é que a forma como a visão popular inglesa mostra o mercado padece dos mesmos vícios de uma auto-imagem distorcida. Quando o inglês mediano nos apresenta o mercado apresenta-o como mais uma forma do seu tão propalado realismo.
Mas há um elemento que traduz exactamente o contrário. Toda a apologia ingénua do mercado esquece um aspecto essencial: a irreversibilidade. Usando a velha metáfora da teoria da selecção natural, há espécies que morrem pelas forças “naturais” do mercado.
Há modos de vida que são irreversivelmente destruídos. Há apetências e competências que são irreversivelmente destruídas, há vidas que são irremediavelmente destruídas, paisagens trucidadas, ecossistemas eliminados. A crítica socialista do século XIX não era fruto de mera imaginação delirante. Podem-se contestar as suas soluções, pode-se contestar mesmo o conjunto do seu diagnóstico, mas os sintomas de que fala são verdadeiros e não podem ser negados.
Uma visão primária do mercado (popular, entenda-se) esquece-se das irreversibilidades que provoca. Não a tem em conta nos custos do modelo. E por isso afasta-o da realidade.
Precisamente por não a ter em conta no modelo, ignora a seta do tempo, um pouco como Prigogine entre tantos demonstrou que a mecânica clássica faria. Nesse sentido a mecânica clássica é irrealista, assim como uma visão ingénua do mercado.
Piaget dizia que o sinal da razão era a consciência da reversibilidade. É verdade. Da reversibilidade lógica. Se sei que A é igual a B, então tenho de deduzir que B é igual a A. Mas uma lógica intemporal não é a que se instala no tempo. Esperar a reversibilidade no tempo é pensamento mágico, umas vezes primitivo, outra simplesmente primário.
Nesse sentido, a forma como a visão popular veicula o mercado retira-o do tempo e esquece a irreversibilidade. Coloca-o na esfera do ideal, torna-o mágico e na melhor das hipóteses acaba em contemplação mística.
Por isso, quando a visão popular diz que o britânico mediano (não falo dos grandes, mas dos medianos) é realista e que a sua visão do mercado mostra a sua dimensão empirista, penso sempre que recusa experiência, não sendo empirista, que não assenta esse mercado no tempo, ignorando a sua irreversibilidade. E que mostra mais uma vez a força do pensamento idealista a entrar pela porta de serviço de quem se afirma a ele contrário. Fazendo do mercado centro religioso de contemplação mística.
Alexandre Brandão da Veiga