Torre e Espada II
Já muito mais tarde, era eu adulto, vi uma entrega de condecorações por um anterior presidente da república. Eram centenas de pessoas a ser agraciadas, se este era o verbo correcto, porque boa necessidade tinham de receber alguma graça. Eram centenas, ávidos como cães a um osso. Os mesmos que afirmavam em entrevistas dizer desprezar honras, mas que se apressaram a aturar uma tarde quente de Junho para terem uns segundos de uma glória sob a forma metálica que mais ninguém lembraria a não ser os próprios.
Nessa altura, a minha desilusão com as condecorações transformou-se definitivamente em desconfiança absoluta. As condecorações tinham-se tornado em... caricas. Aquilo que prometia em vão e criava desilusões em criança, aquilo que depois não poderia nunca ser motivo de maçada, tinha-se transformado definitivamente numa carica.
As voltas da vida fecham ciclos de formas algo inesperadas. Passados uns anos, por vias algo distorcidas, vim-me a deparar com um diploma sobre a Torre e Espada.
Decreto-lei n.º 414-A/86,de 15 de Dezembro, que aprova a lei orgânica das ordens honoríficas portuguesas. Encontro o artigo 40º que afirma que os agraciados com a Torre e Espada têm direito a uma pensão. Nesse momento não posso deixar de pensar em Blenheim construído no início do século XVIII para John Churchill, o primeiro duque de Malborough, antepassado do nosso velho Winston. Embora a coisa tenha suscitado intrigas, invejas e polémica, a verdade é que a nação inglesa pagou um imenso palácio ao herói de uma batalha. Isto é que é um país, grato aos seus heróis, generoso com eles.
Assim pensei, até perceber o que dizia este decreto-lei. A pensão que atribuía era equivalente... ao ordenado mínimo nacional. E, não satisfeitos com a coisa, os senhores legisladores tiveram ainda o cuidado de dizer que poderia mesmo ser reduzida a pensão, caso o agraciado tivesse outras pensões. Bem pensado, não vá o malandro que recebeu a Torre e Espada querer aproveitar-se dos dinheiros públicos.
E mais uma vez este aspecto me fez lembrar outra história. A minha bisavó Eugénia, que ainda conheci, era de Chaves. Senhora trasmontana típica, era rija, pés bem assentes na terra, e sem papas na língua. Vivia entre Chaves e o Campo de Cima, mas durante alguns anos vivia sobretudo na cidade. Dá-se o caso de o terreno dela na cidade confinar com uma taberna, ou hospedaria, nem me lembro bem. A dona da taberna, senhora que veio a ser conhecida pelo casamento com uma personagem famosa do antigo regime, era no mínimo também sem papas na língua, embora as dela fossem outras.
O negócio dela expandia-se e precisava de mais espaço para estacionar os cavalos. E por isso mandou pedir à minha bisavó que a deixasse usar parte do seu terreno para o efeito. A minha bisavó lá concedeu a coisa, até perceber que estava a ficar com as terras cheias de bosta de cavalo. Por isso mandou uma criada dizer à senhora que tinha acabado a tolerância. Quando a criada voltou a minha bisavó perguntou-lhe qual tinha sido a resposta da taberneira. A criada não quis dizer. Depois de a minha bisavó insistir, ouviu a resposta da taberneira pela boca da criada. Era simples e directa. “Favores de m... com m... se pagam”.
Ora pois, entrámos no centro da questão. O legislador português inspira-se na taberneira de Chaves. A Torre e Espada supostamente premeia grandes feitos. Mas o que o legislador português diz é que com m... se pagam favores de m... Afinal é o legislador a confirmar as minhas suspeitas: a Torre Espada não vale grande coisa. O que está a dizer é: “lá por teres realizado feitos extraordinários não julgues que fizeste grande coisa, nem abuses do Estado”. O que é justo, porque um feito extraordinário, como toda a gente sabe, não é coisa de grande importância. A melhor medalha é carica afinal.
Por isso tinha uma proposta para o legislador português. Que mude o nome da medalha. Não dá torres nem espadas. Que o legislador português seja finalmente consistente com o que acha e revela. Nada de Torre e Espada. Que apareça o novo nome da condecoração. Antes Carica e Gorjeta.
Alexandre Brandão da Veiga
Nessa altura, a minha desilusão com as condecorações transformou-se definitivamente em desconfiança absoluta. As condecorações tinham-se tornado em... caricas. Aquilo que prometia em vão e criava desilusões em criança, aquilo que depois não poderia nunca ser motivo de maçada, tinha-se transformado definitivamente numa carica.
As voltas da vida fecham ciclos de formas algo inesperadas. Passados uns anos, por vias algo distorcidas, vim-me a deparar com um diploma sobre a Torre e Espada.
Decreto-lei n.º 414-A/86,de 15 de Dezembro, que aprova a lei orgânica das ordens honoríficas portuguesas. Encontro o artigo 40º que afirma que os agraciados com a Torre e Espada têm direito a uma pensão. Nesse momento não posso deixar de pensar em Blenheim construído no início do século XVIII para John Churchill, o primeiro duque de Malborough, antepassado do nosso velho Winston. Embora a coisa tenha suscitado intrigas, invejas e polémica, a verdade é que a nação inglesa pagou um imenso palácio ao herói de uma batalha. Isto é que é um país, grato aos seus heróis, generoso com eles.
Assim pensei, até perceber o que dizia este decreto-lei. A pensão que atribuía era equivalente... ao ordenado mínimo nacional. E, não satisfeitos com a coisa, os senhores legisladores tiveram ainda o cuidado de dizer que poderia mesmo ser reduzida a pensão, caso o agraciado tivesse outras pensões. Bem pensado, não vá o malandro que recebeu a Torre e Espada querer aproveitar-se dos dinheiros públicos.
E mais uma vez este aspecto me fez lembrar outra história. A minha bisavó Eugénia, que ainda conheci, era de Chaves. Senhora trasmontana típica, era rija, pés bem assentes na terra, e sem papas na língua. Vivia entre Chaves e o Campo de Cima, mas durante alguns anos vivia sobretudo na cidade. Dá-se o caso de o terreno dela na cidade confinar com uma taberna, ou hospedaria, nem me lembro bem. A dona da taberna, senhora que veio a ser conhecida pelo casamento com uma personagem famosa do antigo regime, era no mínimo também sem papas na língua, embora as dela fossem outras.
O negócio dela expandia-se e precisava de mais espaço para estacionar os cavalos. E por isso mandou pedir à minha bisavó que a deixasse usar parte do seu terreno para o efeito. A minha bisavó lá concedeu a coisa, até perceber que estava a ficar com as terras cheias de bosta de cavalo. Por isso mandou uma criada dizer à senhora que tinha acabado a tolerância. Quando a criada voltou a minha bisavó perguntou-lhe qual tinha sido a resposta da taberneira. A criada não quis dizer. Depois de a minha bisavó insistir, ouviu a resposta da taberneira pela boca da criada. Era simples e directa. “Favores de m... com m... se pagam”.
Ora pois, entrámos no centro da questão. O legislador português inspira-se na taberneira de Chaves. A Torre e Espada supostamente premeia grandes feitos. Mas o que o legislador português diz é que com m... se pagam favores de m... Afinal é o legislador a confirmar as minhas suspeitas: a Torre Espada não vale grande coisa. O que está a dizer é: “lá por teres realizado feitos extraordinários não julgues que fizeste grande coisa, nem abuses do Estado”. O que é justo, porque um feito extraordinário, como toda a gente sabe, não é coisa de grande importância. A melhor medalha é carica afinal.
Por isso tinha uma proposta para o legislador português. Que mude o nome da medalha. Não dá torres nem espadas. Que o legislador português seja finalmente consistente com o que acha e revela. Nada de Torre e Espada. Que apareça o novo nome da condecoração. Antes Carica e Gorjeta.
Alexandre Brandão da Veiga
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