A Joaninha e o carrapito
A Joaninha tem um carrapito. E acha que sabe tudo. E a Joaninha tem toda a razão. Quanto ao carrapito, entenda-se. O pai da Joaninha disse-lhe que ela era bonita e ela acreditou. Ela é submissa à autoridade e segue religiosamente o que os seus maiores lhe mandam fazer. No que, mais uma vez, a Joaninha tem razão.
A Joaninha aparece em público com um top de mangas de balão como a Branca de Neve porque julga que está rodeada de anões. E, em boa ecologista, aproveita para o adereço o tecido de um reposteiro da casa de férias da sua família algures na Areia Branca. À falta de solar presenteia-nos com flores. E um carrapito.
A Joaninha acha que sabe tudo, embora já saibamos que tem mais razão no carrapito que no que julga saber. E, por isso, sabe tudo o que há a saber sobre o cristianismo e a Europa. A Joaninha quer pontificar em púlpito e evangelizar os pobrezinhos que a rodeiam que não receberam a iluminação final algures num café em Viena. Mas como o pai lhe disse que ela era bonita e teria mesmo perfil grego (não percebeu que se referia mais à tragédia que às linhas gregas) ela acreditou e julga que sabe tudo.
A Joaninha doutrina sobre a Europa e a menor importância do cristianismo na Europa. Tenta diluir em doses homeopáticas o cristianismo entre muitas outras religiões que a Europa teve. E, depois de um esforço, que se viu titânico, ela para se lembrar, nós para a ouvir, lembra-se de duas religiões não cristãs na Europa: os huguenotes e os cátaros. A Joaninha – a malandra – lê muito jornal para conhecer da História.
Pequeno detalhe o de os huguenotes serem calvinistas e cristãos, e de os cátaros serem… cristãos. Se vindos dos bogomilos, estes dos paulicianos e por sua vez dos gnósticos, não vamos cansar a Joaninha com estas minudências.
Podia-se ter lembrado de outras religiões além do cristianismo, tanta é a sua vontade de multiplicar as religiões na Europa: os franciscanos, os agostinhos, dos dominicanos, as carmelitas (as descalças e as calçadas, mas arranjamos umas com carrapito também para agradar à Joaninha), os jesuítas... Tantas religiões que tem a Europa, tantas, tantas... E poderíamos multiplicar ainda mais a religiões da Europa: os assumpcionistas lá do quinto esquerdo, os padres brancos ao virar da esquina... Nada como dividir cada paróquia numa religião para agradar à cachopa.
A Joaninha tem uma lista na cabeça – além do carrapito – e por isso não a devemos cansar muito. Não lhe digamos que os huguenotes são cristãos, bem como os cátaros. Ela quer muitas religiões na Europa para diluir o cristianismo e faz muito bem. Temos de deixar tudo o que respeita à Joaninha diluído. Ela merece ser encharcada.
Se algo de que a Joaninha sabe muito é de cristianismo. Vemos aliás o seu carrapito oscilar entre o «homoousios» e o «homoiousios», entre os eunomianos e os pneumatómacos. A dupla natureza de Cristo ocupa a sua cabecita tanto quanto a processão do Espírito Santo. Se alguém diz filioque, ela diz «santinho», no que mostra a sua profundidade. Ela sabe tudo sobre isso. Se quiserem saber algo sobre a descida do Espírito Santo é com a Joaninha que se têm de haver. De descidas sabe ela.
Curioso o segundo argumento da Joaninha, porque assimila o cristianismo ao catolicismo quando lhe dá jeito. Por isso pode inventar religiões que não são cristãs… quando o são. Mas a Joaninha está habituada a ser o que não é: mais que uma Joaninha. Mas desta feita (a Joaninha está sempre algures feita, poderia mesmo ser considerada uma grandessíssima feita) a Joaninha esquece-se significativamente – e bem vimos que o seu esforço foi titânico - de mais de metade do território europeu: dos ortodoxos orientais. A Joaninha sabe tudo sobre a Europa, mas esquece mais de metade dela. Porque não cita os ortodoxos? Porque a Joaninha tem uma visão paroquial do cristianismo e consequentemente da Europa. As Joaninhas são assim, e não se pode fazer muito: são Joaninhas e sabem as coisas pela metade.
Mas a Joaninha tem argumentos muito bem pensados – e isto tudo, porque, como bem sabemos, a Joaninha estudou em profundidade a História da matemática e da física. Tem aliás mesmo cara de poder doutrinar sobre os fundamentos do cálculo infinitesimal. Sempre que tiver um problema infinitesimal será à Joaninha que recorro. Olho para ela e penso logo numa derivada de n-ésimo grau de uma função constante. Trabalho inútil, mas esforço meritório. É que a Joaninha é meritória. E poderosa. Pode-se dela dizer mesmo que é uma grandessíssima poderosa.
Por isso a Joaninha lembra que a Europa foi influenciada por outras religiões e outras culturas, como os árabes e os muçulmanos. A pena e as lágrimas que todos deixamos escorrer pelas nossas órbitas é ter a Joaninha esquecido de pensar sobre o assusto. Árabes e muçulmanos não são a mesma coisa e a Joaninha esquece-se de ainda muito mais. Ser influenciado por alguém pode não ser coisa boa. Uma mulher que foi violada por um homem é por este profundamente influenciada para o resto da vida e temos de colocar a hipótese desesperada – bem sei, mas junto de Joaninhas somo-lo sempre – de isso não ser coisa boa. Pelo menos para a mulher que foi violada. Mas se a Joaninha se quer colocar nessa posição e a vê como agradável aceitemos pois o veredicto da Joaninha: toda a influência é boa desde que seja grande. A Joaninha gosta delas grandes. As influências, entenda-se. Desde que sejam grandes são boas. A Joaninha melhor saberá o que espera das influências; e se se sente bem com uma grande influência dentro de si, esperemos todos que haja alguém que lhe queira dar uma grande influência tantas as vezes quantas ela quiser.
A papisa Joaninha pontifica. Faz o que pode. Pudéramos nós fazer o que quiséramos, não fora violar o Código Penal. E bem sabemos que é a única coisa que nos apraz violar ao pé da Joaninha. A Joaninha apossou-se do poder sacerdotal e explica às massas o seu evangelho. Cheia de certezas absolutas, a Joaninha não admite contradita. A Joaninha seria quase inexpugnável não fora o carrapito lembrar-nos que pode ser puxada por trás. Talvez esteja a pedi-lo, não o sabemos. Mistérios das Joaninhas.
É certo que a Joaninha está já algo entradota para usar carrapito. Mas esta parte podemos poupá-la à Joaninha. Porque de entradas também sabe tudo... Como de tudo o resto. Assim nós gostaríamos de saber de saídas quando vemos a Joaninha.
Demos pois à Joaninha um espelho e um cérebro. O primeiro desmentirá o elogio paterno, o segundo… o segundo trar-lhe-á duas grandes vantagens: a experiência nova de ter um, e de que a penetração também pode existir acima das fossas nasais.
Alexandre Brandão da Veiga
(mais)