As polémicas de Dawkins
O conhecido biólogo
Richard Dawkins tem-se especializado na polémica nos últimos anos. Escusado será
dizer que lhe assiste alguma parte de razão. Depara-se com fundamentalistas
cristãos folclóricos que fazem os dinossauros conviver com os humanos, que defendem
e forma acrítica a ideia de desígnio inteligente, que procuram na Bíblia ou no
Corão a verdade científica. A sua irritação é compreensível em muitos aspectos,
porque as insuficiências filosóficas dos seus oponentes são evidentes.
Aquilo de que não se
apercebe o próprio Dawkins é que as suas insuficiências filosóficas não são
menores. Em vez de clarificar conceitos enlameia-se em equívocos e insuficiências
críticas. De um lado e do outro, o debate é pouco original, enfadonho, e repete
a mais de um século de distância o que já se tinha visto no século XIX. Que um
lado e outro repitam a polémica apenas mostra que a arrogância em relação aos
nossos antepassados, que nos leva a ter a presunção de que os ultrapassámos
deixa muito a desejar.
Vejamos cada uma destas
limitações de Dawkins por sua vez.
O seu ateísmo militante.
Que uma pessoa seja ateia militante é de seu direito, não o vou negar. Mas o
ateísmo sofre de uma insuficiência lógica de que nem ateus nem crentes nem agnósticos
se apercebem. O que diz um ateu? Deus não existe. Para que esta asserção seja
verdadeira é necessário que se esteja a dizer «eu vi toda a realidade e não estava
lá Deus». Logicamente. Admitir que se viu toda a realidade futura e presente e
fora do tempo se a houver, saber precisamente o que não existe, é no mínimo temerário.
Um ateu entende que pode ignorar a existência de um verme, mas a existência de
Deus não ignora. Sabe tudo sobre ela. Que não existe.
O agnosticismo pode ser
uma espécie de snobismo e não com mais base lógica, é certo. Vittorio Messori
lembrava que na sua juventude a moda em Itália era a de se ser agnóstico, e ser
ateu era visto com maus olhos, como uma forma de intranscendência ingénua.
Neste caso, embora o agnosticismo não padeça do vício lógico do ateísmo, tem
ainda menos fundamento, porque é pura pretensão social.
Dawkins tem ao menos a frescura
de, numa época que faz renascer espiritualidades desencontradas ter um
projecto, um evangelho cheio de certezas: Deus não existe, a ciência é a base
do diálogo humano.
Ora é precisamente por
misturar estas duas ideias que Dawkins mostra mais uma inconsistência lógica. A
ausência de Deus e a ciência não se implicam mutuamente. E mais outra: que a
ciência seja a base do diálogo humano é inverter a ordem das prioridades.
Vejamos mais uma vez
como Dawkins mistura conceitos. A ciência nada diz sobre Deus. Os seus
ensinamentos tanto podem ser usados a seu favor como a seu desfavor. O mecanismo
é simples. Em desfavor os que se quedam pelo que a ciência diz. É evidente que
não fala directamente de Deus, senão não seria ciência. Seria difícil pensar
que Deus é inversamente proporcional ao quadrado de seja o que for. Em favor,
os que salientam para onde a ciência parece apontar, para as suas últimas
motivações.
Entra aqui outro vício de
Dawkins. Não apenas se deixa absorver pela simples polémica, sempre com o mesmo
inimigo, o fundamentalismo religioso – o que pode ser sensato em certas épocas,
nem digo se na nossa, mas é sempre limitado – como mostra ignorância filosófica
e falta de sentido crítico.
Luta contra o desígnio inteligente
como cavalo de batalha do fundamentalismo religioso. O problema (dele e dos fundamentalistas)
é que esta tese é pagã e não cristã. Está a atacar o que julga ser cristão
quando não o é, e outros a definir o que julgam ser cristão e não o é também. O
desígnio inteligente encontra-se em Aristóteles e Galeno, bem antes de ser teorizado
pelos cristãos. Nesse sentido, Dawkins está no mesmo plano crítico que os
fundamentalistas. Ambos acreditam na mesma premissa... falsa.
O desígnio inteligente,
ou melhor a ideia de finalidade, não é por outro lado, exclusivo de crentes ou pagãos.
Mach reconhecia nem que fosse um resíduo de teleologia na biologia. Da mesma
forma o princípio da acção mínima na física configura um pressuposto finalístico.
Dawkins socorre-se de uma certa forma de ver a biologia, e não a única, nem de
ver a biologia e muito menos a ciência.
Por outro lado, de
tanto se sentir na necessidade de defender Darwin caba por se transformar num exegeta
de uma nova Bíblia, «A Origem das Espécies». É bem sabido que a obsessão com o
inimigo nos torna similares a ele e Dawkins começa a tornar-se uma espécie de
tele-evangelista do Middwest americano no seu tipo de argumentação (embora com
mais bela pronúncia).
Outro vício em que cai
é do é o de que, por ser detentor de uma ciência, se julgar detentor da ciência
como um todo. O conceito de biologia é romântico, o impulso da teoria da
evolução é em grande medida cristão, como resultante do Hapax, e romântico
(como Gusdorf mostrou) e Dawkins, como desconhece a origem da própria ciência
que cultiva, esquece-se disso. Como Bergson repetia os românticos sem o saber,
também Dawkins o faz. Mas, ignorando outras ciências como a física e a matemática,
não se apercebe até que ponto nestas últimas os problemas teológicos se
encontram na fronteira dos próprios problemas científicos. Cantor e Heisenberg
são bons exemplos deste encontro. Dawkins julga falar em nome da ciência, mas fala
apenas em nome de uma ciência. A biologia. Das outras pouco mostra saber, e por
isso não percebe que o seu argumento é limitado.
Em acréscimo, esquece-se
que a necessidade positivista surge sobretudo em ciências recentes e mais
inseguras. Houve grandes biólogos e químicos positivistas, mas não se podem
encontrar muitos exemplares de grandes matemáticos e físicos positivistas.
Kronecker e Kelvin poderiam ser dados como exemplos talvez, mas se foram
competentes, e esse mérito ninguém lhos retira, estão longe de ser os maiores
representantes nas respectivas ciências. Kronecker teria atirado a teoria dos
conjuntos e a álgebra dos transfinitos ao lixo, Kelvin decretou como menores as
origens da teoria da relatividade e a física quântica. Dawkins fala como biólogo,
como um sociólogo, ou certas escolas históricas ou antropológicas o poderiam
fazer. Não como um matemático ou físico falaria.
Na sequência aparece
outro vício de Dawkins. Julgando que a ciência instaura vidas (a atitude mais
anticientífica que possa existir) resvala em todos os vícios associados a esta falácia.
Espero bem que não tenha feito cientificamente amor com a respectiva mulher,
porque duvido que ela daí tenha retirado algum prazer. Mas, mais importante
para nós, que não fazemos amor com ele, mostra uma ingenuidade histórica
confrangedora quando afirma que é por via da atitude científica e da ciência
que se chegam a soluções razoáveis na sociedade. São duas coisas diversas. Que
a segunda, a ciência e os seus conteúdos tenham permitido uma regulação mais razoável
da sociedade, o século XX desmente rotundamente. Mas será que o método
científico, usado na sociedade, gera mais razoabilidade, senão mesmo justiça
social? De novo Dawkins está limitado pelos seus parcos conhecimentos de outras
ciências. Se a biologia teve momentos de grande polémica, como a História, a
posição proba, razoável, sensata, é sempre vista com melhores olhos num biólogo,
como num historiador. Mas já um matemático ou físico não tem de ser sensato. A
lista de físicos bem mais sensatos que Dirac é imensa, e todavia ele supera-os
como físico. Da mesma forma, muito superior à sensatez que Galois tinha não é
difícil encontrar, mas nem todos lhes chegam aos calcanhares como matemático. Não
sei se a sanha persecutória de Newton faria com que Dawkins deixasse de o
considerar bom cientista, mas estaria errado se o fizesse. As invejas, os
conflitos, as mesquinhezes existem no meio científico tanto quanto nos outros.
Mas a limitação de Dawkins
é igualmente filosófica, como se vê. A sua visão monolítica da ciência, limitada
a sua perspectiva temporal da mesma, leva-o a defender como ciência, a única
ciência, o que está longe de o ser, e a dar um papel à ciência que não lhe cabe
se se quiser que ela permaneça ciência e não evangelho.
Entendamo-nos: Dawkins
tem um papel muito positivo na nossa época em que franjas muito largas da população
entre os americanos, mas e em menor medida entre os europeus, e em maior grau
ainda entre os muçulmanos são absolutamente surdas à ciência e às suas
implicações. Luta contra estupidez, e nisso há mérito. Apenas não luta com os
argumentos mais inteligentes. Se tivesse de escolher entre os múltiplos fundamentalistas
e Dawkins sentava-me ao lado de Dawkins, não teria qualquer dúvida em o fazer. Mas
depois de vencidos os fundamentalistas, seria a Dawkins que me dirigiria.
Para lhe dizer várias
coisas. Que o seu ateísmo se funda numa insuficiência lógica, que usa a ciência
para negar Deus quando ela não O afirma nem O desmente, que luta contra moinhos
de vento tão grandes quanto os seus oponentes quando ataca o desígnio
inteligente, que pretende substituir um evangelho mal lido por um outro mal
usado, que não pode falar em nome de toda a ciência, porque a desconhece no seu
todo, que por isso pretende que ela instaure vidas, quando isso é impossível e
não é sua função. E que, no fim de contas, embora útil, é apenas mais um
reflexo da incultura da nossa época, em que se pode ser cientista numa área
estreita sem se ter cuidado de estudar as outras. Dawkins mais que remédio é
sintoma. Nisso a sua parca relevância.
Alexandre Brandão da
Veiga
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