terça-feira, 30 de novembro de 2010

Torre e Espada II

Já muito mais tarde, era eu adulto, vi uma entrega de condecorações por um anterior presidente da república. Eram centenas de pessoas a ser agraciadas, se este era o verbo correcto, porque boa necessidade tinham de receber alguma graça. Eram centenas, ávidos como cães a um osso. Os mesmos que afirmavam em entrevistas dizer desprezar honras, mas que se apressaram a aturar uma tarde quente de Junho para terem uns segundos de uma glória sob a forma metálica que mais ninguém lembraria a não ser os próprios.

Nessa altura, a minha desilusão com as condecorações transformou-se definitivamente em desconfiança absoluta. As condecorações tinham-se tornado em... caricas. Aquilo que prometia em vão e criava desilusões em criança, aquilo que depois não poderia nunca ser motivo de maçada, tinha-se transformado definitivamente numa carica.

As voltas da vida fecham ciclos de formas algo inesperadas. Passados uns anos, por vias algo distorcidas, vim-me a deparar com um diploma sobre a Torre e Espada.

Decreto-lei n.º 414-A/86,de 15 de Dezembro, que aprova a lei orgânica das ordens honoríficas portuguesas. Encontro o artigo 40º que afirma que os agraciados com a Torre e Espada têm direito a uma pensão. Nesse momento não posso deixar de pensar em Blenheim construído no início do século XVIII para John Churchill, o primeiro duque de Malborough, antepassado do nosso velho Winston. Embora a coisa tenha suscitado intrigas, invejas e polémica, a verdade é que a nação inglesa pagou um imenso palácio ao herói de uma batalha. Isto é que é um país, grato aos seus heróis, generoso com eles.

Assim pensei, até perceber o que dizia este decreto-lei. A pensão que atribuía era equivalente... ao ordenado mínimo nacional. E, não satisfeitos com a coisa, os senhores legisladores tiveram ainda o cuidado de dizer que poderia mesmo ser reduzida a pensão, caso o agraciado tivesse outras pensões. Bem pensado, não vá o malandro que recebeu a Torre e Espada querer aproveitar-se dos dinheiros públicos.

E mais uma vez este aspecto me fez lembrar outra história. A minha bisavó Eugénia, que ainda conheci, era de Chaves. Senhora trasmontana típica, era rija, pés bem assentes na terra, e sem papas na língua. Vivia entre Chaves e o Campo de Cima, mas durante alguns anos vivia sobretudo na cidade. Dá-se o caso de o terreno dela na cidade confinar com uma taberna, ou hospedaria, nem me lembro bem. A dona da taberna, senhora que veio a ser conhecida pelo casamento com uma personagem famosa do antigo regime, era no mínimo também sem papas na língua, embora as dela fossem outras.

O negócio dela expandia-se e precisava de mais espaço para estacionar os cavalos. E por isso mandou pedir à minha bisavó que a deixasse usar parte do seu terreno para o efeito. A minha bisavó lá concedeu a coisa, até perceber que estava a ficar com as terras cheias de bosta de cavalo. Por isso mandou uma criada dizer à senhora que tinha acabado a tolerância. Quando a criada voltou a minha bisavó perguntou-lhe qual tinha sido a resposta da taberneira. A criada não quis dizer. Depois de a minha bisavó insistir, ouviu a resposta da taberneira pela boca da criada. Era simples e directa. “Favores de m... com m... se pagam”.

Ora pois, entrámos no centro da questão. O legislador português inspira-se na taberneira de Chaves. A Torre e Espada supostamente premeia grandes feitos. Mas o que o legislador português diz é que com m... se pagam favores de m... Afinal é o legislador a confirmar as minhas suspeitas: a Torre Espada não vale grande coisa. O que está a dizer é: “lá por teres realizado feitos extraordinários não julgues que fizeste grande coisa, nem abuses do Estado”. O que é justo, porque um feito extraordinário, como toda a gente sabe, não é coisa de grande importância. A melhor medalha é carica afinal.

Por isso tinha uma proposta para o legislador português. Que mude o nome da medalha. Não dá torres nem espadas. Que o legislador português seja finalmente consistente com o que acha e revela. Nada de Torre e Espada. Que apareça o novo nome da condecoração. Antes Carica e Gorjeta.




Alexandre Brandão da Veiga

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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Torre e Espada I

Diz uma longa mitologia nacional que a Torre e Espada é a mais alta condecoração que pode ser atribuída em Portugal. Não a contesto nem a confirmo. Apenas lhe pretendo salientar os perigos, e um leitor mais generoso não há-de deixar de me dar razão.

Quando era criança apanhei por acaso uma conversa em que se referia que o meu pentavô, João Manuel de Menezes da Veiga, tinha recebido uma Torre e Espada. A espada não me impressionou muito, porque já tinha visto que chegassem, e torres já conhecia algumas, mas integradas em casas. Agora uma torre, isolada, sem mais, parecia-me de história de sonho. Já a imaginava, quadrada, em pedra, sólida, em cima da qual se veria uma vasta paisagem.

Mas as crianças têm as suas manhas, e já tinha percebido que fazer certas perguntas poderia trazer a condescendência dos adultos. E por isso, em vez de perguntar onde estava a torre, decidi perguntar o que significava isso de receber uma Torre e Espada. Quando me disseram que era uma condecoração, fiquei profundamente desiludido. A torre com que eu tinha sonhado esvanecera-se de vez. Mas como senti alguma ponta de orgulho quando mo disseram – os adultos podem querer disfarçar essas coisas, mas nunca o conseguem totalmente – achei que, não sendo tão importante quando uma torre a sério, não seria algo de desprezar totalmente.

No entanto, ao longo da minha infância fui percebendo que as condecorações não eram algo tão importante assim. A minha tia Anaísa Velha (velha porque era tia-bisavó, para a distinguir da nova que era tia-avó) vivia em Chaves. Tinha tido cancro no peito, na altura doença quase certamente mortal, e prometeu que, caso se curasse, faria obra de protecção a doentes cancerosos. Recuperou da doença e assim fez. Fez um asilo para doentes onde estes eram tratados gratuitamente. O problema é que, quando a obra se tornou notória, já estávamos em plena I República. E lá teve a coitada da I República, laica e antimonárquica, de oferecer uma ordem, da benemerência se bem me lembro, a uma senhora católica e legitimista.

A situação só aparentemente era nova. Muitas vezes antes tinha acontecido. A pobre da III República francesa teve de engolir o católico Pasteur como um dos seus heróis. Não se pode nunca viver num mundo cor-de-rosa. A verdade que intimaram esta minha tia a vir a Lisboa receber a condecoração e ela disse que não podia vir a Lisboa receber. Não sei se invocou motivos de saúde, mas a verdade é que no fundo não achava que era motivo bastante para fazer uma longuíssima viagem a Lisboa ir receber uma condecoração.

As condecorações são assim coisas que não podem exigir muita maçada, pensei eu.

A terceira experiência que tive foi em casa de um primo meu que herdou as medalhas da família. Como por outros ramos tinha também família militar, a casa dele estava cheia de Torres e Espadas e Ordens de Aviz entre dezenas ou centenas de medalhas. Ele e um sobrinho foram conhecidos por nos anos 50 irem a uma recepção com medalhas espalhadas pela casaca à frente... e atrás. Em suma, as medalhas são coisas que existem aos pontapés e podem ser entendidas como brincadeira.

O destino das Torre e Espada não era muito risonho. Desiludiam crianças, não mereciam muita maçada e em acréscimo eram coisa que havia em abundância, sem grande importância.

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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Um mundo e algumas valsas II

La Valse é outra história. O próprio título o indica. Não é triste, não precisa de qualificações. Não se esconde sob o exotismo oriental de fim de século. Não surge como a negação do que é a valsa. Está nos antípodas das outras três composições nesse aspecto. É a valsa no seu estado puro, na sua essência, na sua mais pura expressão. Valsa a três tempos, em cúmulo.

Ravel parte da Valsa do que tem de mais fundamental e não foge dela. Enfrenta-a no que tem de mais rigoroso e grandioso. A valsa é a negação da gravidade e nesse aspecto é um símbolo maior de civilização. O tosco assenta na terra. O que valsa age como se as leis da natureza tendessem todas para a ausência de fricção, entropia, atrito e gravidade. O mundo é legível mas, mais importante, atravessa-se com leveza. Obra difícil se a há.

Ravel parte da valsa para mostrar o que é uma civilização: a sublimação de uma barbárie. Isto não lhe retira nenhuma grandeza. É precisamente por saber que a barbárie está na base de todo o comportamento humano que o civilizado tem mérito. Opta. E opta pelo melhor. Ravel põe a nu as bases da civilização, de toda a civilização, mas sobretudo da mais complexa de todas, a europeia, mostrando que, nunca saindo da valsa e partindo dela tudo se pode desfazer. A civilização, toda ela, é frágil, assenta num tecido sempre muito ténue. Rasgões são tão mais fáceis e desfigurantes quanto delicado é o tecido. No pano grosso o rasgão custa e passa despercebido frequentemente.

Aceitemo-lo. La Valse é uma obra inteligente, superiormente inteligente. Não é mais profunda que as restantes sob o ponto de vista musical, nem forçosamente mais bela. Não é aí que a coisa é relevante para estes efeitos. Ideologicamente é mais lúcida. E mais lúdica porque não dialoga com o exótico como Strauss, nem finge partir dele como Strawinski, nem se fica pelos limites da civilização como Sibelius. Em certo sentido, pelas suas limitações, são mais artistas. Ravel é mais inteligente aqui porque faz obra de antropólogo, trata o civilizado como se deve tratar o selvagem: de dentro, a partir das próprias premissas. Percebe que a solução para o civilizado não é deixar de o ser, mas a de perceber que nunca o é totalmente. Que nas bases do que vive há um lodaçal de massas vulcânicas e poeiras nascidas e vividas pela violência. O civilizado não é menos que o selvagem. Porque tem tudo o que o selvagem tem e mais qualquer coisa. Na base somos todos selvagens. É esse o mérito do civilizado. O de não se ficar só pela base.






Alexandre Brandão da Veiga

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segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Um mundo e algumas valsas I

Alguns factos e uma cronologia. 1902: Sibelius faz a suite Kuolema (“a morte”) com 37 anos, suite de que faz parte a Valse Triste. 1905: Strauss faz a ópera Salomé com 41 anos de que faz parte a dita dança dos sete véus. 1913: é a data do Sacre du Printemps de Strawinski, na altura com 31 anos. 1920: La Valse de Ravel, então com 45 anos.

Reconheçamos em primeiro lugar o seguinte: só La Valse é posterior à Primeira Guerra Mundial e é composta por um músico com idade mais avançada que as outros. Este facto terá mais ou menos importância, relativa ajuda para explicar alguma coisa, mas não pode ser o único decisivo.

Não pretendo julgar da valia musical de cada obra. Uma das obsessões da nossa época é a de criar pódios, de falar do melhor músico, do melhor escritor, do mais vendido dos cantores, do mais visto dos filmes, como se isso tivesse algum fundamento ou alguma importância. Pode-se definir uma plêiade, mas não um pódio. A cultura tem níveis, mas não listas de vendas.

Não me interessa por isso saber qual das obras foi mais importante para a História da música, qual dos compositores é musicalmente mais profundo, até porque a cada momento cada um deles tem importâncias diversas e da minha parte não dispensaria nenhum.

Nem procuro ser completo. Outras valsas, como a Shostakovski poderiam ser referidas. Comecemos por isso por o que não é uma valsa.

O Sacre du Printemps é tudo menos uma valsa. Fez-se tudo para que fosse o inverso de uma valsa. Se sob o ponto de vista musical é indubitavelmente um monumento, a verdade é que sob o ponto de vista ideológico mostra alguma ingenuidade. Strawinski parte de um primitivo imaginado, mais que conhecido, e usa a complexidade da teoria musical europeia para o representar. Obra maior sem dúvida, mas que acaba por se tornar hoje em dia relativamente inofensiva. Como tantas outras, ajudou a produzir grandes efeitos, criando uma moda do primitivo, do tosco, do telúrico, que fica bem em gente de grande complexidade e cultura como o compositor e os seus verdadeiros apreciadores, mas torna-se mera rotina na sala de espectáculo em que se mostra o Bantu estilizado na malha urbana.

A dita dança dos sete véus da Salomé é outra obra-prima. Aqui toda a sofisticação sem vergonha de Strauss aparece em glória. Mas reconheçamo-lo: trata-se de uma valsa. Não é ambiente de Tetrarquia, mas mais de dupla coroa. Ninguém se engana: é de Viena e não da Palestina que se trata. Strauss nunca teve a obsessão do primitivo. Trabalha com o sofisticado até ao seu último grau, conhecia profundamente os instrumentos da História da música, os seus mecanismos mais profundos, e por isso não tinha medo de os diluir. É desta oscilação entre bom comportamento e ousadia, sempre com um pano de fundo disciplinado, que aparece a impressão de primitivo.

Sibelius é outro mundo. A Valse triste é um monumento de um romantismo que não sai de si, mas tenta ir aos seus últimos limites. O título é justo, mas apenas parcialmente. Em certas partes não é triste, é revoltada. Corre, mas não sai do mundo impecavelmente branco da Belle Epoque nórdica. No fundo é uma interpretação. Plenamente integrada na Europa, a Finlândia marca o seu lugar próprio nela. Nesse sentido é mais um testemunho politico que directamente sentimental. Mas a marca sentimental é muito forte. Por isso Sibelius não sai do mundo onde vive, rodeia-o, mostra-lhe as fronteiras. Guia-nos dentro dele, mas não consegue dele sair.

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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Realismo fantástico e teoria dos valores III


Que tem a ver o realismo fantástico com a teoria dos valores? Para começar padecem do mesmo sintoma: o sucesso público e o abandono filosófico, e um vai de par com o outro. É precisamente por o espaço público ser pobre em pensamento que um e outra têm nele sucesso. Em segundo lugar, a associação temerária entre realismo e ciência. Reduz-se o que seja o realismo e o que seja ciência para que sejam o espelho uma da outra, esquecendo-se das origens idealistas de muita da ciência e sobretudo do facto de que o realismo não se reduz a um realismo social fortemente ideológico. Em terceiro lugar, tentam dar cor a um mundo sem cor, exactamente porque decidiram que o fundo do mundo não a tem. Não era o mundo a não ter cor, é a sua visão do mundo que é cega a ela. Por isso num e noutro caso temos a sensação de que estamos perante livros de criança para colorir, em que o desenho já está previamente fixado e supostamente se estimula a criatividade apenas podendo escolher cores de forma mais ou menos arbitrária.

O problema é que nenhuma destas visões do mundo é realista, nem científica, nem carnal. É descarnada e triste, usando o valor ou o fantástico como tinta artificial para cãs precoces. O seu sucesso está na medida do seu desespero. Tirando o suco vital ao mundo, vendo-o como liofilizado, dão-lhe humidade juntando água, e aspecto juntando o colorante artificial.

O qualificativo é aliás significativo. Valores e fantástico participam do mesmo mundo fantasmagórico, que tem medo de estar morto e em que se apela para algo com vida própria e que não controla para dar substância ao mundo. Apela-se para algo fora do mundo, para algo fora da sua legitimação, exactamente para o legitimar. O pressuposto é igualmente pobre. Seja o império da ciência por quem a ignora, seja um realismo ideológico, ou seja, o oposto do realismo, mostram que as bases em que assentam são frouxas, num mundo em que não há pé, o afogamento é eminente, exactamente porque é de fora que vem a sua salvação. De uma forma ou de outra são novas soteriologias, oblíquas, que nasceram do abandono das directas. Apela-se para um deus desconhecido apenas dos ignorantes, e fica-se satisfeito e receoso por esse desconhecimento. Uma vida vivida por procuração porque a vida imediata não lhes faz sentido. Tristes os trópicos onde fazem nascer o fantástico e tão tristes os espíritos onde fazem nascer os valores, são cultivados por almas danadas que temem uma morte que já as conquistou e esperam salvação do que nunca nasceu para as ajudar.









Alexandre Brandão da Veiga

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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Realismo fantástico e teoria dos valores II

Vejamos agora a teoria dos valores.

Quando Dilthey e mais tarde Max Scheler desenvolvem esta brilhante teoria não poderiam adivinhar o sucesso que ia ter. O pano de fundo é no fim de contas o da derrota da filosofia. A ciência é reconhecida como a forma de visão correcta, mas haveria campos da realidade que a ciência não conseguia explicar. Basicamente o das ditas ciências do espírito. A História, a antropologia, a sociologia, a estética não seriam explicadas pela ciência. De que ciência falavam? Das ciências ditas naturais, entendidas como um magma relativamente uniforme.

O problema da teoria dos valores reside assim nas suas limitações. Profundamente anti-metafísica na sua origem, filha do positivismo, a teoria dos valores vê a ciência com os olhos, não do que os cientistas fazem, mas do que os positivistas diziam que ela faria. Vê-a como um magma uniforme, quando a estrutura e a história da matemática tem pouco a ver com a química e a biologia. Os cruzamentos que foram feitos entre as várias ciências foram sempre conflituosos e nem sempre deram frutos. As ciências ditas naturais não são uniformes entre si, nem sequer harmoniosas e nelas encontram-se muitos mais afinidades com as ciências ditas do espírito que os filósofos dos valores algum dia poderiam conceber.

Mas a teoria dos valores tem os seus sucessos. Se foram abandonadas pela antropologia e pela sociologia, e em parte pela História, quando no movimento estruturalista tentaram beber ao paradigma matemático, sobretudo da álgebra abstracta (ele mesmo um campo em muitos aspectos mais próximo da taxonomia que da análise), a verdade é que tiveram grande sucesso no Direito e na ciência política, e sobretudo no discurso político.

Quando os semi-instruídos querem ter discursos profundos no espaço público falam de valores. Mas esquecem-se que isso é uma derrota do pensamento, e nomeadamente da filosofia. Os pressupostos da ciência não são científicos nem o podem logicamente ser, e aí há todo o espaço para a metafísica. A função do pensamento não é a de se ocupar dos restos deixados pela ciência. Tenho salientado muitas vezes – e aqui fala um apaixonado pela ciência - que não é função da ciência instaurar vidas, nem sequer a vida científica.

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terça-feira, 9 de novembro de 2010

Realismo fantástico e teoria dos valores I

Duas realidades que ninguém se lembra de cotejar: o realismo fantástico e teoria dos valores. A comparação na nossa época é em geral apressada apenas porque o pensamento é irresponsável e provinciano. Mas na cultura as coisas não estão desgarradas. O sucesso de dois movimentos que aparentemente nada têm a ver um com o outro é geralmente mais significativo do que se pensa.

Comecemos pelo realismo fantástico. A expressão aparece nos anos 50, se bem me lembro, em pensadores da extrema-direita francesa ou tendo nela a sua origem, como Jacques Bergier e Louis Pawels. E eis que passa para a qualificação de alguma literatura latino-americana para de novo retornar à Europa. Que muitos bem pensantes ditos de esquerda vão beber à extrema-direita não é novidade. A ecologia, o feminismo, o culto homossexual têm na extrema-direita muitos dos seus primeiros cultores até encontrarem na dita esquerda quem acolha as mesmas ideias. O anti-semitismo mais virulento encontra-se hoje em dia na extrema-esquerda. O que mostra mais uma vez que as destrinças entre esquerda e direita são muito pobres para explicar o que seja de profundo em política.

Mais importante neste momento é perceber qual é o pano de fundo deste dito realismo fantástico na literatura. O ponto de partida mais ou menos não assumido é o de que a única forma legítima de literatura é o realismo. Primeira limitação. Mas eis que nos aparece uma segunda. O realismo tem base social. E eis que aparece uma terceira. O ponto de vista social legítimo é o das classes baixas. O problema é que o realismo tradicional tinha mostrado a sua secura. Permitiu o desenvolvimento de obras-primas, mas mais uma vez mostra que fruiu de um fonte mais que a criou. No que tem de arte não foi ao realismo que a foi buscar. O realismo tornou-se mais um motivo e um quadro que uma fonte de criação.

Por isso a parte do fantástico torna-se uma tábua de salvação. Era preciso dar cor, dar espaço à imaginação. Mostrar que a imaginação tinha um espaço irredutível às teorias realistas. Ultrapassaram-se assim alguns dos cânones do realismo. Sem dúvida. Mas não se ultrapassou o seu pano de fundo nem as suas limitações. Foi apenas mais um fôlego dado a um asmático.

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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A política ambiental III

Comecemos pelo que eu não acredito quanto aos efeitos globais.

Em primeiro lugar, não acredito na santidade de um lado e na conspurcação de outro. Os ambientalistas não são mais santos que os outros. Hoje em dia os interesses instalados dos ambientalistas, seja junto dos governos, seja junto das universidades, institutos, mas igualmente junto de empresas que vivem do grande nicho ecológico, não são menores que os das empresas ditas poluentes. Que as empresas tradicionais de energia tenham feito o que puderam durante anos para desmerecer os riscos ambientais é perfeitamente crível. Mas os dados ficam hoje em dia bem mais complexos quando são muitas vezes essas empresas que começam a ter interesses crescentes nas energias renováveis.

Em segundo lugar não sei em quem acreditar sob o ponto de vista de honestidade intelectual. A desonestidade intelectual da discussão confrange-me. De repente vejo pessoas com a mesma certeza absoluta afirmarem relações de causalidade ou negarem-nas. A verdade é que os modelos de previsão do ambiente são de uma complexidade matemática imensa. Eis que de repente o merceeiro que mal toca no seu lápis para fazer uma conta de somar já manipula equações com derivadas parciais com desenvoltura.

Assusta-me, porque isso diz muito sobre o envenenamento do ambiente científico, também ele massificado, ver até que ponto os dissonantes são calados. Os dissonantes umas vezes são tontos, outras são Planck ou Maxwell. E a ciência faz-se dessas dissonâncias. Quando vejo movimentos para calar uma parte da discussão sei que quem o faz está bem longe de ter espírito científico. Usa instrumentos com bizantina satisfação, mas falta-lhe a dimensão para ser cientista.

E o público em geral, que tanto afirma que a ciência não basta, e que pouco sabe de ciência, é o primeiro a esgrimir o argumento científico, afirmando que está cientificamente provado que... seja o que for. Esquecendo que quando o faz apenas usa um argumento de autoridade, ou seja, não cientifico. Que a ciência seja usada e abusada para fins não científicos, como mero fetiche, a nossa época dá muitos e tristes exemplos. É mais um exemplo do espírito parasitário da época. Parasita-se a ciência como se parasitam os privilégios do cristianismo, para os negar a todo o momento e os invocar quando animicamente é oportuno.

Por isso, e ainda quanto aos efeitos globais, depois de dizer no que não acredito, apenas posso afirmar o que não sei. Não sei se e até que ponto, por que mecanismos e com que magnitude a actividade humana actua sobre o ambiente. Desconheço o potencial de reequilíbrio do ambiente. Ignoro se, mesmo que não tenha sido o homem a alterar o ambiente, qualquer política ambiental possa ter efeitos sobre o mesmo e em que grau. Aceito que um princípio de precaução é prudente em muitas áreas desde que razoavelmente aplicado (nos alimentos geneticamente modificados, por exemplo). No entanto, para ser franco, creio que as duas primeiras ordens de razão já são bastantes para me fazer acreditar numa política ambiental e que qualquer discussão na matéria dos efeitos globais corre o risco de criar mitos entre o público em geral.

O que esta discussão sobre o ambiente revela é algo de bem mais fundo. É a eterna luta entre o homem lúdico, representado aqui por muitos homens de empresas e políticos, e o arquétipo de provedor.

Neste aspecto, os ambientalistas são mais herdeiros do espírito cristão, embora mais uma vez por via liofilizada. O homem tem de cuidar da natureza porque é o seu herdeiro, enche-se de culpas em relação à natureza porque peca contra ela. É evidente que se trata de uma caricatura do cristianismo, mas os movimentos “alternativos” alimentam-se sempre desta caricatura. Não conhecem outras fontes de pensamento senão as cristãs, mas não são capazes de as perceber. Julgam-se pós-cristãos, a-cristãos, mas são apenas filhos degenerados do cristianismo.

Os que ignoram o ambiente, são herdeiros do homem lúdico, que brinca com a natureza e julgando-se avatares da auto-regulação (levado ao seu extremo do equilibro ecológico), esquecem-se de que podem existir limites ao poder auto-regenerador da natureza. Se der um murro a alguém poucos dias depois a pessoa volta à situação anterior. Se lhe amputar um membro duvido que isso aconteça. Uns e outros parecem-se em suma algo infantis. Nunca me dei a importância de ser pai da natureza nem a pequenez de não a ter de cuidar.

Por isso basto-me por enquanto com as duas primeiras ordens de razões: a dos efeitos locais e geoestratégicas. Já são mais que suficientes. Quanto à dos efeitos globais, teria preferido que fossem os cientistas a esclarecer-me e não um ex-vice-presidente que, por mais bem intencionado que seja, deve saber um pouco menos de análise que eu e ter ainda mais fraca cultura da ciência. Talvez se invocássemos menos ciência em público e déssemos mais espaço aos cientistas para dela falar, assim teríamos algumas coisas mais a aprender.





Alexandre Brandão da Veiga

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quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A política ambiental II

As necessidades geoestratégicas convencem-me igualmente.

Em primeiro lugar porque a Europa, como todo o mundo dito ocidental, é energeticamente dependente. E dependente de zonas instáveis sob o ponto de vista político. Médio Oriente, Maghreb, Ásia Central, entre outros. Uma das vantagens das energias renováveis é o de se poderem fixar na Europa. Existem obviamente projectos faraónicos, como o de transformar o Saará e parte do Maghreb em central solar para a Europa. Mas esse seria o pior erro estratégico. Seria deitar dinheiro para zonas instáveis e não aproveitar a oportunidade de mais independência energética.

Em segundo lugar pela possibilidade que gera de renovação tecnológica e económica. Os choques petrolíferos foram lições para a Europa, que aumentou a sua eficiência energética, reformou completamente materiais de construção, aumentou a sua independência energética em graus diversos, criou novas tecnologias. O padrão de fornecimento energético que se seguiu no pós segunda guerra mundial é típico de um pensamento, não colonial, mas em boa verdade pós colonial. As maiores explorações das colónias ocorrem no fim do período colonial mas sobretudo posteriormente a ele e sem os custos de um império. O problema é que um império tem ao menos a vantagem da dominação directa e gera mais estabilidade política enquanto é sustentável.

Os países nórdicos beneficiaram de uma inteligente concepção ambientalista, antecipando-se na criação de electrodomésticos e carros mais eficientes, por exemplo. As possibilidades de ligação entre investigação fundamental e aplicada (desde que a Europa as saiba bem aproveitar) só podem ir a benefício da Europa.

Estas as razões que me convencem quanto à política ambiental. Mas temos de enfrentar a questão dos efeitos globais. São os que mais impressionam, os que mais suscitam medos religiosos ou despudor sacrílego.

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terça-feira, 2 de novembro de 2010

A política ambiental I







Não sendo especialista em ambiente, não posso deixar de estar confundido pelas discussões que se ouvem acerca do aquecimento global.

Como existem teses para todos os gostos, e tentando ordenar ideias vou tentar expor o que penso da forma mais simples. Aliás, nesta matéria não posso ser mais que um cidadão esclarecido e não um conhecedor.

Na perspectiva europeia eu tentaria resumir os níveis da discussão a três:
a) Os efeitos locais
b) As necessidades geoestratégicas
c) Os efeitos globais.

A actividade humana tem efeitos locais. Esses, ao contrário dos globais, não são objecto de decisão, são evidentes. E por isso são estes os primeiros a convencer-me.

Fugas de radioactividade em centrais nucleares, fumo a sair de chaminés, líquidos poluentes a sair para os rios e para o mar, dejectos de porcos que poluem as águas. Estes efeitos locais são não apenas evidentes nos seus traços gerais, como quanto a mim é evidente a sua nocividade. Só por si convencem-me da necessidade de uma política ambiental.

Em primeiro lugar não gosto de coisas porcas. Rios porcos, cidades ou campos porcos, não é ambiente em que queira viver. É uma questão higiénica.

Em segundo lugar, provocam problemas de saúde nas pessoas, e também por essa via me parece que são indiscutivelmente nocivos.

Em terceiro lugar, destroem ecossistemas, reduzem a biodiversidade. A utilidade para o ser humano da biodiversidade (tanto na descoberta de novos medicamentos, como a rendibilidade de agricultura, como no próprio equilíbrio fisiológico do ser humano) é evidente.

Em quarto lugar, e aceito que me acusem de subjectividade, mas não gosto de coisas feias. Um rio porco, uma cidade suja, o fumo cinzento a pintar o ar, as roupas que se emporcam, tudo isso me parece sumamente inestético.

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