As fragilidades do laicismo II
Em segundo lugar o laicismo
mitifica a sua relação com a ciência. No mito laico, o laicismo surge no século
XVIII é aplicado pela primeira vez no século XIX, e eis que a ciência explode
nessa altura. Liga ambos os movimentos e considera pelo menos de forma implícita
que a ciência é filha do espirito laico. Crasso erro. A revolução científica
foi feita em terras cristãs, por cristãos e isto até a nossa época. Muitos dos
nomes da ciências são de clérigos, nomeadamente a escola franciscana de física
de Paris no século XIV, Newton reconhece que a sua maior influência na óptica é
o arcebispo de Spalato Antonius de Dominis, a teoria atómica é reintroduza pelo
clérigo Gassendi, o padre Mersenne é outro exemplo, a diplomática é criação de
Mabillon, mas ainda no século XX o padre Breuil é o grande revolucionário do
estudo da pré-História e o padre Lemaître o primeiro teorizador do Big Bang,
objecto de admiração de Einstein. Uma ciência sem os cristianíssimos Newton,
Galileu, Maxwell, Cantor, Planck seria algo menos ciência.
A capacidade de reelaboração
da História por parte do laicismo dissolve a sua autoridade, dependendo assim de
uma permanente actividade catequética, bem como da manutenção mais ou menos
intencional na ignorância por parte das massas. Dando um exemplo. A geração espontânea.
Como geralmente se conta a história? A tese que prevalecia «antes» (não é
necessário definir o «antes») era a de que a vida era espontaneamente gerada a partir
do inorgânico. Esta teoria era escolástica e, está bem de ser ver, logo, católica,
aristotélica, enfim reaccionária. Veio Pasteur e destrui esta teoria
obscurantista. História bem contada? Não. O grande defensor da teoria da
geração espontânea era um laicista extremo, um senhor chamado Pouchet. Pasteur,
que destruiu a teoria da geração espontânea, era católico. Pouchet como tantos
laicos gostava da teoria da geração espontânea porque retirava o mistério da
vida. Aparecer o orgânico do inorgânico deveria ser facto trivial. A vida
perdia mistério. Exorcismo calmante para o laico, parece.
O laicismo junta-se assim
ao islão e ao budismo enquanto parasita da ciência e da sua autoridade.
Pensamento parasitário, exige confusão de géneros em todos os níveis. Precisa de
estar do lado das outras religiões para encontrar o seu lugar natural. Católico
de origem, o laicismo acaba por se juntar às outras religiões para se sentir coerente.
Vindo de uma religião sem etnia quer como toda a religião criar uma etnia própria,
o povo dos laicos.
Mas uma terceira fragilidade
do laicismo é política, no seu sentido mais nobre. Se a lei civil prevalece sempre
e em qualquer circunstância sobre a religiosa, Antígona já não é possível. Entendamo-nos:
ao contrário do que letreiros apressados pensam, Antígona é importante, não por
ser revolucionária, mas por ser reaccionária. Creonte, o seu tio, representa o
direito revolucionário do Estado de fazer tabua rasa das tradições. Antígona
representa o direito tradicional familiar de dar honras fúnebres aos mortos. A
ideia não é minha, mas de Jouanna, e é bem vista.
O laicismo torna-se rapidamente
uma teoria conservadora, e a França, país idólatra do laicismo acima de
qualquer outro, mostra a sua natureza profundamente conversadora. A França da
III República na versão laica radical mostrou-se paternalista, machista e retrógrada
nos costumes, bem mais que a França do Antigo Regime.
A regra da prevalência
absoluta da lei civil teria impedido os monges, freiras e padres e mesmo laicos
católicos que, em nome do cristianismo, violaram a lei civil para proteger
judeus perseguidos. A lei nazi ou comunista prevaleceria sempre e em qualquer
caso. O laicismo é assim apanhado na sua própria armadilha. Se a lei civil
prevalece sempre, a lei fascista e cruel deve prevalecer sobre a lei humana.
Mas se a lei humana deve prevalecer? Onde a encontra o laicismo essa dita lei humana?
E aqui se percebe a quarta
fragilidade do laicismo. O laicismo mente quanto ao seu conteúdo. O seu conteúdo
de humanidade herda-o do cristianismo. Mais uma vez, não é acaso que o dito laicismo
nasça em terras cristãs. A imagem de humanidade herdou-a do cristianismo. A História
da secularização em França mostra como desde os girondinos até a III República radical,
passando por Hugo, se foi criando uma religião da humanidade que tem por base o
cristianismo, de início não obnubilado, e com o tempo cada vez mais recalcado e
escondido. O laicismo em si mesmo esgota-se no seu sucesso. Separando a Igreja
do Estado, tendo a Igreja interiorizado essa separação, perde a razão de ser do
seu programa. Mas, se aparece outra religião sem Igreja, não sabe o que fazer.
Diz-se universal, mas erigiu-se contra o cristianismo, ou mais precisamente
contra o catolicismo. O protestantismo já estava capturado pelos Estados, eram
os Estados a não ter interesse na separação. Sem o cristianismo sente-se sem
pé. Não há Igreja a que se opor. Perante o budismo, o islão ou outras religiões
estranhas à Europa fica sem termos, sem discurso, sem tópicos argumentativos.
Precisa para isso de inventar uma espécie de hierarquia, uma espécie de Igreja católica,
foi com base ela que se construiu. O laicismo cristianiza todas as religiões,
acha-as separáveis do Estado, porque religião verdadeira para ele é o cristianismo.
O resto é etnologia. O laicismo quer religiões que não sejam étnicas, que não estejam
ligadas a etnias ou que no fundo pertençam à sua etnia. Mas só uma preenche
esses requisitos. O cristianismo. O laicista é um recalcado. Não pode falar da
sua intimidade porque é cristã, tem por isso de fingir que não a tem.
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