quarta-feira, 29 de julho de 2020

Modernidade e Münchhausen








As teorias de «bootstrap» são bem conhecidas há décadas. Querem basicamente dizer que há fenómenos espontâneos que surgem no vazio. Os que gostam de palavras finas completam. O vazio quântico. Mas nada obriga a que seja quântico. Basta que seja vazio, ou seja, sem matéria ou energia. Entenda-se: vazio não significa o nada. O nada é um conceito metafísico, vazio é um conceito físico. «Vazio» não significa «nada». Significa desde logo e pelo menos espaço-tempo. E este tem uma estrutura. Que significado se retira disto, é discussão que continua até aos nossos dias.


Que se diga que há fenómenos que surgem espontaneamente no vazio é afinal de contas muito mais trivial do que se julga. Da mesma forma que não se imagina um Atlas que segure a esfera terreste, da mesma forma não é preciso imaginar uma força escondida por detrás do vazio. Que no vazio surjam espontaneamente fenómenos não é de estranhar, da mesma forma que não é forçoso.


Estas teorias do «bootstrap» foram nominadas, segundo alguns (tenho sempre alguma dificuldade em acreditar neste folclore dito urbano até ter prova segura na matéria) por referência ao barão de Münchhausen. Como se sabe, o homem dizia conseguir voar segurando nas próprias botas; dava assim impulso ao seu corpo e lá saía a planar. É como se o vazio puxasse das suas botas, e se pusesse a voar.


Seja. Nem a validade da teoria, nem a da sua nominação são muito importantes. O que releva é a imagem e como ela impressiona tanta gente na nossa época. Sempre achei, e cada vez mais acho de forma mais intensa, que o homem da modernidade é o homem do « bootstrap», o seu paradigma é o barão de Münchhausen. 


Como assim? É simples. O homem da modernidade acha que as suas teorias nascem da sua razão, que é autónoma e fresca como uma alface, que tem eventualmente uma História, mas está liberto das suas inércias, foi libertado dos grilhões qual Prometeu e ninguém lhe come o fígado. Tudo bom e sem custo. Fala da autonomia da razão, e não se pergunta de onde vem essa autonomia. Seja. Olhemos para o homem moderno com a técnica do barão de Münchhausen. Que faz ele?


Agarra-se às suas botas, puxa com força e julga voar. Se não consegue, se de alguma forma tem consciência de que não está a voar, culpa as botas. São as botas que têm de ser de outra marca. As que usa são insuficientes. Mas deve haver botas mágicas. Nem lhe passa pela cabeça que está a violar leis da física. Sendo macroscópico, embora o adjectivo nele seja um elogio, há uma coisa chamada de decoerência que impede os ditos fenómenos quânticos, o «bootstrap» nomeadamente, pelo menos como o conhecemos.


Vejamos mais de perto. Qual a sua posição? Está de cócoras, agarrado às suas botas e puxa-as com força, ou com esticões, para as fazer voar. Se quiser levantar a cabeça tem de empinar o rabo por compensação.


Há uns anos atrás uma pessoa contou-me como ele e um grupo de amigos se tinham posto a estudar Tucídides e os autores clássicos para saber o que é a Europa. A minha resposta foi uma pergunta. E porque não também Santo Agostinho? Hoje em dia estou arrependido. não pela minha reacção, mas pela sua incompletude. Deveria ter também perguntado: e porque não Heraclito e Platão também?


Um dos pés finalmente assenta no terreno do paganismo indo-europeu. Mas assenta só em parte. Algo da literatura, mas nada na filosofia, pouco da poesia. Por isso, um dos pés está assente o solo, mas só em parte. Olhemos de novo o nosso homem moderno. Em que posição está ele? Um pé assente no chão, mas só em metade. A outra perna esticada para não tocar no solo. Dá esticões nas botas para ver se consegue voar. O seu rabo já não esta empinado, mas a perna esquerda está torta de carregar tanto peso só em metade do pé. Se quiser levantar a cabeça tem de a torcer, já não empina o rabo, mas tem de esticar a perna direita. Vê o céu apenas de soslaio.


A ilusão de que a razão se fundamenta a si mesma é negar a própria razão, Gödel teve os seus demónios por ter percebido isso. Mas no fundo é simples. Existe o espontâneo na nossa vida. Mas apenas existe vida porque assentamos num solo. Também o vazio está no espaço. Esse solo é o substracto autóctone da Europa. Um pé assenta no paganismo indo-europeu, e outro no cristianismo. Á minha frente vejo uma fractura, uma ferida de Amfortas, ou seja, um espírito, que tem de ser curada. O mito da queda do Império Romano.


No que me respeita posso andar com os dois pés bem assentes no chão, cada um deles caminha solidamente e permite-me uma posição erecta. O homem moderno acha que consegue ver ninfas e eu consigo no máximo ver anjos. Mas é o Cristo crucificado que me aparece como fundamento do mundo. E, sim, o leitor já adivinhou. Como tenho os pés bem assentes no chão, posso levantar a cabeça e finalmente olhar o Céu.



Alexandre Brandão da Veiga








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quarta-feira, 22 de julho de 2020

Física e História






Algures Marc Bloch disse que a principal qualidade do historiador não devia ser a objectividade, mas a probidade. E em algum sentido tem razão. Membro de uma geração cansada pelos ditames do positivismo, do padrão da física, tendo visto lucidamente que a dita objectividade muitas vezes escondia um literalismo enviesado que condenava sempre as mesmas instituições, e as mesmas doutrinas, que Bloch o tenha dito só lhe fica bem. Pagou com o seu exemplo, tem autoridade para falar no tema.


O problema é que a probidade acaba por se tornar mesquinhez. É a lei da vida. Todos os melhores conselhos podem ser subvertidos. Não é que o conselho de Bloch fosse mau, mas pode ser degenerado. E foi o que aconteceu. Os historiadores desde sempre tiveram uma grande desconfiança em relação a teorias gerais, em relação à universalidade. Os grandes da síntese histórica nunca lhes mereceram o respeito, seja este o caso de Spengler, ou de Toynbee. Ortega era respeitado por alguns historiadores, mas em boa verdade mais como exemplo ideológico que como teórico da História. Vico é citado geralmente por quem não leu nenhuma das edições da sua obra, e apenas fala de gritos primordiais.


Aponta-se aos sintetizadores da História o facto de não serem especialistas. Toynbee teve de fazer uma biografia de Constantino Porfirogénito, para provar que ainda era historiador, ou seja, que era capaz de fazer monografias. A referência errada a um documento, uma interpretação na consulta de outro, o facto de não se conhecerem todas as línguas usadas pelos personagens históricos, tudo isso é usado para descredibilizar a síntese histórica. Em suma, quem não souber quimbundo não pode fazer História de Angola. Não pode aliás fazer a História dos jesuítas, porque houve jesuítas em Angola, se for necessário chegar aqui.


Os físicos, que me atrevo a dizer não serem menos científicos que os historiadores, têm outra perspectiva. Isto é verdade em muitos aspectos para os matemáticos também, embora hoje em dia, e desde Gödel, os matemáticos evitem cuidadosamente falar de unificação. Isto não significa que tenham repulsa em relação às abstracções. Fazem-nas. Imensas mesmo. Desde que sejam limitadas a uma área, como a tão celebrada obra de Grothendieck na análise funcional, por exemplo.


Os físicos gostam de universalidade, gostam de generalizações. E, saliento mais uma vez, não são pouco científicos. Que uns físicos tenham erros de pormenor é questão menor que não os preocupa. Um autor menor há uns anos escreveu um trabalho a demonstrar que Einstein cometeu erros de palmatória em alguns dos seus artigos mais famosos. Isso não preocupou ninguém. Poincaré era famoso por ser um trapalhão na suas obras de investigação, tanto quanto era soberanamente claro nas suas obras ditas de divulgação. Índices, fórmulas, havia erros em toda a parte, nenhum físico ou matemático fica preocupado com isso. É trabalho de lavandaria, o grande cientista não perde tempo com isso. A grande ideia prevalece sobre a nódoa menor.


A ninguém passaria pela cabeça de fazer perder tempo a Heisenberg para resolver um problema de aerodinâmica da asa de um avião. E mesmo que este tivesse interesse nisso, e mesmo que tivesse errado os cálculos todos, ninguém veria Heisenberg como personagem menor por causa disso. As limpezas cabem ao pessoal menor, muito sério, muito especializado, mas ocupado em actividades mais chãs. O exemplo de Euler devia alertar-nos: poucos foram tão trapalhões na forma, e tão poucos produziram tantas maravilhas a partir de tão pouco.


Os argumentos contra os grandes da síntese histórica seriam objecto de riso por parte dos físicos. Também por outra via. Os das ciências humanas lembram sempre que a realidade é mais rica que o modelo. Para um físico essa é uma evidência . Mas é igualmente uma evidência que o modelo só é possível porque é mais simples que a realidade. Um modelo com setecentas variáveis seria recusado como pouco elegante pelos físicos, embora pudesse suscitar a gula de mil empresas pelo mundo afora. Os físicos aprenderam com Aristóteles e Ockham o princípio da parcimónia. Os historiadores actuais apenas se contentam na profusão. Mesmo que elogiem Ockham, sem saber que isso é um insulto ao seu trabalho, que o seu elogio os condena.


O argumento é sempre: a realidade é mais complexa. Um físico já sabe isso. Os físicos não têm todos Asperger. Sabem que apesar de se chamar «corpo» a uma pessoa e a uma maçã, uma pessoa e uma maçã não são a mesma coisa. Mas sabem que é apenas por chamar a ambos de «corpos» que se podem descobrir as maravilhosas estruturas comuns a todos os corpos. O físico vive bem no universal exactamente porque vive no simples. O historiador actual fica em sua casa, exactamente porque não consegue viver sem complicar.


O físico não é menos científico que o historiador. E a física consegue pensar mundos, e espaços e tempos que são inimagináveis para o historiador, menos dotados de capacidade conceptual. Ainda bem, cada um tem o seu papel. Mas que o historiador queira a todo o transe impor a complicação da realidade só mostra que é tacanho, provinciano e incapaz de pensamento abstracto. Vive acomodado na melhor das hipóteses à media res, como um Ulisses, mas  sem as suas aventuras, ao meio termo, com um pouco de abstracção, que é inevitável, mas que não lhe tire os pés da Terra. Não percebeu que, se os físicos compreenderam o que é a acção da Terra, é porque foram capazes de voar além dela.


Falta de imaginação, de espírito de aventura, medo de concorrência por quem tem mais poder de abstracção? Sim, em parte. Mas sobretudo mais um bom exemplo de como as boas qualidades se podem tornar em defeitos: fazer da probidade mesquinhez.



Alexandre Brandão da Veiga












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quinta-feira, 16 de julho de 2020

Budismo e neoplatonismo II








O segundo vicio é o da incoerência na descida. Por qualquer fenómeno da mente humana (para mim «anima naturaliter gnostica», como disse várias vezes), o ser humano é muito mais capaz de atingir o supremo que perceber como deste se passa ao ínfimo. Dito por outra forma…


No budismo o Buda atingiu o «nirvandna». Seja o que isto for, não tanto o nada como a negação de oposições. Conseguiu fazê-lo sem abandonar o seu corpo, ou poude reentrar no seu corpo, se alguma vez dele saiu. Mas, mais importante ainda, temos de nos colocar a questão. Porque voltou? Por compaixão, dizem os budistas. Mas a compaixão, por mais voltas que se dê, é apego. Precisamente o apego que o «nirvandna» denuncia, porque mostra que é tudo véu de ilusão. Porque voltou o Buda? Jung dizia que havia contradição em dizer que se atingiu a negação das oposições e se tem memória disso. Mas, mais importante para mim, contradicção bem mais fundamental: porque desceu Buda? Se percebeu que é ilusão, ilusão o próprio sofrimento, porque foi ajudar os seus companheiros humanos em algo que é apenas passageiro, transitório e ilusório? O que o motiva não cabe na sua doutrina, e mostra que a sua inspiração está fora do budismo, revela que o budismo não contém em si o seu fundamento.


O neoplatonismo tem problema idêntico. Atinge o seu máximo sem problema. Eis o Uno. Mas Plotino honestamente colocou a sua grande fragilidade no «tolmein». Como se atreveu o Uno a emanar, a acabar na divisão? Se o Uno é satisfeito com si mesmo, não havendo estado superior, não carecendo de mais nada, como se atreveu ele a emanar? Como admitiu o múltiplo, seja lá como este é gerado? Para quê? Porquê? Com que justificação? É um escândalo, e Plotino viu bem o problema, e não viu a solução.



Num e outro caso, no budismo e no neoplatonismo, o problema é que a alma humana é capaz de se projectar no máximo, mas não é capaz de explicar porque o máximo desce. Sendo os dois grandes momentos da explicação humana do todo, o budismo e o neoplatonismo padecem exactamente desse limite. São factos humanos, meramente humanos, demasiadamente humanos, apenas humanos. Religiões, filosofias, doutrinas criadas por homens, mostram os limites máximos onde pode chegar o homem. Belos, mas limitados. O ser humano sabe bem imaginar como se sobe mas não explicar porque se desce.



Onde entra Santo Irineu de Lyon nisto? Salienta sempre sem parar, contra o gnosticismo, a importância do corpo. O corpo não é realidade transitória, o corpo é o estado último que nos vai ser restituído pela ressurreição dos corpos. Não foi o primeiro, mas terá sido o primeiro a sintetizar a coisa de forma tão insistente. Depois dele, Santo Atanásio de Alexandria e tantos outros.



Mas quanto à descida? Existe resposta mais consistente? Sim, mas não é humana. É a «kenosis», o esvaziamento de Deus que se dá com a Incarnação. Como se atreve o Uno a emanar, a aceitar a divisão? Como se pode aceitar que quem conhece o supremo se dirija para quem está em aflição, para o pequeno? Deus que se esvazia porque tem um amor infinito pelo homens, porque é ele mesmo amor. Absurdo, sem dúvida. Ninguém engana ninguém. São Paulo já o disse bastamente. Loucura para os homens, sabedoria para Deus. Um corpo nos salva, a do Verbo feito carne, mesmo carne, como nossa, e São João Evangelista participa também nisto.



Por isso, o cristianismo não é para mim criação humana. Em todas as criações humanas, incluindo as mais sublimes, a violência está presente, como no neoplatonismo, por via da vontade de purificação, de eliminação, pelo desprezo e mesmo a aceitação da violência física em alguns casos. No budismo a violência é evacuada (no Theravāda, não no Mahayana) com o preço de ela à partida ser ilusória, o sofrimento não ter substância.

Religião do corpo e de um Deus que desce por amor, porque é amor, respeitador da substância do sofrimento, nada de mais absurdo se disse na História, nunca tal absurdo se disse na História. E inepto, como dizia Tertuliano. Concordo. Inepto porque não produz fruto imediato. É para outras colheitas que serve.





Alexandre Brandão da Veiga.




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segunda-feira, 13 de julho de 2020

Budismo e neoplatonismo I






Parecem dois temas muito afastados do nosso quotidiano, ou temas para especialistas, ou título de tese de doutoramento, ou apenas excurso diletante. Como de outras vezes, não me interessa tanto ver o que são, mas que impactos têm na civilização europeia.


Os temas não são neutros, porque são usados, seja como modelo alternativo ao europeu, seja como encómio para a maravilhosa filosofia muçulmana que seria neoplatónica, e por isso parece ser inofensiva. É disso que se trata, de um concurso de inocuidades. Só é grande quem é no fundo irrelevante, e mais uma vez por aqui o pequeno burguês se denuncia perante o mundo. O islão não é agressivo porque é neoplatónico na essência. Cheira bem, é frase que parece ter relevância intelectual, e ninguém viu um neoplatónico com uma metralhadora, parece fofinho e inócuo. O transeunte fica ao mesmo tempo em atitude de admiração e repouso. É o que se pretende dele. O budismo dá soluções para o absurdo do cristianismo… E assim por diante.


Há obviamente diferenças muito importantes entre o budismo e o neoplatonismo. Mas, por mais diferentes que sejam, já no século II d.C. Santo Ireneu de Lyon respondeu por antecipação aos perigos de um e de outro: o desprezo do corpo é o seu vicio, a incoerência na descida.


Desprezo do corpo? Mas a nossa época que é tão dada ao corpo, nós que nos libertámos da opressão judaico-cristã do corpo… Eu sei que as pessoas gostam desta ideia de Hitler e Himmler, mas temos de ser um pouco mais sérios. Para um budista este corpo é apenas uma veste que é despida com a morte. Deixamos de ter qualquer ligação com ele depois de mortos. É mero instrumento, e em última análise impecilho, ou na melhor das hipóteses irrelevante. Faz parte do véu de Maya, da ilusão. Para o neoplatonismo o mundo físico pode ter a sua beleza e anunciar a beleza verdadeira das Ideias, do Uno, mas Plotino tinha vergonha de ter um corpo, e todos os neoplatonistas dizem que o corpo é coisa para ser abandonada em nome da nossa verdadeira natureza, que é divina e não corpórea. Um e outro desprezam o corpo como transitório, menor, falsificador do nosso estatuto.


O pequeno burguês com isto afirma que despreza o corpo, o seu e o dos outros, e bem sabemos que tem razão, porque os espelhos só lhe podem dar razão.

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