Cada um tem os seus gostos, mas tenho de abrir com uma confissão. Sempre tive sentimentos francamente mistos em relação a Cícero. Cícero é uma das personagens mais dificilmente qualificáveis da História. Homem de acção e de pensamento, rico na primeira mas pouco frutuoso, menos rico no segundo, e porém muito mais eficaz. O que desejou na acção, a república, perdeu. Mas no pensamento, se não pode ser considerado um imenso pensador, foi dos que mais contribuiu para a nossa linguagem filosófica, científica, erudita. Qualquer pensador europeu é em certa medida um ciceroniano, nem que seja pelos conceitos que usa.
Tradutor rico e infatigável de conceitos gregos, deu-nos para o bem e para o mal um tesouro conceptual com o qual ainda nos debatemos hoje em dia. Em todas as áreas da existência. É evidente que a moral e a política não escapou a este pensador, algo menos moldado para áreas mais especulativas ou científicas.
Uma das suas contribuições é a do conceito de decência. Derivou-o de “decet”, “o que é conveniente”, “o que vem com”. Verbo ligado a “dignus”, que traduzimos ainda hoje por digno. Fê-lo para tentar traduzir o grego “euprepeia” de um verbo “prepo” (perdoem-me por transliterações simplificadoras os eruditos). “Prepo” significa aparecer distintamente, convir, parecer-se com. Está ligado a “preptos”, distinto, famoso.
As palavras não são irrelevantes e muito menos o que elas nos trazem. Os usos alargam-se, casam-se e estreitam-se de forma algo elástica ao longo dos tempos. Mas o que é espantoso é que restem quase sempre resíduos dos seus sentidos originais.
O pequeno burguês, o apertadinho, entendeu sempre a decência numa perspectiva de contenção sexual, de gestos, de palavra. A única forma de ser digno, decente, era a de conter a sua natureza. Essa uma diferença de marca que o separa dos que são dotados de grandeza. A sua marca de decência é a de se expandirem. Quando o pequenino, o remediado, se começa a querer libertar da sua forma possível de decência liberta-se igualmente do seu estado possível de decência. Acha que a libertação sexual, de costumes, de gestos passou a ser indecente e para ele a indecência excita-o, é a sua forma de liberdade. Como todos os que são pequenos fez da sua menoridade uma lei universal e sente-se liberto, mas quer obrigar os outros a “libertar-se” pelas mesmas vias.
O problema é que o homem de grandeza já é livre dos seus gestos e atitudes e faz dessa liberdade a sua forma de decência. A indecência para ele não é picante, excitante, porque para ele a decência é o seu estado natural de liberdade.
O decente é por definição o que tem uma presença distinta, evidente. Ele é o que é. O indecente é o que aparece difuso, sempre de presença incerta, de existência questionável. O indecente é assim o desconexo, o desarticulado. Aquele em que os movimentos e os eventos se cruzam por mero acaso, ou pelo menos segundo regras distorcidas, geralmente porque mero sintoma da sua monotonia.
Quando no espaço público navegam as contradicções podemos ver algo de bom ou de mau nisso. Se as contradicções se encontram só em relação ao oponente, faz parte da lógica das coisas, é uma tensão saudável numa sociedade, sobretudo se ela é democrática. Quando a contradição é interna aí é que podem surgir problemas. Durante décadas tivemos de assistir à técnica da obnubilação. Os apoiantes do capitalismo escondiam os crimes que cometiam ao impor ditaduras, destruindo economias emergentes, favorecendo a corrupção, invocando para os outros o livre comércio e para si o proteccionismo. Os comunistas obnubilavam a total ausência de liberdade, as ditaduras, os crimes cometidos em nome de nobres ideologias. O jogo da obnubilação convence quem quer; mostrar alguma indecência, alguma desarticulação, mas nem que seja pelo efeito de habituação, gerou-nos alguma anestesia. Se não é uma sua atenuante é pelo menos um paliativo.
Questão diversa nos aparece quando a desarticulação é bandeira. Quando se quer uma coisa e a sua contrária abertamente e se defendem as duas cegamente em público. Este um fenómeno que na sua gravidade é relativamente recente. No mesmo discurso se defendem os altermundialimos, a democracia, os direitos do homem e da mulher e culturas confrangedoras na sua capacidade de repressão. No mesmo discurso se diz que a cultura muçulmana é deplorável e depois se defende o acesso de países muçulmanos à Europa. No mesmo discurso se diz defender os direitos do homem e se financiam terroristas islâmicos turcófonos. No mesmo discurso se diz que é de armas de destruição em massa no Iraque que se trata para de seguida falar em democracia e direitos humanos. Não há países santos, nem governos santos, nem partidos santos neste aspecto hoje em dia. Uns mais que outros, mas todos colaboram nesta glorificação do desarticulado.
O espaço público que é configurado pelos indecentes apresenta a marca da sua triste identidade.
É um espaço público nebuloso, onde se atira permanentemente poeira para os olhos dos auditores, onde impera a manipulação da verdade. O decente sabe-se paradigma, o indecente apenas se toma teimosamente por tal. O primeiro impõe-se por si mesmo, o segundo vive de se impor aos outros. O espaço público não é protagonizado por quem se apresenta distintamente, fulgurantemente, perante os seus concidadãos, mas por intrusos que irrompem, sem pertinência nem mérito, na ágora. Espécime intratável, a sua norma é a indignidade tanto quanto se referem ao seu contrário. Não convêm para coisa nenhuma, não se parecem com nada que valha a pena. Desarticulados por natureza, arvoram a desarticulação em lei universal. O inculto, o plebeu, o enfático, o repetitivo são os seus atributos maiores.
Os indecentes tomam por estúpidos os povos. Vêm o paradigma nas respectivas famílias. Eivados do espírito de irmandade, julgam que ser fraternos implica achar que todas as famílias são como as suas. Grosseiras, pouco inteligentes, em suma, indecentes.
Quando os analfabetos opinam, os cultos calam-se. Seria necessário devastar todo um mundo para contra-argumentar. Vício da preguiça, desprezo aristocrático, sensação de impotência? Talvez de tudo um pouco se explique este silêncio. Mas quem cala não consente, apenas se ausenta. Falando com os pés quem nem isso merece, vota com os pés quem mereceria outra coisa. O êxodo, a emigração profunda é a dos esclarecidos, que, ou escorraçados ou auto-exilados, se refugiam cada vez mais nas suas casas. Que estímulo existe a participar na discussão dita democrática se esta assumiu a forma da feira e da conversa das três vias romanas, do trivial? Quando entrar na discussão significa fazer parte do confrangedor espectáculo dos vendedores de frangos podemos realmente condenar quem se afasta com repulsa? Quando o solecismo se faz estilo e a inépcia estandarte de heráldica podemos culpar quem não se presta à mistura?
O problema é que de tanta justa decisão individual o espaço público fica deserto, não fora o grasnar dos incultos e dos grosseiros. A participação no espaço público pelos decentes tem assim de ser vista, não como um gozo, mas como um sacrifício, mesmo que daí se possam retirar prazeres múltiplos. São os heróis da vida contemporânea, os que largando a paz da sua decência aceitam entrar na liça, mesmo que precisem de tomar um forte banho de seguida.
Não refiro nomes de indecentes, não identifico criaturas, não fora eu correr o risco de imortalizar medíocres. Mas para a tristeza infinda dos indecentes, existem seres humanos que não o são, e é a estes últimos que cabe mostrar a humanidade na glória da sua existência. O destino talvez seja injusto, mas se o for, é-o bem menos que os indecentes.
Quando os decentes apenas entram a contragosto na pública arena é sinal de que a mesma se encontra em degradação, que se anuncia alguma queda. Fiquemo-nos com esta lição, a de que demos espaço aos desarticulados e assim andamos desarticulando o mundo. E mais outra: a de que respeitar esses heróis é uma oportunidade a não perder. Se a última, cada um julgue por si.
Alexandre Brandão da Veiga