Modernidade e Münchhausen
As teorias de «bootstrap»
são bem conhecidas há décadas. Querem basicamente dizer que há fenómenos espontâneos
que surgem no vazio. Os que gostam de palavras finas completam. O vazio quântico.
Mas nada obriga a que seja quântico. Basta que seja vazio, ou seja, sem matéria
ou energia. Entenda-se: vazio não significa o nada. O nada é um conceito metafísico,
vazio é um conceito físico. «Vazio» não significa «nada». Significa desde logo
e pelo menos espaço-tempo. E este tem uma estrutura. Que significado se retira
disto, é discussão que continua até aos nossos dias.
Que se diga que há fenómenos
que surgem espontaneamente no vazio é afinal de contas muito mais trivial do
que se julga. Da mesma forma que não se imagina um Atlas que segure a esfera terreste,
da mesma forma não é preciso imaginar uma força escondida por detrás do vazio.
Que no vazio surjam espontaneamente fenómenos não é de estranhar, da mesma forma
que não é forçoso.
Estas teorias do «bootstrap»
foram nominadas, segundo alguns (tenho sempre alguma dificuldade em acreditar
neste folclore dito urbano até ter prova segura na matéria) por referência ao barão
de Münchhausen. Como se sabe, o homem dizia conseguir voar segurando nas
próprias botas; dava assim impulso ao seu corpo e lá saía a planar. É como se o
vazio puxasse das suas botas, e se pusesse a voar.
Seja. Nem a validade da
teoria, nem a da sua nominação são muito importantes. O que releva é a imagem e como
ela impressiona tanta gente na nossa época. Sempre achei, e cada vez mais acho de
forma mais intensa, que o homem da modernidade é o homem do « bootstrap», o seu
paradigma é o barão de Münchhausen.
Como assim? É simples. O homem
da modernidade acha que as suas teorias nascem da sua razão, que é autónoma e fresca
como uma alface, que tem eventualmente uma História, mas está liberto das suas inércias,
foi libertado dos grilhões qual Prometeu e ninguém lhe come o fígado. Tudo bom
e sem custo. Fala da autonomia da razão, e não se pergunta de onde vem essa autonomia.
Seja. Olhemos para o homem moderno com a técnica do barão de Münchhausen. Que
faz ele?
Agarra-se às suas botas, puxa
com força e julga voar. Se não consegue, se de alguma forma tem consciência de
que não está a voar, culpa as botas. São as botas que têm de ser de outra
marca. As que usa são insuficientes. Mas deve haver botas mágicas. Nem lhe
passa pela cabeça que está a violar leis da física. Sendo macroscópico, embora o
adjectivo nele seja um elogio, há uma coisa chamada de decoerência que impede
os ditos fenómenos quânticos, o «bootstrap» nomeadamente, pelo menos como o
conhecemos.
Vejamos mais de perto.
Qual a sua posição? Está de cócoras, agarrado às suas botas e puxa-as com
força, ou com esticões, para as fazer voar. Se quiser levantar a cabeça tem de empinar
o rabo por compensação.
Há uns anos atrás uma
pessoa contou-me como ele e um grupo de amigos se tinham posto a estudar Tucídides
e os autores clássicos para saber o que é a Europa. A minha resposta foi uma pergunta.
E porque não também Santo Agostinho? Hoje em dia estou arrependido. não pela
minha reacção, mas pela sua incompletude. Deveria ter também perguntado: e
porque não Heraclito e Platão também?
Um dos pés finalmente assenta
no terreno do paganismo indo-europeu. Mas assenta só em parte. Algo da literatura,
mas nada na filosofia, pouco da poesia. Por isso, um dos pés está assente o
solo, mas só em parte. Olhemos de novo o nosso homem moderno. Em que posição está
ele? Um pé assente no chão, mas só em metade. A outra perna esticada para não tocar
no solo. Dá esticões nas botas para ver se consegue voar. O seu rabo já não
esta empinado, mas a perna esquerda está torta de carregar tanto peso só em
metade do pé. Se quiser levantar a cabeça tem de a torcer, já não empina o
rabo, mas tem de esticar a perna direita. Vê o céu apenas de soslaio.
A ilusão de que a razão
se fundamenta a si mesma é negar a própria razão, Gödel teve os seus demónios
por ter percebido isso. Mas no fundo é simples. Existe o espontâneo na nossa
vida. Mas apenas existe vida porque assentamos num solo. Também o vazio está no
espaço. Esse solo é o substracto autóctone da Europa. Um pé assenta no
paganismo indo-europeu, e outro no cristianismo. Á minha frente vejo uma fractura,
uma ferida de Amfortas, ou seja, um espírito, que tem de ser curada. O mito da
queda do Império Romano.
No que me respeita posso
andar com os dois pés bem assentes no chão, cada um deles caminha solidamente e
permite-me uma posição erecta. O homem moderno acha que consegue ver ninfas e
eu consigo no máximo ver anjos. Mas é o Cristo crucificado que me aparece como
fundamento do mundo. E, sim, o leitor já adivinhou. Como tenho os pés bem assentes
no chão, posso levantar a cabeça e finalmente olhar o Céu.
Alexandre Brandão da
Veiga
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