Na França de meados do século XIX nasce uma figura de homem nova na História, pelo menos com essa consciência. Cansados de lutas ideológicas extremistas, compreendendo a necessidade de utilizar os instrumentos da ciência, da técnica e da economia capitalista, mas compreendendo igualmente que todas elas se têm de compreender de acordo com uma função social, nasce o tecnocrata. O tecnocrata nasce no II Império por influência do Saint-simonismo, segundo se afirma. Mas em boa verdade tanto o saint-simonismo como o movimento tecnocrático têm a mesma base: o cansaço de lutas ideológicas.
O tecnocrata é o homem que suspende a realidade, ou uma boa parte dela. Concentra-se numa especialidade e a ela se dedica em exclusivo. Não elabora teorias sobre Deus, o amor, a vida em geral, porque entende que nada pode dizer sobre elas. Não discute sequer a utilidade das questões. Suspende-as pura e simplesmente. Tem muito que fazer.
A Grã-Bretanha do século XIX criou outro tipo de homem, o utilitário. Comerciante, engenheiro ou mesmo sacerdote vê apenas a realidade na perspectiva do que é útil. Mesmo quando frequenta regularmente a igreja fá-lo porque a considera uma instituição socialmente útil. A marca deste tipo de homem atravessa toda a sociedade. Somerset Maugham, ao falar dos ingleses dos anos 1920 e 1930 dizia que mais facilmente acabavam por falar de sexo que de alma, palavrão supremo, que cobriria de ridículo e vergonha quem usasse tal palavra. O utilitário não suspende, suprime.
A Alemanha cria ainda outra figura, o tecnólogo. Este surge do cruzamento de três movimentos. A forte ligação à ciência, uma concepção de cultura como apolítica, e simultaneamente, paradoxo meramente aparente, uma fidelidade ao projecto de poder do Reich. Não faz política porque para ele fazer política é entrar em discussão. É participante activo da política do II Reich, mas não se considera ele fautor dessa política, mas apenas seu executante. Mais apto a falar de cultura que os anteriores, menos pudico quanto aos grandes temas filosóficos, cala-se no entanto mais na sociedade.
Um suspende, um suprime, outro ainda cala-se. Cada um deles tem os seus momentos de glória e não se pode estar demasiado grato ao que de extraordinário fizeram para o nosso conforto e para a nossa civilização material. Se saliento este tributo que temos de fazer a estes tipos humanos, faço-o com plena consciência. É que é demasiado comum serem degradados, desrespeitados, quando em boa verdade a eles muito devemos. Mas todos eles são executantes de ideias, e não seus criadores, mais uma vez meros usufrutuários de uma cultura e não homens que a renovem.
O problema é que hoje em dia assistimos ao império de um novo tipo de homem, resultado da mestiçagem entre os três: o tecnoideólogo. O tecnoideólogo suspende todos os temas que sejam do âmbito da vida pessoal, da vida em geral. Suprime toda a noção de transcendente e cala tudo o que possa pôr em causa a sua visão do mundo.
Este espécime humano, encontramo-lo hoje em dia entre os chefes das empresas, mas igualmente entre a administração pública. A figura híbrida, teratológica, surgiu, não por culpa sua, mas para preencher um vazio. A natureza tem horror ao vazio. E perante políticos, jornalistas, e um público em geral que se mostra incapaz de enunciar e executar novas ideias políticas, este espaço foi tomado por ele. É ele que sofre a pressão para resolver problemas. Já não tem Napoleão II nem Thiers, nem Bismarck nem Disraeli que lhe dêem o enquadramento político geral.
O tecnoideólogo faz o papel dos bispos durante as invasões bárbaras. A maioria das pessoas esquece que grande parte do poder temporal dos bispos lhes veio das populações. Foram as populações que lhes entregaram o poder temporal porque os principados estavam impotentes. Da mesma forma, os políticos, e em geral os homens públicos, desistiram nos últimos anos de fazer política. O principal problema político da Europa, e em parte do mundo, é a unificação europeia. Da solução que se der a este problema dependem todos os equilíbrios mundiais.
Mas as populações escolheram políticos que suspendem a questão da unificação, suprimem a discussão sobre a entrada da Turquia, e calam sobre as imposições americanas à Europa. Apagada a discussão, convenhamos que já postiça e rotineira entre os blocos ocidental e de Leste, ficaram, em grande parte dos casos, perdidos de referência. A questão europeia é tratada como anedótica, meramente lateral. Porque o tecnoideólogo é incapaz de lidar com grandes realidades.
O tecnoideólogo herdou dos seus antepassados o horror à política como consagração de ideias e valores. O seu pensamento assenta em manuais. Os seus livros de orações são documentos internacionais, hoje em dia de preferência em inglês. Está permanentemente ocupado, ou gosta de se ver assim pelo menos.
Se os bispos tiveram antes de ocupar o poder temporal, tendo sido a religião expulsa do espaço público, e a ideologia varrida da exposição geral, cabe-lhe a ele substituir esse espaço. A culpa não é dele, saliento mais uma vez, mas do vazio deixado pelas populações, políticos e jornalistas. Sem ninguém que o oriente, actua por inércia de movimento. Consulta os textos e age em função deles.
Tem fé no Direito. Acha por isso que a Europa é a democracia, os direitos do homem, a economia de mercado. Com uma total incultura simbólica, acha que o mundo assenta em andares superiores, sem procurar saber de que são feitos os solos em que realmente assenta o edifício. As soluções para a sua vida, encontra-as nos tratados europeus, os nas constituições ou nas declarações universais dos direitos do homem.
Tem fé, não na ciência, que desconhece, não na técnica, de que foi ensinado a desconfiar, não no ambiente, que foi apenas obrigado a valorizar, mas no mecanismo. Desde que encontre um mecanismo sente-se em casa. O mercado, a comunicação social, o sistema burocrático. O “paper”, o documento internacional é a sua máxima expansão.
O problema dos híbridos, no entanto, é que se definem por oposição aos seus antepassados. Nascido de um vazio de poder, apresenta uma face de negação. Já não suspende o juízo porque julga que fala de toda a realidade. Não suprime, mas acrescenta à realidade. Impõe o que a realidade deve ser na sua visão. A Europa é a democracia e a economia de mercado, um “espaço de comunicação de culturas” (seja lá o que for que isso queira dizer). E não se cala, cala os outros. Porque se considera, não neutro em relação aos valores, mas o detentor dos valores essenciais.
Quando está na administração pública tem vergonha de ter poder, exerce-o não com parcimónia, mas com um eterno pedido de desculpas. E tem razão. Tem de pedir desculpa de alguma, de muita coisa. Quando está nas empresas é obcecado com o Estado. Exige o seu apagamento, oficialmente, mas a sua colaboração, nos corredores. Diz que o Estado o atrapalha, nos jornais, mas não vive sem o seu empurrão, nos gabinetes.
Vazia a política, vazia a religião no espaço público, fenecidas as ideologias sistemáticas, o tecnoideólogo pode passar a ser novo sacerdote de uma religião que o instituiu, a do vazio. Odeia a soberania popular, a democracia, e quer passá-la pelo seu crivo. Quando por exemplo Chipre recusou a parte turca por decisão soberana popular, tanto a comissão europeia como o governo britânico (tão próximos que andam nos últimos anos na sua ideologia) afirmaram que a parte grega da ilha ensombrou a sua adesão. Nem admitem que haja referendo, decisão popular sobre a adesão da Turquia, porque são detentores da verdade.
O tecnoideólogo é assim o sucessor do inquisidor. Não foi escolhido pela vontade popular, sente-se imune a ela e mais iluminado que a soberania. Considera que a vida é mera execução e não novação, porque esse é o seu modo de viver. Determina o bem e o mal nominando-os com terminologias pseudo-técnicas. Tendo nascido de um vazio, não pode admitir que existe esse vazio que o legitima. Inculto de simbólica, nega o valor dos símbolos. De recente extracção, é mais um inimigo da História. Sorri perante o futuro e perante as hipóteses tontas, como a adesão da Turquia ou uma Europa como mera zona de encontro de culturas. Porque não sabe destrinçar um aeroporto de um centro cultural, um lupanar da sua casa. Mas tem realmente razões para sorrir? Fora mero tecnocrata, utilitarista ou tecnólogo, estaria servindo o soberano, faria bem o seu papel. Não o sendo, fazendo da vida mera execução, sem soberania, apenas resvala para o futuro, sorrindo, é certo, lançando olhares de censura, também, até se estatelar contra o que o futuro lhe trouxer. Só não é profeta da desgraça porque não é profeta. E nele a desgraça é sempre presente.
Alexandre Brandão da Veiga