Vamos pois à Rússia.
Como é o mundo visto pela Rússia? Coloquemo-nos na sua posição. Imagine-se o
que seria um Portugal em que todos os países até França ficaram sob domínio
russo. E agora há movimentos para que Espanha esteja também sob domínio russo. Sentir-se-iam
confortáveis os portugueses? Guardadas as devidas proporções (a Rússia tem
fronteiras e possibilidades de encontro bem mais vastos que Portugal) é essa a
posição da Rússia. As suas zonas de influência uma por uma foram absorvidas
pela pata americana. Não interessa agora saber quem são os bons ou os maus, mas
visto da Rússia, há um estreitamento, e mesmo um estrangulamento, das suas fronteiras
que é perigoso e que têm toda a razão de sentir como uma ameaça.
Junte-se a isto uma
política militar agressiva que começa com Clinton e continua com Bush filho. A
diferença entre um e outro é muito menor do que se julga. Acrescente-se um país
que vive humilhado pelo facto de o seu sucesso se basear sobretudo em matérias-primas,
quando se trata de uma imensa cultura, rica, profunda e sofisticada.
Acrescente-se a esta
receita o facto de a Rússia não ter passado pela versão triste da modernidade
que é o pós-modernismo. A Rússia vive ainda os primeiros modernismos, ou seja,
sem arrependimento permanente, sem pedidos de desculpa, sem a aceitação de toda
e qualquer aldrabice só porque existe. Na Rússia ainda se sabe pintar, não se
toca música apenas de ouvido, as matemáticas tem de ser efectivamente estudadas.
Não é pós-moderna porque, apesar de a obsessão de poder americana não ser inferior
à Rússia, os russos não estão preocupados com o embrulho dourado feito de
direitos do homem, liberdade e quejandos. A Rússia em acréscimo despreza a Europa,
e com as suas razões, porque esta é submissa aos Estados Unidos ao ponto de
aceitar como país europeu o que mais não é que um país asiático, a Turquia.
Ri-se com gosto e não sem malicia do grau de sujeição em que estão os europeus,
sem vontade, sem necessidade de espaço próprio de actuação.
A Rússia não tem
vergonha de ter poder, e precisa de poder. É uma imensa barreira contra a Ásia
(nisto estou bem acompanhado, Eça de Queiroz achava o mesmo). os seus vizinhos
não são brincadeira. Entre os turco-mongóis e os chineses está rodeada de povos
pouco sensíveis (é o mínimo que se pode dizer) aos direitos do homem e ao
delicodoce convívio civilizado à europeia. Os asiáticos usam o poder e a
crueldade sem pejo, nem problemas de consciência, e nem no segredo dos seus quartos
têm de rezar a um Deus que lhes pede contas dos seus sucessos. Apenas dos seus
fracassos. A Rússia presta-nos o serviço sujo do guarda, para que os ditos
ocidentais possam dormir descansados nas suas consciências.
E como não se bastara, há a maior falha da política
europeia dos últimos 25 anos. O muro de
Berlim caiu para os dois lados, não me canso de o dizer. E a Europa, em vez
de perceber que o seu maior desafio era do a integração da Rússia, em vez de fazer
um plano Marshall para a Rússia, deixou-a embebedar-se, apodrecer, decair
durante os anos 90. Humilhar um povo é injusto, humilhar um grande povo é além
do mais perigoso.
O que temos como resultado
é um grande festival de sanções pelos países ocidentais, mas mais de fachada
que outra coisa. A Rússia gerando 18 milhões de turistas por ano para a Europa,
sendo um forte de mercado de importação de produtos europeus, e de exportação
de energia, sendo estrategicamente central para a estabilização da Ásia Central
e do Cáucaso e barragem natural da Europa contra a Ásia, não vai ser fortemente
hostilizada. Sanções de fachada e pouco mais.
O problema é que esta
fachada gera mais e mais feridas na relação entre a Rússia e a Europa. A Rússia
é o maior país europeu, para a Europa é central, para os Estados Unidos não.
O problema é o que todo
este processo revela da mentalidade europeia. Da Rússia diz-se sempre que o copo
está meio vazio, da Turquia meio cheio. Cada pequenina conquista democrática na
Turquia é vista com imensa alegria, os recuos são entendidos como percalços
naturais num percurso complexo. Porquê? Porque, no fundo, todos sabem que não é
um país europeu, e se não exige tanto deles. Quanto à Rússia a exigência é a
que se tem em relação a qualquer país europeu e por isso a crítica é bem mais
forte. A mentira tem perna curta, e quanto mais se critica a Rússia mais se tem
de reconhecer que não se tem outro remédio senão confessar que é um país
europeu.