terça-feira, 30 de agosto de 2016

As fragilidades do laicismo II


Em segundo lugar o laicismo mitifica a sua relação com a ciência. No mito laico, o laicismo surge no século XVIII é aplicado pela primeira vez no século XIX, e eis que a ciência explode nessa altura. Liga ambos os movimentos e considera pelo menos de forma implícita que a ciência é filha do espirito laico. Crasso erro. A revolução científica foi feita em terras cristãs, por cristãos e isto até a nossa época. Muitos dos nomes da ciências são de clérigos, nomeadamente a escola franciscana de física de Paris no século XIV, Newton reconhece que a sua maior influência na óptica é o arcebispo de Spalato Antonius de Dominis, a teoria atómica é reintroduza pelo clérigo Gassendi, o padre Mersenne é outro exemplo, a diplomática é criação de Mabillon, mas ainda no século XX o padre Breuil é o grande revolucionário do estudo da pré-História e o padre Lemaître o primeiro teorizador do Big Bang, objecto de admiração de Einstein. Uma ciência sem os cristianíssimos Newton, Galileu, Maxwell, Cantor, Planck seria algo menos ciência.

A capacidade de reelaboração da História por parte do laicismo dissolve a sua autoridade, dependendo assim de uma permanente actividade catequética, bem como da manutenção mais ou menos intencional na ignorância por parte das massas. Dando um exemplo. A geração espontânea. Como geralmente se conta a história? A tese que prevalecia «antes» (não é necessário definir o «antes») era a de que a vida era espontaneamente gerada a partir do inorgânico. Esta teoria era escolástica e, está bem de ser ver, logo, católica, aristotélica, enfim reaccionária. Veio Pasteur e destrui esta teoria obscurantista. História bem contada? Não. O grande defensor da teoria da geração espontânea era um laicista extremo, um senhor chamado Pouchet. Pasteur, que destruiu a teoria da geração espontânea, era católico. Pouchet como tantos laicos gostava da teoria da geração espontânea porque retirava o mistério da vida. Aparecer o orgânico do inorgânico deveria ser facto trivial. A vida perdia mistério. Exorcismo calmante para o laico, parece.

O laicismo junta-se assim ao islão e ao budismo enquanto parasita da ciência e da sua autoridade. Pensamento parasitário, exige confusão de géneros em todos os níveis. Precisa de estar do lado das outras religiões para encontrar o seu lugar natural. Católico de origem, o laicismo acaba por se juntar às outras religiões para se sentir coerente. Vindo de uma religião sem etnia quer como toda a religião criar uma etnia própria, o povo dos laicos.

Mas uma terceira fragilidade do laicismo é política, no seu sentido mais nobre. Se a lei civil prevalece sempre e em qualquer circunstância sobre a religiosa, Antígona já não é possível. Entendamo-nos: ao contrário do que letreiros apressados pensam, Antígona é importante, não por ser revolucionária, mas por ser reaccionária. Creonte, o seu tio, representa o direito revolucionário do Estado de fazer tabua rasa das tradições. Antígona representa o direito tradicional familiar de dar honras fúnebres aos mortos. A ideia não é minha, mas de Jouanna, e é bem vista.

O laicismo torna-se rapidamente uma teoria conservadora, e a França, país idólatra do laicismo acima de qualquer outro, mostra a sua natureza profundamente conversadora. A França da III República na versão laica radical mostrou-se paternalista, machista e retrógrada nos costumes, bem mais que a França do Antigo Regime.

A regra da prevalência absoluta da lei civil teria impedido os monges, freiras e padres e mesmo laicos católicos que, em nome do cristianismo, violaram a lei civil para proteger judeus perseguidos. A lei nazi ou comunista prevaleceria sempre e em qualquer caso. O laicismo é assim apanhado na sua própria armadilha. Se a lei civil prevalece sempre, a lei fascista e cruel deve prevalecer sobre a lei humana. Mas se a lei humana deve prevalecer? Onde a encontra o laicismo essa dita lei humana?

E aqui se percebe a quarta fragilidade do laicismo. O laicismo mente quanto ao seu conteúdo. O seu conteúdo de humanidade herda-o do cristianismo. Mais uma vez, não é acaso que o dito laicismo nasça em terras cristãs. A imagem de humanidade herdou-a do cristianismo. A História da secularização em França mostra como desde os girondinos até a III República radical, passando por Hugo, se foi criando uma religião da humanidade que tem por base o cristianismo, de início não obnubilado, e com o tempo cada vez mais recalcado e escondido. O laicismo em si mesmo esgota-se no seu sucesso. Separando a Igreja do Estado, tendo a Igreja interiorizado essa separação, perde a razão de ser do seu programa. Mas, se aparece outra religião sem Igreja, não sabe o que fazer. Diz-se universal, mas erigiu-se contra o cristianismo, ou mais precisamente contra o catolicismo. O protestantismo já estava capturado pelos Estados, eram os Estados a não ter interesse na separação. Sem o cristianismo sente-se sem pé. Não há Igreja a que se opor. Perante o budismo, o islão ou outras religiões estranhas à Europa fica sem termos, sem discurso, sem tópicos argumentativos. Precisa para isso de inventar uma espécie de hierarquia, uma espécie de Igreja católica, foi com base ela que se construiu. O laicismo cristianiza todas as religiões, acha-as separáveis do Estado, porque religião verdadeira para ele é o cristianismo. O resto é etnologia. O laicismo quer religiões que não sejam étnicas, que não estejam ligadas a etnias ou que no fundo pertençam à sua etnia. Mas só uma preenche esses requisitos. O cristianismo. O laicista é um recalcado. Não pode falar da sua intimidade porque é cristã, tem por isso de fingir que não a tem.

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sexta-feira, 26 de agosto de 2016

As fragilidades do laicismo I


 

 

Sejamos justos. Depois de analisar as fragilidades do islão temos de nos confrontar com o instrumento que se usa na Europa, sobretudo nos países latinos, contra o islão: o laicismo. Instrumento sobretudo na Europa do Sul, porque a do Norte não confunde liberdade de religião com laicismo e nunca precisou dele para instaurar a primeira.

O laicismo é brandido pelos franceses, mas também portugueses espanhóis e italianos para enfrentar o islão. Será o instrumento mais adequado? Não me parece, porque, quanto mais se brande o argumento, mais se vêem as suas fragilidades. Vejamo-las.

Em primeiro lugar, o laicismo mente quanto à sua origem. O laicismo é filho do cristianismo. O velho «dar a César…». Os laicos nunca se perguntam por que razão o laicismo nunca foi criado em terras do islão, ou de budismo. Aceitam o mundo tal qual está e inventam origens míticas. É filho do cristianismo também pelo valor que supostamente dá ao homem. A dignidade da pessoa humana é conceito cristão. Assenta no cristianismo porque colado a ideias eclesiásticas como a de soberania popular (Marsílio de Pádua no século XIII), ou a votação pelo povo dos impostos que o oneram (Ockham no século XIV). Herdeiro das chancelarias reais e imperiais, desde sempre dirigidas por clérigos. Movimento de origem eclesiástica, quer limpar da sua História todos os traços das suas origens.

Mas mente igualmente quanto à sua História. A separação entre o Estado e a Igreja historicamente é em primeiro lugar separação da Igreja em relação ao Estado. O cristianismo, de religião tolerada, torna-se religião do império. É o imperador que convoca os concílios, que regula o estatuto da Igreja. Com a queda do Império Romano a Igreja pode-se finalmente libertar da tutela imperial no Ocidente. Ao longo de toda História da Europa a luta da Igreja é contra um Estado que pretende intervir na Igreja nomeando dos bispos (a célebre questão das investiduras), definindo os privilégios eclesiásticos, por exemplo. Não falo de História longínqua. É nos anos de 1980, em pleno século XX, que o Estado português renuncia ao seu direito de veto na escolha dos papas. Se a Igreja criou uma ideologia teocrática em algumas épocas, a ideologia regalista, galicana e outras foram igualmente criadas por clérigos contra a Igreja. Os chanceleres imperiais que defendiam o império contra a teocracia eram bispos, o galicanismo foi também criado por bispos franceses. Nos países protestantes a máxima autoridade eclesiástica pertence aos príncipes, Pedro o Grande na Rússia acaba com o patriarcado russo. A ideia de que o torno e o altar se uniram resulta de uma solução tridentina em que o altar teve de fazer muitas concessões ao trono com Filipe II e o seu descendente Luís XIV.

O laicismo mente quanto à sua História intolerante e persecutória. A França revolucionária, a da III República, Portugal da I República, o México, os regimes nazi e comunista foram tudo menos de verdadeira liberdade religiosa. Laicismo e liberdade religiosa opõe-se. Os regimes laicistas na sua maioria foram ditatoriais ou autoritários. Laicismo e democracia convivem muito mal. E tenderam sempre para o cesaropapismo, ou seja, o domínio da Igreja pelo Estado. O laicismo esconde assim a sua História violenta, intolerante, dominadora e sufocadora da liberdade religiosa e do pensamento. O laicista julga que já superou esta doença infantil da sua benquista ideologia. Mas é doença de origem, é genética, e corre a todo o momento o risco de ter surtos.

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terça-feira, 16 de agosto de 2016

Quem quer o multiculturalismo?


 

A pergunta é de simples resposta, pensando numa perspectiva politica e não na choradeira:

a)      Residualmente os defensores da ideologia colonial;

b)      A esquerda alternativa;

c)      O capitalismo internacional;

d)     Os idiotas úteis;

e)      Os futuros déspotas.

Não sobram muitos, mas entre povos imperiais ainda há uma réstia desta ideologia, e foi ela que tornou tolerável durante décadas o multiculturalismo. O modelo do «Raj» britânico sobre a Índia é muito simples: para hindu e muçulmano basta aquela cultura retrógrada. Desde que não haja mortos na rua e se mantenha a segurança do comércio, eles que se entendam. São culturas inferiores, já viram a sua hora de glória, não se pode esperar mais delas. Mas, se não há muitos cultores conscientes desta ideologia, pelo menos oficialmente, ela é fundamental porque traduz uma linha de força de muito longo prazo. Os ingleses beberam a inspiração dos modelos romanos que mantiveram a autonomia dos municípios e algumas estruturas regionais, tetrarquias, régulos, principados. E mostra o fundamento último, o modelo de base, de todo o pensamento multicultural. Este é sempre imperialista na sua inspiração.

A esquerda alternativa defendeu sempre o multiculturalismo. O fundamento não é humanista, mas o ressentimento contra a base cristã de uma civilização em que nunca deteria superioridade de qualquer natureza, nem de beleza, nem de nascimento, nem de grandeza intelectual. O ressentimento leva a pegar em tudo que vá contra o seu centro vital, e o seu centro vital é, apesar dos seus protestos, a civilização cristã que lhe deu direito à vida. Os alternativos favorecem o multiculturalismo porque tudo vale mais que a Europa, essa Europa que pela sua exigência lhes desvela a natureza vil. Se tiverem de escolher, aceitam mesmo o abaixamento das mulheres, o aviltamento de crianças, a falta de liberdade geral. Tudo, desde que não seja a Europa.

O capitalismo esfrega as mãos. Não é por acaso que os tradicionais partidos marxistas ortodoxos nunca viram com muitos bons olhos a vinda de muitos imigrantes. Sabem bem que se trata de um exército de reserva proletário que abaixa o poder negocial dos trabalhadores. «Não queres? Há sempre um tunisino que está disposto a ganhar metade». O capitalismo esfrega as mãos ao ver estas deliciosas condições de trabalho em que pode escolher o menos bom, mas por muito menos preço.

Restam os idiotas úteis. Estes são usados por todos: uns usam os seus sentimentos cristãos, outros, sabendo que o público não se diz (ou sabe) cristão, apelam para os direitos do homem, a civilização, a democracia, que espantalho melhor sirva para os seus fins. O bom do Lenine conhecia bem a importância dos idiotas úteis. O idiota útil sente-se útil, mas é-o apenas porque…é idiota.

Restam? Ainda no fundo do túnel aparece uma figura bem mais sinistra, mas que é a conclusão lógica deste movimento. Os futuros tiranos. A história grega mostra que os tiranos tiveram duas políticas em comum. A criação de exércitos profissionais, de mercenários, e a indução forçada de heterogeneidade das populações para as tornar mais dóceis. Quando a população se torna heterogénea cria tensões entre si, e isso justifica a existência do tirano para manter a paz. Quando se torna heterógena é bem mais difícil actuar como uma só contra o tirano. As populações que vieram de fora vêem o horror que é a vida heterógena e aceitam melhor os seus regimes. Tornam-se mais submissas. Os futuros tiranos vão agradecer o multiculturalismo. Abriu-lhes o campo para o seu futuro reino.

Ideologia de índole imperial, apoiada pelo ressentimento e pela cupidez, e sufragada pela idiotia prepara na sua conclusão o que é a sua origem: a tirania.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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