Dançando em pares
O velho Sachs fez já há muito tempo uma observação que hoje em dia anda esquecida. A Europa foi a única cultura em que o homem e a mulher dançam em pares. Nas culturas não europeias como a turca, a árabe e muitas outras orientais os homens nunca dançam com as mulheres. Noutras há grupos de homens e grupos de mulheres que dançam cada um de seu lado. Noutras ainda homens e mulheres dançam em conjunto, mas nunca formam pares.
Na
Europa temos danças de conjunto em que se formam pares ou danças de pares, um
homem e uma mulher.
A
primeira verificação é civilizacional. A única civilização que desde há
milénios pratica a monogamia e a teoriza é também a única que cria pares na
dança. Este é um símbolo e um reforço da monogamia.
A
segunda é vivencial. Quem já dançou em pares como eu sabe a experiência de dois
corpos que falam entre si. O facto de haver regras não impede a espontaneidade
nem a variabilidade. Bem pelo contrário é a única situação em que um homem e
uma mulher fora do sexo podem ter uma comunhão corporal profunda e fora do
casamento a podem ter enquadrada em liberdade. É o oposto da violação e da
prostituição.
A
dança de pares na Europa seja em puros pares ou pares gerados por um grupo não
é acto de brutos ou experiência caótica. Está codificada. Há boas razões para
isso. Os corpos estão sujeitos à gravidade e à inércia. O mais natural é que
sejam trôpegos, deselegantes. Na natureza raras vezes se vê elegância, salvo no
predador que caça e na presa quando dele foge. A elegância é sempre dramática
na perspectiva da biologia, e sempre improvável na da física.
As
danças de salão nas suas várias versões na História europeia mas também o
ballet são a luta contra estas desgraças. Ter corpo sem ser desajeitado e
forçado pelo peso, ter harmonia sem desafio de morte é tudo menos evidente.
Ora
o século XX trouxe a tragédia não apenas nos campos de batalha mas também na
dança. Quis superar a dança tradicional. O que fez? Umas vezes aboliu os pares,
voltando a criar conjuntos ou solos, retirou outras os códigos. Outras vezes
criou novos códigos que se resumem a duas ideias. O corpo tem peso, o corpo
deixa de ser humano. Onde a dança clássica impõe a elegância dos pés das mãos
do corpo surge agora o trejeito, o espasmo, o brusco, ou o diluído. Onde havia
humanidade há agora a máquina, com os seus movimentos repetitivos, angulosos.
No
fundo tudo se funde num só princípio. Desde os anos 60 os pares dissolvem-se, e
um homem e uma mulher se dançam aparentemente juntos apenas se ligam pelo
olhar. Os seus corpos não estão unidos. E se se tocam cada um pretende tomar a
iniciativa. Dançar junto significa macaquear o outro ou dele se destacar. Já
não ter um fraseado comum.
Na
imagem pequeno burguesa do Maio de 68 tudo vale para fugir ao humano. Imitar as
pedras, as máquinas, os animais, os elementos da natureza tudo é melhor que
aceitar o seu destino humano menor. Prefere dançar como um porco, usando
palavras como mística ou revolução. Tudo é válido desde que possa deixar de ser
o que é. Dança para se desencontrar, com a mesma finalidade escreve teoriza ou
ensina. Num mundo em que andam todos desencontrados sente-se menos confrontado
com a sua menoridade. Todos decaem. Ou seja, todos se aproximam da sua origem.
É
evidente que é fácil criticar o ballet clássico e dizer que é ridículo. Por
vezes a música não é da maior profundidade nem o seu roteiro. Curioso critério,
sublime exigência. Muitas obras-primas são feitas de partes medíocres. Os Lieder
de Schubert assentam em grande parte em poesias medíocres e isso em nada os
estraga. Mozart fez a música mais sublime numa história estúpida como a da
Flauta Mágica e estragou sob o ponto de vista dramático o Don Giovanni com a
última cena moralista sem em nada ter estragado a sua beleza musical.
Da
mesma forma no ballet clássico histórias podem ser tontas, algumas músicas
delicodoces sem estragar em nada a beleza da dança. O contemporâneo não vive
sem a técnica do clássico, é lugar-comum. Mas não vive igualmente sem o seu
sentido de arte. Seja opondo-se-lhe, seja mimando-o. A dança popular não é
menos rotineira e apenas consegue ser mais grosseira. Gente ordinária abana a
anca para chocar o burguês: a sua família. Porque gente com outro nascimento
boceja e não se choca.
Um
fulano vestido com umas meias coladas à sua pele dançando com uma mulher usando
um tutu que parece um folhado... Nada mais simples de ser criticado, nada mais
evidente objecto de chacota. Pode-se dizer o mesmo de uma orquestra, conjunto
de criaturas sentadas à espera de ordens de maestro, gente que inquina as mãos
e o nariz com cheiros de tinta enquanto pintam quadros, os que arriscam uma
doença respiratória por ciselarem a pedra. Tanto na vida humana é ridículo...
Basta pensar num pai babado enquanto olha para a sua filha recém-nascida e
viscosa. Se o critério para recusar algo for o ridículo aparente que se proíba
o sexo, que raras vezes é artístico à vista.
Um
homem e uma mulher que dançam podem obedecer a regras, pode haver um a conduzir
e outro a sugerir. Mas quem teve essa experiência sabe que a sincronia dos
corpos em que se adivinha a vontade do outro é uma das vivências mais
libertadoras que um ser humano pode ter. Os pés de chumbo, os imitadores de
macacos e máquinas, os cultores da grosseria não podem saber que vida é esta. Não
lhes foi dada, fazem por isso a apologia da que lhes é possível. A vida que não
viveram tem dois nomes: livre e digna.
Alexandre
Brandão da Veiga