segunda-feira, 8 de abril de 2024

A apologética muçulmana

 


Na época actual e no dito Ocidente há dois traços que marcam a apologética muçulmana. Digo no Ocidente porque em países asiáticos como a Turquia a necessidade apologética não é inexistente mas diversa.

 

Dois traços: a razoabilidade, os limites lógicos, se se quiser, e a numerologia.

 

A razoabilidade e a lógica não são a mesma coisa, mas na apologética muçulmana identificam-se e isso diz algo da sua antropologia mais que da lógica ou da razoabilidade. Entendamo-nos. Como se vê um muçulmano? Não é filho de Deus, é mera criatura. Não é amado por Deus. É absurdo achar que Deus ama seres tão infinitamente distantes d’Ele. Deus não fez nem nunca fará nenhum sacrifício por ele, como é evidente. E Deus não fala nem nunca falará com ele. Mesmo a Maomé foi um anjo que falou.

 

Um texto místico do islão diz: entre Mim e ti não há caminho. Exacto. O homem é uma mera criatura, eternamente sem ouvir Deus nem com alguma possibilidade de alguma vez O ver.

 

Por isso se compreende que para o muçulmano seja absurdo um Deus que ama o homem e que Se revela na Sua intimidade como relação. Deus nunca Se revela, é o absolutamente Outro. Não nos ama, não faz por nós nenhum sacrifício. É razoável, e por isso parece lógico.

 

O problema é que o homem actual do dito Ocidente tem dificuldade em destrinçar a razoabilidade da racionalidade. As teorias matemáticas dos transfinitos nada têm de razoável, mas são perfeitamente racionais. E como o homem moderno tem pouco contacto com o infinito, deixa-se levar por algum cheiro desta argumentação.

 

A outra dimensão da apologética muçulmana no Ocidente é numerológica. A visão numerológica da teologia não é liminarmente ilícita. Santo Agostinho tinha alguma tendência para isso. E em nada essa tendência lhe estragou a lucidez. Ajudou-o mesmo a perceber a Trindade. Não é mau. Mas era guiado por um forte sentido da Incarnação. E isso conteve os efeitos secundários do seu lado pitagórico. Se bem me lembro, é o próprio papa Bento XVI que o chama de pitagórico.

 

O problema de uma visão meramente numerológica é precisamente a da sua fragilidade racional. Em primeiro lugar, assenta muitas vezes em relações matemáticas que são triviais, outras vezes inevitáveis ou quase, em geral irrelevantes sob o ponto de vista estatístico ou matemático. E mais grave ainda, irrelevantes sob o ponto de vista teológico. O número de vezes que aparece uma palavra, as proporções entre o número de palavras e um capítulo podem ter alguma relevância estilométrica, quando muito, mas duvidosamente dizem algo sobre a revelação divina. Salvo se se entender que o divino é trivial.

 

Mas é também sintomático da incultura histórica dos teólogos muçulmanos. A ideia de crítica do texto, de uma História da tradição, que de modo mais ou menos desenvolvido aparece na teologia europeia, é-lhes estranho. Falar de estratos de um texto, das suas variantes, é-lhes interdito sob o ponto de vista teológico e inconcebível sob o ponto de vista intelectual.

 

No fundo, uma e outra tendência estão ligadas. Identificar razão e razoabilidade é mostra de um pensamento provincial, que esquece que a razão tem múltiplas manifestações, a matemática, a histórica, a filológica, a biológica, entre outras. E são muitas vezes surpreendentes, ou seja, bem pouco razoáveis. 

 

A ideia de um Deus transcendente e sem comunicação connosco tem como efeito só aparentemente paradoxal que apenas se admite um Deus conceptualmente razoável, ou seja, comezinho, provincial, medíocre. Um e três são coisas diferentes, um Criador não pode amar a criatura porque isso seria fetichismo, um texto sagrado não pode ter uma História. O mundo transcendente não dialoga com o humano, na melhor das hipóteses dá-lhe ordens, imposições, destinos férreos. Tudo isto é razoável, e como dizia o outro: tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado.

 

A apologética tenta apresentar o islão como uma religião razoável, esquecendo que à sua volta dois monstros acossam essa mesma apologética. Os actos pouco razoáveis que se praticam em nome do islão, e o facto de a razoabilidade ser uma limitação. Da razão humana, mas também da própria concepção de Deus.

 

No fundo também, revelam a esterilidade de um pensamento, fracamente matemático, sem capacidade crítica do texto, sem capacidade de verdadeira análise histórica. Erudição despida, sem capacidade de criar nexos de ligação ou um pensamento vivo. Exactamente como a maioria das teses de doutoramento. Por isso, se não atraem os cientistas, não os chocam, e se não dão a volta à cabeça dos das humanidades, estes já estão habituados a textos enfardados e sem viço. Em suma, sentem uma afinidade mole com os apologetas maometanos. Mas como as suas afinidades são sempre moles, sentem-se em casa, uns e outros.

 

Se não suscitam o imediato ridículo é porque acendem as luzes moles de uma fraca afinidade com o que o dito Ocidente promove hoje em dia. Em vez de um pensamento duro, predador, heróico, sem piedade, como o de Newton ou Pascal, encontram um pensamento que se diz fraco com Vattimo e só nessa confissão tem uma ponta de verdade.

 

A apologética maometana só não é objecto de ridículo como o seria até à II Guerra Mundial, porque entrou numa época em que se cultiva a mediocridade, o sentencioso, uma abertura invertebrada. O que tem de cómica só não é percebido porque a cultura da época é tristonha e se sustenta, não de alimento saudável, mas de ansiolíticos e antidepressivos. Que exista neste estado é a vergonha dos de Mafoma. Que seja recebida por nós é a nossa vergonha. Nos templos do pensamento há vassouras. Servem para limpar o lixo que entra e nem no fanum deve ter direito de cidade.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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quinta-feira, 7 de março de 2024

Ser e dever ser

 

Quando andava na faculdade ouvia uma ladainha sempre repetida que opunha o mundo do ser ao do dever ser. O mundo do ser era descartado e dedicávamo-nos ao mundo do dever ser. Esta obnubilação da ontologia era apenas o primeiro problema. Bem maior era o de pessoas que se diziam cristãs sentarem os seus pouco estéticos traseiros sem pensar o que tinha de artificiosa a distinção. Para um cristão o auge do ser e do dever ser é Cristo. Mas esta era uma ideia que não lhes passava pela cabeça.

 

A ideia de dever pode existir em várias gramáticas. Mas entre os gregos e os romanos era bem mais difusa. «Officium» em Cícero, sem dúvida. Mas o verbo é usado sobretudo no latim medieval. No latim clássico usa-se o gerundivo, que se traduz como dever. Em vez do medieval «distinguere debemus» surge o muito mais elegante «distinguendum est». A própria construção verbal com o verbo «esse», ser, mostra que a visão romana é antes do mais ontológica. Está-se a falar do que é. Em vez de se falar em dever talvez se devesse falar de tarefa. É tarefa distinguir. Muito melhor assim.

 

Uma coisa é uma tarefa que está à nossa frente e parte da nossa essência, outra coisa é um dever que se pode mesmo colocar no centro da alma, mas que se opõe à realidade. Uma tarefa é uma realidade que decorre do que somos, um dever opõe-se ao que o mundo é.

 

Não faço jogo de palavras. Não é por mera ocasião que quem mais teoriza essa distinção é Kant. Kant é um imenso génio ao estilo medieval, que faz obras de grande relojoaria como os escolásticos, em que da primeira à última palavra tudo está concatenado. O vulgar não percebe até que ponto ele é medieval na sua consistência lógica e por isso sente-o como moderno. E sente-se moderno quando o lê. Ora, o que se chamavam a si mesmo os medievais? De medievais? É evidente que não. Chamavam-se a si mesmos de... modernos.

 

Kant permite aos seus leitores serem medievais sob a condição de abdicarem da ontologia. De início como modo de pensamento. De seguida, nos seus sequazes, mesmo como aspiração. E ainda mais os seus leitores se sentem modernos por terem sido desapossados. Mas tiveram alguma vez posses?

 

As obras éticas de Aristóteles mostram a mesma frescura. Não se diz: deves fazer isto. Mas: olha o que fazes e vê as consequências. As acções vêm do seu autor, são expressão do que ele é, as suas consequências são postas no mundo. É evidente: Aristóteles não é um simples moralista. É um homem com uma gigantesca capacidade ontológica.

 

Quando vejo alguém que só fala de moral e valores penso que é sempre um duplo sinal. De amputação intelectual. Incapaz de ontologia, escuda-se no dever ser. De reles origem, quer primar por uma nobreza interior insindicável. Sou melhor que os outros apesar de ser um esfacelo e um burgesso, é o que está a dizer. O mundo moral é invisível e insindicável, bom refugio para os desgraciosos.

 

Não é por coincidência que segue, mesmo que não queira, os pós-modernismos. O exercício de dissolução do ser que lhe impõem não lhe dá nem trabalho nem sacrifício. Pronto a vestir é o seu mundo. Já tem tão pouca substância e de tão pouco valor que lhe é fácil abdicar de coisa tão ligeira e de tão escassa valia.

 

O grau mais reles deste pensamento é o dos que dizem que não têm identidade, que são cidadãos do mundo, que as fronteiras são apenas as dos direitos do homem. Como acham que o mundo do dever ser se configura livremente, acabam por achar que o mundo realmente importante é o da sua fantasia. E como também esta é fraca, tudo o que lhe agrada à primeira impressão é colocado neste mundo.

 

A questão é que nada nesse seu mundo de fantasia tem consistência. Diz não ter identidade, mas passa a vida a defender a identidade de outras culturas religiões e modos de vida. Presunçoso, considera-se superior aos outros, enraizados, e ele sem raiz. Os que vê como seus concidadãos são os que falam um inglês sem Pope nem Donne como ele, como ele usam a Internet, e como ele defendem causas ambientais. Incapaz de pensar uma real diferença, julga-se universal porque vê o mundo à sua medida: chão e uniforme. E as fronteiras delimitadas pelos direitos do homem consolam-no por lhe permitirem atingir uma universalidade sem ontologia.

 

Um mundo moral, o mundo da sua fantasia, um mundo em que aceita que nada é perene. Como ele, é tudo caduco, previsível, enfadonho, sem aventura. A sua leitura não é a epopeia nem o texto sagrado. Mas o hipertexto. Ou seja, um texto prenhe de possibilidades nunca realizadas, mas de conteúdo nulo. Celebra-se. E é bom que se celebre. Que depois da sua morte ninguém o vai fazer.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Devemos desprezar Mandela?

 

 A resposta é obviamente positiva e não sou eu a dizê-lo, é a nossa época em coro unânime.

 

Dizer que a África do Sul se transformou num país corrupto e violento, ou que perdeu importância relativa na economia africana não é argumento. Muitos homens grandes deixaram bem menores depois da sua morte. Não são os chefes menores da Academia que diminuem a grandeza de Platão. A questão é bem diversa.

 

A nossa época diz-nos que devemos desprezar Mandela, Gandhi e Martin Luther King. Di-lo, mas não sabe que o diz.

 

A resistência pacífica é algo de precioso? Não, diz-se hoje em dia. Não foi Gandhi o criador da resistência pacífica, mas antes os mártires de Córdova do século IX. Cristãos sob o domínio muçulmano revoltaram-se contra ele. Com armas? Não. Saindo à rua e dizendo que eram cristãos. Como os trata a historiografia liberal? Como provocadores que no fundo mereceram ter sido mortos pela espada, e outros crucificados.

 

Alguém os invoca hoje em dia? Não. A resistência pacífica não interessa ninguém hoje em dia. O importante é ter lutado contra os impérios europeus. Os argelinos que castraram e mataram europeus são vistos como heróis, tanto quanto Gandhi. A invocação da resistência pacífica é apenas um pretexto. Com ou sem violência, alguém é bom apenas se se tiver oposto aos europeus. A originalidade de Gandhi é assim nula, como mostrei, e irrelevante, como a nossa época pensa, mas não diz.

 

Sim. A admiração por Gandhi destruída pela nossa época. Mas Mandela, e Martin Luther King? A nossa época não os admira? A resposta é negativa. Apenas lhes dá uma caução provisória, até arranjar outros que os substituam.

 

Como posso afirmar isto? Como não percebo a admiração tão sincera e tão proclamada em relação a eles?

 

Também aqui a demonstração é simples. Quando era criança lembro-me bem de quem eram os heróis do humanitarismo. Florence Nightingale e Albert Schweitzer. Eram sempre dados como exemplos máximos dele. E agora? Quem cita Mandela, King e Gandhi nunca refere os primeiros. Porquê? É que se admira o humanitarismo deveria não esquecer os grandes humanitários. E, no entanto...

 

A época quer mortos frescos, prontos a admirar. A substância do que alguém fez, o seu mérito não tem importância. A sua admiração tem um prazo de validade. É pela mesma razão que é indiferente aos mártires de Córdova, a Florence Nightingale e a Albert Schweitzer que a sua aparente admiração por novos heróis se mostra oca.

 

No século XXII irão admirar a Kakaká e o Lelelé e se alguém lhes falar em Mandela vão mostrar a total indiferença que sentem por Mandela. A sua admiração é de consumo, como um iogurte: caduca.

 

Nesse século XXII será o meu equivalente que lhes vai lembrar Mandela e os mártires de Córdova. E lhes vai lembrar que, nada admirando de perene, deixam a nu o vazio da sua admiração. E nessa altura quem falar de Mandela vai ser desprezado. Precisamente: pelos defensores do humanitarismo.

 

Eis como esta época me ensinou que Mandela, King e Gandhi são desprezíveis. Porque só os admira sob a condição de os poder livremente substituir na sua memória. 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

 

 

 

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terça-feira, 30 de janeiro de 2024

A questão judaica

 

 

 


Vamos por partes. Só vendo os vários efluentes podemos conhecer bem o rio. Bem sei que é tema perigoso. Os hábitos tribais e provincianos dos europeus transformaram em tabu a questão. Época estreita esta. Rasguemos um pouco os seus antolhos.

 

Primeiro curso de água: uma ou outra série de televisão, filmes de Hollywood, uns documentários e, para os que se julgam mais dotados, alguns livros. O holocausto foi um horror, o anti-semitismo um outro horror. Sem qualquer margem para reflexão. Num nível mais presunçoso há mesmo os que vão mais longe no tempo e dizem que o anti-semitismo é de origem cristã. Neste caso, e só quando tem defeitos, a nossa civilização deixa de ser por milagre judaico-cristã e passa a ser apenas cristã. Caprichos...

 

Este quadro acabou de vez com o anti-semitismo? É que se o diagnóstico fosse profundo e certeiro não teríamos dados largos passos no caminho da terapêutica? Uma árvore conhece-se pelos seus frutos. E os desta são escassos e de pouco alimento. O anti-semitismo pulula na nossa época.

 

Segundo curso do rio. Dois livros. Em 1844 um de Marx. Em 1944 um de Sartre. De comum um e outro: contra a ideia da Revolução Francesa do homem universal. O problema judaico só se resolve com o homem concreto na sua situação concreta. Esconder que há um judeu, em suma, esconder a essência (sim, a essência, os marxistas clássicos têm uma metafísica) é eludir o problema. Esta é a boa tradição marxista contra a visão burguesa do homem universal, a de Marx, a de Labriola e mesmo Sartre. 

 

Este segundo curso tem os seus méritos. Não é por o judeu ser integrado na cidade e tratado igualmente com os outros cidadãos que desaparece o problema judaico. Nisto os marxistas tinham razão. Não tinham o fetiche da lei. Ainda hoje em dia um ministro pode ser igual perante a lei mas de reles semblante visível a todos. A lei nada cura. E nisto o judeu não é diferente dos outros. A lei apenas nivela o que pode. Não destrói as desigualdades naturais. E é evidente que há graus de honestidade diversos. Labriola, o mais aberto, não pode ser comparado ao oportunismo de Sartre. Marx omite muito, mas ao menos não encobre com fórmulas mágicas como Sartre.

 

A outra corrente é a popular. E como tudo o que é de baixo nível faz encontrar os extremos pelo lado errado. Um dos extremos é o do filo-semitismo popularucho. O das séries de televisão e quejandos. Os judeus são vítimas, foram sempre vítimas e são credores eternos em relação ao resto do mundo. O outro extremo é o do anti-semitismo popularucho. Os judeus são eternos culpados façam o que fizerem. Entre turcos e muçulmanos em geral prevalece este movimento. 

 

Nem uma nem outra força acabaram com o anti-semitismo. Declarar que um povo é isento de pecado original é tão perigoso quanto afirmar que dele tem o exclusivo. Porque de uma forma ou de outra cria uma ligação especial entre esse povo e o pecado original. Teria sido bem mais sensato ver o que de trivial tem esse povo para se dissolver da trivialidade da História. O problema é que ninguém parece querer que seja trivial. Tanto quem gosta como quem não gosta. 

 

Uma outra corrente assenta numa dimensão algo intelectual, mas em modo menor. A do sionismo e do anti sionismo. Algo menor porque criada por intelectos bem inferiores a Marx ou Labriola. Por jornalistas políticos, para dizer tudo. Theodor Herzl é uma personagem bem curiosa, com todos os clichés contra os judeus - tanto ele como Sartre falam da fealdade dos judeus, e Sartre bem sabia de fealdade. O criador do sionismo não achava que o povo judeu fosse belo ou particularmente inteligente, mas queria um lugar seguro para ele. E conseguiu a simpatia do Kaiser Guilherme II da Alemanha e do rei da Itália. De certa forma quem mais banalizou o povo judeu foi quem mais efeitos obteve no longo prazo. O anti sionismo alimenta-se, enquanto mero anti sionismo e não mero disfarce do anti judaísmo da mesma ideia de que o povo judeu é banal.

 

Uma forma especial desta corrente popular é também dupla. A extrema-esquerda e o islamismo parecem ser completamente opostos. Afinal, a extrema-esquerda não odeia a religião? Sim. Odeia a religião. A única que consegue ver como verdadeira. A cristã. As outras são deliciosas expressões de outras culturas. Vazias de sentido, mas ao menos formas legítimas de existência. O que os une é muito mais. Um pensamento plebeu que nega toda a forma de aristocracia, uma obsessão com a violência verbal e física, com a expressão universal absoluta e ao mesmo tempo destruidora. Uma baixa origem e baixos intentos.

 

Sendo ambos filhos do folclore urbano tendem ambos a ficar satisfeitos com a ideia de que os judeus são todos capitalistas, actuando por detrás da cena. Não é por acaso que em países asiáticos como a Turquia o protocolo dos sábios de Sião faz desde há muitas décadas sucesso. Não tendo participado dos arcanos do poder acham que todo o poder é arcano. O que os separa é no fim absoluto e bem se sabe que num dia em que os islamistas tiverem poder os primeiros a ser mortos serão os de extrema-esquerda. Mas é o Estado liberal que permite a sua união. Precisamente por não permitir que se matem uns aos outros e esconder o facto de que essa é a história final. Triste comédia de enganos, como todas terminará em tragédia... ou farsa.

 

O fundo da questão judaica é eludido por quem detesta e por quem adora os judeus. A Europa é o único continente que corresponde a uma cultura. Não há uma cultura africana. Um egípcio não se sente irmanado com um quimbundo. Não há cultura asiática. Um turco e um chinês não têm a mesma cultura. A Europa era o único continente mono religioso. Toda a Europa era cristã até que há trinta anos se decidiu que devia ser multicultural.

 

A questão judaica na Europa só tem acuidade secular porque os judeus tradicionalmente são o único elemento de multiculturalismo na Europa. Irrelevantes sob o ponto de vista demográfico, e até ao século XIX irrelevantes sob o ponto de vista económico político e cultural. Não há sinagogas nas praças principais das capitais europeias, não há famílias reais judias, nem famílias nobres judias. As nobilitações do século XIX nunca geraram dinastias reconhecidas pela nobreza de sangue. E ainda hoje em dia a antiga nobreza inglesa, de origem franco-normanda não reconhece as raras famílias judias nobilitadas.

 

Enfim, longa demonstração a fazer noutro lugar. A questão no caso é outra. A questão judaica é o único sintoma secular multiculturalismo na Europa. Todos os sistemas multiculturais em todas as épocas em todas as civilizações foram de violência cíclica e de reserva mental. O que a Europa está habituada a pensar em relação aos judeus já a Hispânia muçulmana, os impérios árabe e turco e o sassânida conheciam em relação aos judeus e aos cristãos.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Ho fame

 

 


Alessandro Manzoni é um dos meus autores preferidos. Para explicar a razão levaria aqui muito tempo. O que importa é que, por uma ligação de afecto ou o que se queira chamar, gosto de atravessar sempre que possível a Via Alessandro Manzoni em Milão. Sai-se da Galeria de Victor Emanuel e vê-se em frente o Teatro della Scala. Quem gosta de ópera já sabe do que falo.

 

É uma rua rica numa zona rica numa cidade rica. Mesmo no início da rua, do lado direito, vi por quatro dias um homem que dormia na rua e parecia não sair de lá, de dia ou de noite. Sempre coberto com um édredon, deitado quase sempre, uma vez vi-o sentado a olhar com concentração um ponto, não sei o quê. 

 

As palavras que com ele troquei são agora irrelevantes, e que Deus me julgue por que só Ele pode conhecer. Mas das várias vezes que passei por ele vi o seu olhar vazio, talvez sem motivação, ou sem estímulo. Ao seu lado uma cartolina que dizia em capitulares a frase mais simples: HO FAME. Tenho fome.

 

Numa rua rica num bairro rico num país rico num continente rico. Tenho fome. Notoriamente italiano, portanto europeu, portanto responsável pelo colonialismo e pela exploração dos outros povos. Um porco explorador sem redenção. Tenho fome. E pensei como uma Europa rica acha que já resolveu o problema da sua pobreza e pode abandonar-se às delícias da miséria alheia.

 

Tenho fome... Chesterton dizia que se queríamos ver real diversidade devíamos apanhar o metro e sair na estação seguinte e não ir à outra ponta do mundo. Compreende-se. Quem precisa de andar centenas ou mesmo milhares de quilómetros para ver a diversidade apenas mostra que não tem subtileza. Só lê o que aparece em letras garrafais. Não percebe a importância fundamental das diferenças subtis. Precisa do tamanho gigante para ler um texto. É um destituído, em suma.

 

Tenho fome... A mensagem cristã é a de amar o próximo, não a humanidade. A primeira é de Cristo, a segunda é de Victor Hugo. Alguém que não veja a diferença entre um e outro mais uma vez mostra que não é subtil. Curtius dizia que Hugo era uma cascata de banalidades e em parte tem razão. As suas proclamações são actos de teologia definhada em alma de merceeiro. Não era um génio do pensamento. E por isso é fácil de seguir por definhados do pensamento como ele. De novo, os bons sentimentos...

 

HO FAME. Os que se ocupam do Terceiro Mundo e não vêem a miséria à sua volta, os que se consideram globais, ou seja, e em confissão plenária, rotundos, são apenas os descendentes de pensadores de taberna, para quem o destino do seu próximo é irrelevante, e a defesa dos fracos apenas prevenção contra os ataques legítimos ao que são. Afirmando-se defensores dos fracos, pavoneiam uma santidade que não têm e afirmam ninguém ter.

 

Tenho fome... O que não perdoam ao próximo que tem fome concreta e não faz parte dos seus pobres quadros conceptuais é que exista e que seja ao mesmo tempo uma metáfora do que são. Uma miséria indiferente à miséria alheia que precisa criar o espectáculo da preocupação quando a sua verdade é apenas a de destituídos. Já não de pão, mas de espírito.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 10 de novembro de 2023

O paraíso platónico

 


Quem confia nos deuses? Sendo incomensurável, quem pode ter a certeza do que nos desejam e, pior ainda, das suas limitações? Que promessas nos fazem? Que promessas podem cumprir? O homem moderno já superou isto tudo porque usa telemóvel, telecomando e televisão, tudo com o prefixo de «longe», porque para ele tudo está longe como o pensamento, e em consequência desencarnado.

A imaginação humana, raramente consoladora, se lhe vemos a face insuficiente, dá-nos consolações coxas. Ou há paraísos para homens, em que as mulheres têm como destino estar de pernas abertas para os satisfazer, ou andamos todos aos saltinhos a pular uns com os outros e passamos a ter o arcaboiço intelectual de cabritinho, enquanto entoamos laudas aos direitos do homem, ou somos atirados à frigidez das estrelas. É o que homem pode em geral, e é bem pouco, porque o muito que podem alguns poucos não sobra para atingir os céus impunemente.

E eis um dos muito poucos que ousa dizer coisas sobre o paraíso. Ou melhor, sobre a sua entrada e os sinais que dele conseguiu receber. Não entrou no paraíso, nem descreveu a eternidade porque esta levaria uma eternidade para o fazer. Esse mesmo: Platão. Um dos raros chamados de divino, seja por hábito, seja por real admiração, seja por uma lucidez que chama os nomes que podemos chamar a alguém que soube dar nomes a muitas coisas.

Não se pode exigir mais da perspectiva humana. Buda fez algo muito diferente, e era também apenas humano. Mas a sua opção foi não descrever, ou fazer-nos ao menos acreditar que não descrevia. Aristóteles não descreve, mas apontou com conceitos, ou seja, com filhos do sentimento, o que seria o mundo da divindade. E outros fazem genealogias, como Plotino, e em excesso Proclo. Veja-se onde pode ir a imaginação humana. A dos grandes, dos muito grandes.

A entrada, porque não é do seio paradisíaco que fala, a entrada é um grande julgamento. Faz sentido. Também as punições e as recompensas. A mitologia grega já as tinha e muitas religiões as tinham. É de filósofo não ter medo da religião. E dessa entrada vêm sinais do que é o paraíso. Quais são esses sinais?

«Ardieu não veio, nem virá mais aqui. Entre os espectáculos terríveis a que assistimos também este nos tocou» (Rep. 615d) (PLATONE, Repubblica, Bompiani, Milano, 2019, pp. 1056-1057). Sem qualquer possibilidade de redenção. Definitivo. Para quem sorrir perante esta possibilidade que pense o que seria arder num inferno destes.

No mito de Er (Rep. 621b) (PLATONE, Repubblica, Bompiani, Milano, 2019, pp. 1074-1075) há um rumor e um terremoto. Platão não o quer dizer, mas é o que diz: o céu não é um local absolutamente seguro. Não o queria dizer, mas disse-o. Não conhece um céu sem possibilidade de fissuras, senão de crepúsculo.

O paraíso platónico é contado desde a Renascença pelo menos, e pela filosofia clássica alemã de Oitocentos, como o reino da serenidade, da compleição, da satisfação de si, do saciamento. Tudo isto contra a inquietação cristã, essa insidiosa malandra que quando é contada por Pessoa é excitante, mas quando se vê cristã é sinal de espírito masoquista e indiferenciado.

Eis-me indiferenciado. Contra todas as possibilidades humanas, contra a imaginação humana, contra a insipidez humana que se julga aventurosa apenas por achar que supera não se sabe bem o quê, contra tudo isso, percebo que Platão mostra a sua grandeza que o leva até onde foi, e a sua grandeza meramente humana, quando mostra que não consegue conceber um paraíso que não seja defectivo, que não perca pessoas, que não tenha fissuras.

Foi o mais longe que um ser humano poderia ir com as suas forças. Buda calou, pelo menos em algumas das suas versões, Platão disse algo. E disse por isso algo mais que Buda. Falou das brechas do maior dos bens que conseguia imaginar, porque esse maior bem era imaginado por um ser humano, ou seja, com brechas. Foi até o mais longe que podia e viu um abismo, ao menos suspeita dele. E não o calou. Que os seus comentadores não o refiram é problema dos comentadores, não seu.

Porque quando vai ao fim de si mesmo o ser humano apenas encontra um espelho, e o retrato de si mesmo. Para ver algo mais tem de aceitar um encontro com alguém que partilha a sua natureza e a transcende ao mesmo tempo. Os paraísos que o ser humano consegue imaginar acabam sempre em pesadelos, ou pior ainda, anunciam-nos ao longe. Onde está Ardieu, o que farão os terremotos? Que anunciam os rumores? Os que esperam do paraíso uma consolação de remendo e não a verdade acabam na ilusão e no tremor. E esta ilusão só a revela Quem é em si mesmo a Verdade, mas essa será dita noutras  ocasiões.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

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segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Os europeus são exploradores?

 


Já sabemos que os europeus são a pior raça que existe na Terra e isto é mesmo verdade mesmo que não existam raças. Os europeus exploraram o resto do mundo, que não conhecia a exploração antes de os europeus a terem criado. Mais ninguém explora ninguém.

 

Mas há uma relação entre três factos, público declarados e evidentes que não vejo ser feita.

1)    Cada vez há menos europeus a emigrar para o Reino Unido.

2)    Cada vez há mais emigrantes não europeus a migrar para o Reino Unido.

3)    Há falta de mão de obra em sectores muito consumidores de trabalho como a hotelaria, a restauração, os serviços médicos, o apoio a velhos e deficientes, as colheitas na agricultura.

 

Estes trabalhos que são muito exigentes em trabalho não são, em consequência, realizados por trabalhadores não europeus.

 

Por isso temos de chegar a algumas conclusões:

1)    São trabalhos fáceis e pouco exigentes. Por isso, são tipicamente realizados por europeus.

2)    Os paquistaneses e africanos que emigram não se dedicam a estas actividades porque são todos doutorados e vêm fazer revoluções na ciência inglesa.

3)    Ou os não europeus vêm realizar trabalhos menos exigentes ou vêm parasitar os bens e serviços públicos britânicos que, por mais medíocres que possam ser numa perspectiva nórdica, são um paraíso para gente vinda do Terceiro Mundo.

 

Temo bem que os jornalistas e os académicos já tenham dado o seu veredicto: os milhares de migrantes não europeus são todos doutorados, sobretudo em física atómica e topologia. E todos eles vão contribuir para as revoluções científicas, filosóficas e artísticas da Europa futura.

 

Ficamos todos felizes. O mundo encontrou a sua coerência.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

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segunda-feira, 23 de outubro de 2023

O grande sonho crítico

 

É bem conhecido o lugar-comum de Kant dizendo que se libertou do seu sono dogmático lendo a obra de Hume. Vejo isto repetido, e pode ser mera ladainha, ou importante premissa para um raciocínio mais escorado. Cita-se a frase, e esquece-se o seu efeito encantatório.

 

É que uma coisa é dizer que Kant se sentia num sono dogmático, e como ele passava as noites melhor ele saberia, outra coisa são as ilações que o leitor obediente desta observação retira. A primeira: os sonos apenas nascem da dogmática. A segunda: a dogmática conduz forçosamente a sonos.

 

Comecemos pela segunda, que é mais fácil de rebater. Toda a revolução científica foi feita por dogmáticos, no sentido em que foi feita por cristãos convictos e que aderiam muito conscientemente a dogmas. Galileu, Kepler e Pascal aos dogmas católicos e mesmo o anti-trinitário Newton aos dogmas de um Deus criador etc. Dogmáticos, porque o eram também na ontologia. Não eram medíocres como os pós-modernos negadores de toda ontologia.

 

A dogmática conduz a sonos? Cria o torpor? Onde? Onde Bach ou Pergolesi perderam a lucidez é algo que terão de me explicar, que se me escapa.

 

Vamos então à segunda tese, implícita, como tudo o que é nebuloso: os sonos apenas nascem da dogmática. A crítica nunca gera sonos.

 

Primeira fraqueza desta tese: a de acreditar que conseguimos ser plenamente críticos e auto-críticos sem pressupostos implícitos. Puro irrealismo e infantilidade. Ignorância da axiomática. Gente sem literacia matemática.

 

Segunda fraqueza da tese: nem tudo o que se chama a si mesmo de crítico o é. Ser crítico de tudo significa apenas não ter critério e ser destruidor. E mais uma vez esta tese mostra o seu irrealismo. É impossível fazer crítica consistente sem premissas sólidas, indemonstradas, sem as quais não há demonstração.

 

O que acha que a crítica nunca causa o sono vive ele num sono. A prova: vejam-se quantos académicos dizem que não há verdade, e em tribunal dizem que foram acusados por mentirosos, quantos dizem que a ciência europeia é ficção mas vão à urgência médica e não ao marabu.

 

Tartufos? Mentirosos? Adormecidos? Que importa? No mundo de torpor que celebram, entre a vigília e o sono não há fronteiras, como não há fronteiras, e os povos e o que são e os outros nada é. E por isso já vemos os seus argumentos dissolverem-se como uma pasta informe. Dormem? Como o saber? Não muda a sua justiça acordados ou em pesadelo. Putrefacto o seu sentido crítico, gangrenam até na sua respiração. E não digo paz à sua alma, porque afirmam não a ter. Já o tínhamos visto.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

(mais)

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Atlântida e Atenas

 

  

 

 

 

 

 

A história que vem contada as crianças é a de que um sacerdote egípcio teria dito ao ateniense Sólon que:

1)    1) Os gregos seriam sempre crianças;

2)    2) Tinha havido uma grande civilização a Atlântida.

 

Ambas são verdade. O problema são as ilações que os literatos delas retiram:

1)    1) Os gregos são bem mais recentes que os egípcios;

2)    2) A sua memória é mais curta;

3)   3)  Só fora da Grécia houve uma civilização que pôde confrontar-se com a egípcia.

 

O sorriso masoquista da maioria dos leitores aparece aqui. Veja se como a Europa é nova-rica perante as grandes civilizações orientais. Como o Ex Oriente lux faz suspirar os laicos, como se sentem em casa se a civilização vier de terras bíblicas...

 

Mas esta ideia é destinada a vários descalabros.

 

Que, falando da Grécia, se pense na Europa é acto falhado para quem acha que a Europa é bem mais recente e só começa com o cristianismo. Está a confessar que para si a Europa é bem mais antiga do que proclama. Que para lhe dar um estatuto de nova-rica tenha de ir a tempos cristãos, quando ao mesmo tempo diz que o cristianismo não é constitutivo da Europa outro seu fracasso intelectual. Cabeças cheias de contradicções.

 

Que a memória do grego seja mais curta que a egípcia resulta claro do texto. Do próprio Aristóteles há textos de que resulta que os gregos tinham noção de que, poucos séculos antes, tinham vindo de uma época turva, convalescente. Mas memória mais curta não significa História mais curta. Significa apenas que não se tem memória da sua História.

 

O que diz o sacerdote egípcio? Vocês atenienses esqueceram-se da vossa grande História, quando Atenas era poderosa e muito desenvolvida. O vosso problema não é vir de baixo, mas o de se terem esquecido que vêm de cima.

Se os gregos serão eternas crianças, não é por estarem na infância da civilização, mas por se terem esquecido que vieram do contrário.

 

A Atlântida era um grande civilização, mas Atenas também, e houve mesmo uma guerra entre elas.

 

As ilações dos literatos, salvo a da memória curta são, pois, todas falsas. O problema dos gregos não é de terem uma História inglória ou curta mas de se terem esquecido de quão antiga e gloriosa era.

 

O masoquismo europeu fica aqui embaraçado. Porque o mito popular enleva a Atlântida e não dá lugar à grande Atenas? Quer dizer talvez que os gregos actuais, ou seja, os europeus, ainda são eternas crianças e se esquecem de quão antiga e gloriosa a sua História tão ou mais antiga que a egípcia.

 

Aqui tinha razão Chateaubriand quando dizia que se os europeus vissem a sua História como europeus se veriam mais antigos que a China.

 

Aqui pode ter razão quem veja nesta História a marca da queda da civilização do Bronze no fim do século XII a.C., em que, de todas as grandes culturas, a helénica, micénica e cretense, a hitita, a mesopotâmica e a egípcia, só a última resistiu, mesmo que pagando o preço de uma forte decadência.

 

Que os gregos dos séculos V e IV a.C. tivessem memória de um descalabro e negrume histórico é inevitável. Ao contrário dos romanos, que se sabem de longa História e migrantes, os gregos julgam-se de mais curta. A aristocrática Esparta vê se descendente de migrantes dórios, a democrática Atenas vê se nascida da terra autóctone, racicamente pura. Os nazis tinham tanto interesse na democracia ateniense quanto na aristocracia espartana e com boas razões.

 

Lido o texto directamente (Timeu 21E-26E), sem as glosas das glosas que satisfazem os literatos, revela-nos uma História bem diferente. E uma História que choca o transeunte da cultura. Mas se esse europeu se sente confortável em ser chamado de novo-rico, vindo de baixa cultura e sempre inferior a outros, talvez esteja a ser justo. Mas consigo mesmo. Não com os seus parceiros de civilização que gostaria de consigo arrastar na lama.

 

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

 

 

 

 

 

Atlântida e Atenas

 

A história que vem contada as crianças é a de que um sacerdote egípcio teria dito ao ateniense Sólon que:

1)    Os gregos seriam sempre crianças;

2)    Tinha havido uma grande civilização a Atlântida.

 

Ambas são verdade. O problema são as ilações que os literatos delas retiram:

1)    Os gregos são bem mais recentes que os egípcios;

2)    A sua memória é mais curta;

3)    Só fora da Grécia houve uma civilização que pôde confrontar-se com a egípcia.

 

O sorriso masoquista da maioria dos leitores aparece aqui. Veja se como a Europa é nova-rica perante as grandes civilizações orientais. Como o Ex Oriente lux faz suspirar os laicos, como se sentem em casa se a civilização vier de terras bíblicas...

 

Mas esta ideia é destinada a vários descalabros.

 

Que, falando da Grécia, se pense na Europa é acto falhado para quem acha que a Europa é bem mais recente e só começa com o cristianismo. Está a confessar que para si a Europa é bem mais antiga do que proclama. Que para lhe dar um estatuto de nova-rica tenha de ir a tempos cristãos, quando ao mesmo tempo diz que o cristianismo não é constitutivo da Europa outro seu fracasso intelectual. Cabeças cheias de contradicções.

 

Que a memória do grego seja mais curta que a egípcia resulta claro do texto. Do próprio Aristóteles há textos de que resulta que os gregos tinham noção de que, poucos séculos antes, tinham vindo de uma época turva, convalescente. Mas memória mais curta não significa História mais curta. Significa apenas que não se tem memória da sua História.

 

O que diz o sacerdote egípcio? Vocês atenienses esqueceram-se da vossa grande História, quando Atenas era poderosa e muito desenvolvida. O vosso problema não é vir de baixo, mas o de se terem esquecido que vêm de cima.

Se os gregos serão eternas crianças, não é por estarem na infância da civilização, mas por se terem esquecido que vieram do contrário.

 

A Atlântida era um grande civilização, mas Atenas também, e houve mesmo uma guerra entre elas.

 

As ilações dos literatos, salvo a da memória curta são, pois, todas falsas. O problema dos gregos não é de terem uma História inglória ou curta mas de se terem esquecido de quão antiga e gloriosa era.

 

O masoquismo europeu fica aqui embaraçado. Porque o mito popular enleva a Atlântida e não dá lugar à grande Atenas? Quer dizer talvez que os gregos actuais, ou seja, os europeus, ainda são eternas crianças e se esquecem de quão antiga e gloriosa a sua História tão ou mais antiga que a egípcia.

 

Aqui tinha razão Chateaubriand quando dizia que se os europeus vissem a sua História como europeus se veriam mais antigos que a China.

 

Aqui pode ter razão quem veja nesta História a marca da queda da civilização do Bronze no fim do século XII a.C., em que, de todas as grandes culturas, a helénica, micénica e cretense, a hitita, a mesopotâmica e a egípcia, só a última resistiu, mesmo que pagando o preço de uma forte decadência.

 

Que os gregos dos séculos V e IV a.C. tivessem memória de um descalabro e negrume histórico é inevitável. Ao contrário dos romanos, que se sabem de longa História e migrantes, os gregos julgam-se de mais curta. A aristocrática Esparta vê se descendente de migrantes dórios, a democrática Atenas vê se nascida da terra autóctone, racicamente pura. Os nazis tinham tanto interesse na democracia ateniense quanto na aristocracia espartana e com boas razões.

 

Lido o texto directamente (Timeu 21E-26E), sem as glosas das glosas que satisfazem os literatos, revela-nos uma História bem diferente. E uma História que choca o transeunte da cultura. Mas se esse europeu se sente confortável em ser chamado de novo-rico, vindo de baixa cultura e sempre inferior a outros, talvez esteja a ser justo. Mas consigo mesmo. Não com os seus parceiros de civilização que gostaria de consigo arrastar na lama.

 

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

(mais)

Editorial

As democracias liberais em que vivemos não impõem objectivos sociais, nem quaisquer concepções normativas de bem. Estão ancoradas na ideia de direitos e liberdades individuais, recusando a imposição de valores absolutos ou de concepções pré-definidas de um bem comum. Sem negar a existência de uma Verdade última (isto é, sem negar a existência de um bem último ou comum), e nesse sentido afastando-se do puro niilismo, as nossas actuais democracias, assumindo a sua matriz liberal, negam ao Estado o direito de impor dogmaticamente uma concepção específica de bem. Ao invés, assentam no pressuposto de que o indivíduo pode, por si próprio e através de um processo racional de confronto de ideias, encontrar o caminho para a Verdade.

A pedra angular de todo este edifício demo-liberal, a condição mesma da sua existência, é um espaço público em que, de modo livre e incondicionado, sem preconceitos, sem dogmas e com uma atitude assumidamente tentativa, se confrontam teorias e concepções distintas, ideias e visões opostas, das quais, em última análise, acabarão por brotar valores que nos implicam com tudo o que tem a ver com a vida contemporânea, da filosofia ao sexo, da arte à política, da história à moral, da liberdade a Deus.

Como tal, este ‘marketplace of ideas’, à maneira de Stuart Mill, constitui uma das mais preciosas e poderosas garantias do respeito pela nossa liberdade individual. A sua construção e alimentação quotidianas são um direito, mas sobretudo uma responsabilidade de cada um de nós – que não pode ser inteiramente delegada nem em partidos políticos, nem em corporações, nem tão pouco no chamado sistema mediático.

Neste contexto, o «Geração de 60», enquanto espaço plural de debate que se deseja imodestamente sério e inteligente, é uma contribuição egoísta para a defesa da nossa própria liberdade.