quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A Joaninha e o carrapito

A Joaninha tem um carrapito. E acha que sabe tudo. E a Joaninha tem toda a razão. Quanto ao carrapito, entenda-se. O pai da Joaninha disse-lhe que ela era bonita e ela acreditou. Ela é submissa à autoridade e segue religiosamente o que os seus maiores lhe mandam fazer. No que, mais uma vez, a Joaninha tem razão.
 
A Joaninha aparece em público com um top de mangas de balão como a Branca de Neve porque julga que está rodeada de anões. E, em boa ecologista, aproveita para o adereço o tecido de um reposteiro da casa de férias da sua família algures na Areia Branca. À falta de solar presenteia-nos com flores. E um carrapito.
 
A Joaninha acha que sabe tudo, embora já saibamos que tem mais razão no carrapito que no que julga saber. E, por isso, sabe tudo o que há a saber sobre o cristianismo e a Europa. A Joaninha quer pontificar em púlpito e evangelizar os pobrezinhos que a rodeiam que não receberam a iluminação final algures num café em Viena. Mas como o pai lhe disse que ela era bonita e teria mesmo perfil grego (não percebeu que se referia mais à tragédia que às linhas gregas) ela acreditou e julga que sabe tudo.
 
A Joaninha doutrina sobre a Europa e a menor importância do cristianismo na Europa. Tenta diluir em doses homeopáticas o cristianismo entre muitas outras religiões que a Europa teve. E, depois de um esforço, que se viu titânico, ela para se lembrar, nós para a ouvir, lembra-se de duas religiões não cristãs na Europa: os huguenotes e os cátaros. A Joaninha – a malandra – lê muito jornal para conhecer da História.
 
Pequeno detalhe o de os huguenotes serem calvinistas e cristãos, e de os cátaros serem… cristãos. Se vindos dos bogomilos, estes dos paulicianos e por sua vez dos gnósticos, não vamos cansar a Joaninha com estas minudências.
 
Podia-se ter lembrado de outras religiões além do cristianismo, tanta é a sua vontade de multiplicar as religiões na Europa: os franciscanos, os agostinhos, dos dominicanos, as carmelitas (as descalças e as calçadas, mas arranjamos umas com carrapito também para agradar à Joaninha), os jesuítas... Tantas religiões que tem a Europa, tantas, tantas... E poderíamos multiplicar ainda mais a religiões da Europa: os assumpcionistas lá do quinto esquerdo, os padres brancos ao virar da esquina... Nada como dividir cada paróquia numa religião para agradar à cachopa.
 
A Joaninha tem uma lista na cabeça – além do carrapito – e por isso não a devemos cansar muito. Não lhe digamos que os huguenotes são cristãos, bem como os cátaros. Ela quer muitas religiões na Europa para diluir o cristianismo e faz muito bem. Temos de deixar tudo o que respeita à Joaninha diluído. Ela merece ser encharcada.
 
Se algo de que a Joaninha sabe muito é de cristianismo. Vemos aliás o seu carrapito oscilar entre o «homoousios» e o «homoiousios», entre os eunomianos e os pneumatómacos. A dupla natureza de Cristo ocupa a sua cabecita tanto quanto a processão do Espírito Santo. Se alguém diz filioque, ela diz «santinho», no que mostra a sua profundidade. Ela sabe tudo sobre isso. Se quiserem saber algo sobre a descida do Espírito Santo é com a Joaninha que se têm de haver. De descidas sabe ela.
 
 Curioso o segundo argumento da Joaninha, porque assimila o cristianismo ao catolicismo quando lhe dá jeito. Por isso pode inventar religiões que não são cristãs… quando o são. Mas a Joaninha está habituada a ser o que não é: mais que uma Joaninha. Mas desta feita (a Joaninha está sempre algures feita, poderia mesmo ser considerada uma grandessíssima feita) a Joaninha esquece-se significativamente – e bem vimos que o seu esforço foi titânico - de mais de metade do território europeu: dos ortodoxos orientais. A Joaninha sabe tudo sobre a Europa, mas esquece mais de metade dela. Porque não cita os ortodoxos? Porque a Joaninha tem uma visão paroquial do cristianismo e consequentemente da Europa. As Joaninhas são assim, e não se pode fazer muito: são Joaninhas e sabem as coisas pela metade.
 
Mas a Joaninha tem argumentos muito bem pensados – e isto tudo, porque, como bem sabemos, a Joaninha estudou em profundidade a História da matemática e da física. Tem aliás mesmo cara de poder doutrinar sobre os fundamentos do cálculo infinitesimal. Sempre que tiver um problema infinitesimal será à Joaninha que recorro. Olho para ela e penso logo numa derivada de n-ésimo grau de uma função constante. Trabalho inútil, mas esforço meritório. É que a Joaninha é meritória. E poderosa. Pode-se dela dizer mesmo que é uma grandessíssima poderosa.
 
Por isso a Joaninha lembra que a Europa foi influenciada por outras religiões e outras culturas, como os árabes e os muçulmanos. A pena e as lágrimas que todos deixamos escorrer pelas nossas órbitas é ter a Joaninha esquecido de pensar sobre o assusto. Árabes e muçulmanos não são a mesma coisa e a Joaninha esquece-se de ainda muito mais. Ser influenciado por alguém pode não ser coisa boa. Uma mulher que foi violada por um homem é por este profundamente influenciada para o resto da vida e temos de colocar a hipótese desesperada – bem sei, mas junto de Joaninhas somo-lo sempre – de isso não ser coisa boa. Pelo menos para a mulher que foi violada. Mas se a Joaninha se quer colocar nessa posição e a vê como agradável aceitemos pois o veredicto da Joaninha: toda a influência é boa desde que seja grande. A Joaninha gosta delas grandes. As influências, entenda-se. Desde que sejam grandes são boas. A Joaninha melhor saberá o que espera das influências; e se se sente bem com uma grande influência dentro de si, esperemos todos que haja alguém que lhe queira dar uma grande influência tantas as vezes quantas ela quiser.
 
A papisa Joaninha pontifica. Faz o que pode. Pudéramos nós fazer o que quiséramos, não fora violar o Código Penal. E bem sabemos que é a única coisa que nos apraz violar ao pé da Joaninha. A Joaninha apossou-se do poder sacerdotal e explica às massas o seu evangelho. Cheia de certezas absolutas, a Joaninha não admite contradita. A Joaninha seria quase inexpugnável não fora o carrapito lembrar-nos que pode ser puxada por trás. Talvez esteja a pedi-lo, não o sabemos. Mistérios das Joaninhas.
 
É certo que a Joaninha está já algo entradota para usar carrapito. Mas esta parte podemos poupá-la à Joaninha. Porque de entradas também sabe tudo... Como de tudo o resto. Assim nós gostaríamos de saber de saídas quando vemos a Joaninha.
 
Demos pois à Joaninha um espelho e um cérebro. O primeiro desmentirá o elogio paterno, o segundo… o segundo trar-lhe-á duas grandes vantagens: a experiência nova de ter um, e de que a penetração também pode existir acima das fossas nasais.
 
 
 Alexandre Brandão da Veiga

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terça-feira, 29 de outubro de 2013

BRAVO.

É importante falar nas causas escondidas das boas consequências. Quando Lisboa cresceu, em meados do século passado, foi preciso construir novas igrejas. O Patriarcado vendeu então três templos na Baixa e, com esse dinheiro, edificou S. João de Deus, S. João de Brito e a igreja de Fátima.


Este desinvestimento no coração de Lisboa, que estava a morrer com os seus velhos, foi contrariado mais tarde pelo Cardeal Ribeiro que chamou para as paróquias da Baixa padres novos, cultos e com um vigor evangélico que pudessem dar a volta à descristianização do Centro, ainda antes do incêndio.

Com Fé, bom gosto e muita persistência, estes homens reergueram a vitalidade destas 18 igrejas. Contaram com o rebanho transumante diário de quem trabalha ou visita a Baixa e o Chiado, mesmo que ali não viva. Montaram horários de missas das 8 da manhã às 10 da noite, com todas as despesas de iluminação, limpeza e guardaria que implica ter as portas abertas. Captaram voluntários que, às seis da manhã já estão a lavar os idosos do bairro e depois seguem para as suas vidas profissionais. Atraíram à Baixa grupos de empresários, como a ACEGE, e de Movimentos empenhados, como o CL, que ali fazem encontros, conferências, retiros.

Faltava recuperar o Património. Depois de 2002, Santana Lopes deixou-se cativar por este trabalho extraordinário que também combatia a agonia do Centro e alargou o Fundo do Chiado à recuperação das igrejas. Viu bem. Em vez de esperar pela recuperação integral do conjunto pombalino, começou pelos seus polos monumentais e restaurou várias igrejas entre as quais se destacam Sta Catarina, S. Nicolau, Mártires, Encarnação (fachada), Sra da Oliveira, Vitória, Menino de Deus etc. Faltava o Sacramento, entretanto intervencionado, onde se discutiam estragos das obras do Metropolitano e de um parque de estacionamento, e a Conceição Velha.

Todo isto para dizer que a dupla Pedras/Santana se voltou a encontrar, dez anos depois, para completar o que ainda não tinha sido feito. A Conceição Velha, sede da Misericórdia de Lisboa antes do Terramoto, será finalmente recuperada a par de um apoio da Santa Casa ao Povo carente da Baixa. Bravo.

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sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Ser e dever ser

Deixei a Faculdade de Direito há um quarto de século. Por isso não posso falar da que actualmente existe. Desconheço. Provavelmente estará cheia de pessoas com verdadeira cultura universitária, ou seja, universal, pessoas que se encontram habilitadas a pensar desde a matemática à filosofia, passando pela História e a física. Ou não. Não interessa.
 
Mas lembro-me de ouvir um dislate, que seria apenas anedota de estudante, se não o encontrasse ainda hoje em dia repetidamente dito. A destrinça ocorre entre ser e dever ser. Uma coisa é o mundo do ser, outra a do dever ser. Esta destrinça surge naturalmente da boca de juristas e de homens públicos como se fosse uma evidência. Mas não é.
 
São várias as razões que me levam a exigir uma outra reflexão sobre esta desgraçada destrinça.
 
Em primeiro lugar, quando vemos a História das línguas mais próximas, podemos verificar que esta coisa chamada “dever” levou muito tempo a construir. Para os Gregos, “Kathekon” é mais “o que é adequado”, “prepe”, o que é conveniente, quase numa perspectiva de etiqueta, o que os franceses traduzem pelo conceito de “bienséance”. Os romanos davam-se bem com o seu gerundivo, e construções com “debet” são sempre pouco clássicas. O seu gerundivo não destrinçava o que resultaria de uma necessidade ou de um dever. As destrinças entre os verbos “must”, “should” e quejandos nas línguas germânicas mostram que o dever, o conveniente, o necessário, o forçoso estão por vezes em fronteiras muito movediças em todas as línguas.
 
Por isso qualquer destrinça entre o ser e o dever ser deveria ser vista sempre com prudência por qualquer pessoa avisada. Quando dizemos que algo “deve” ser estamos a usar uma construção algo misteriosa. Estamos a falar de uma força que impulsiona para que seja? De um espelho do mundo que nos reflecte a verdadeira imagem dele? De um estalão que nos permite medir o erro?
 
Que algo deva ser, seja o que for, convencionemos que seja simples. Como viver supomos ser simples. Seria loucura estar sempre preocupado com o que é viver. Deixar-se-ia de viver. Mas coisa bem diversa é quem se arroga pensar sobre as coisas. Deve ser... Com que descontracção a figura é usada...
 
Em segundo lugar – e que segundo lugar – é curioso que criaturas que se dizem cristãs acabam em fracturas mais ou menos kantianas por via turista, ou simplesmente rotineiras. Ser e dever ser opõem-se? De que forma? Não terão percebido esses eminentes estudiosos um dado muito simples? O acme do ser é o acme do dever ser. Onde não há contradição entre um e outro. Mas mais importante, onde se percebe que a vida plenamente vida, o ser na sua plenitude, e o dever ser, não apenas no seu cumprimento, mas na sua enunciação se encontram totalmente.
 
De quem falo? Que surpresa para cristãos que fazem estas separações. De Cristo, é evidente. N’Ele ser e dever ser são uma e só coisa na sua plenitude. Como pode um cristão em mera rotina separar uma e outra coisa sem perceber que a oposição está a apenas no fenómeno, mas não na coisa em si?
 
 Kant construiu uma maravilhosa máquina que apenas pode suscitar a nossa admiração. Não confundo o mestre com os esbirros. O melhor mestre deixa sempre seguidores menores. Mas os limites dos seguidores já estão em germe no mestre. Obcecado com a separação, Kant sentiu a sua vida iluminada por separações, entre ser e dever ser, númeno e fenómeno e outras quejandas coisas. Mas as suas destrinças eram desafio e agora apenas enfado e repetição.
 
Deixemos Kant dormir em paz o seu sono crítico. Mas que tentemos perceber de uma vez por todas que ele não disse a última palavra, precisamente porque recusou a existência da sua possibilidade de uma palavra que fosse última. Também nisto os ortodoxos nos perceberam melhor nas nossas limitações. Desde Tolstoï a Khomakiov e a Soloviev passando por São Gregório Palamas estas distinções perdem sentido. Por isso, Tolstoï nunca percebeu Kant por mais que se esforçasse para o efeito. O problema de Soloviev e Khomakiov foi o de o terem percebido bem demais.
 
A procura da distinção clara, por mais heróica que seja, é sempre a demanda de uma faca cortante com dois gumes e que se verifica nunca ser suficientemente bem afiada. Um mundo que não distinga o ser do dever ser não é lúcido nem provido de sentimento. Um mundo que assente apenas nesta distinção é destituído de escatologia, ou seja, de destino. Mas isso deixarei para outras núpcias.
 
Alexandre Brandão da Veiga

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quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O TIGRE E A MALÁSIA

José Sócrates juntou à fama de líder com autoridade o proveito da agressividade e do planeamento. A sua entrevista a Clara Ferreira Alves não resulta apenas do ambiente informal e desligado que a jornalista pode favorecer. Mas resulta de um propósito arrabatador das esquerdas que não se revêem na docilidade de Tó Zé ou na espera de António Costa. Sócrates radicalizou. Com palavrões e jargões sobre a Direita. Com calúnia contra adversários internos. E injúria mais patriótica do que protocolar contra pretensos inimigos boches.
Capitalizou os revoltados. Aniquilou a utilidade do Bloco de Esquerda com um sopro. Prometeu curvas e mostrou que está aí para as fazer. Não foi excessivo. Nem descuidado. Foi propositadamente preciso. Porventura enganado por um Freud tardio. Acalentado num exílio da França secular. Materializado numa tese sobre a tortura, sob a forma de revolta democrática, hoje lançada ao grande público. O homem é hábil. Estudou o seu futuro rebanho. De cordeiros vestidos de lobos.

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domingo, 6 de outubro de 2013

O monge e a suástica

Num programa de televisão aparece um padre católico português na Coreia do Sul visitando um templo budista. É recebido por um monge, e a conversa vai amena. Ambos parecem mostrar uma grande aceitação mútua e mesmo uma simpatia, e a postura de ambos parece rodeada de grande respeito, talvez nem tanto pelas pessoas respectivas mas antes pelas suas concepções de vida.
 
Mas eis senão quando o padre católico não resiste e pergunta ao monge budista porque existem tantas suásticas nos seus templos, quando, bem sabemos, a suástica é o símbolo do mal. O que o padre católico não conseguia compreender era a razão pela qual uma religião tão doce quanto o budismo admitia ter um símbolo tão sulfuroso. Seria como ver uma igreja contendo no altar os cornos do demo. Refiro-me ao altar, porque é bem sabido que muitas igrejas e capelas representam o diabo sob várias formas, basta pensar na Capela Sistina. Isso seria natural.
 
O monge budista explica que se trata de um símbolo tipicamente budista e que a orientação da sua suástica é a inversa da orientação da nazi, e por isso significa vida e não morte, e mais umas pérolas quejandas. Parecem despedir-se simpaticamente, mas percebe-se que o padre católico não deixou de sentir algum desconforto.
 
O verdadeiramente desconfortável é o facto de nenhum deles ter conseguido sair do seu espaço mental e ir para um terceiro, que está na base da sua discussão. Mais uma vez: os indo-europeus. A História das religiões conheceu fenómenos de inversão múltiplos, mas mais importante ainda de reversão. Os «dev», seres divinos indo-europeus, passam a ser demoníacos entre os persas, num notório caso de reversão. Os «daimones» são espíritos de múltiplas facetas, podendo ser benfazejos, como o «daimon» de Sócrates, e passam a ser apenas demónios com o cristianismo.
 
Mas a inversão não significa sempre reversão. Nem o contrário. Saturno é ao mesmo tempo divindade deposta, mas governante da época de ouro em Itália. E a cruz invertida de São Pedro não significa recusa, mas exaltação da verdadeira cruz. Que a suástica seja levogira ou dextrogira, ao contrário do que certos ideólogos dos anos 70 queriam fazer demonstrar, não é por si só suficiente. O monge budista pecou por ingenuidade.
 
Que a suástica tenha passado a ter uma carga tão negativa no Ocidente diz algo sobre o nazismo e a sua importância, que é constantemente descurado. O fenómeno a que se assistiu com a II Guerra mundial é eminentemente religioso. É um grande momento de criação de tabus. A suástica aparece alegremente numa e noutra ponta do mundo indo-europeu. Desde a Índia à Grécia. No mundo romano não parece estar tão presente e quando o está é por influência grega. Os templos e objectos decorativos gregos e indianos estão alegremente repletos de suásticas e ninguém vê algum problema nisso.
 
Símbolo solar segundo o consenso, não é em si bom ou mau. Tem a equivocidade de todos os símbolos da natureza, como equívoca é ela mesma. Nenhuma novidade nisto.
 
Que o templo budista tenha suásticas não significa em si mesmo que seja herança budista, mas antes do mais que recebeu herança indo-europeia, dado que o budismo é uma religião de matriz indo-europeia. O monge budista pecou pelo desconhecimento das origens da sua própria religião.
 
Mas aqui quem pecou não foi apenas o monge budista. O padre católico não esteve melhor. Dominado por uma visão do mundo que começa pelo tabu do século XX esqueceu-se que, para dialogar com pessoas de outras religiões, tem de as olhar com os olhos dos outros que nelas acreditam, mas também com os olhos de quem criou essas religiões. E isto não foi capaz de fazer.
 
Mas que a II Guerra Mundial tenha definido o início de um novo conjunto de tabus é sintomático de um fenómeno típico da história das religiões. No espaço indo-europeu pelo menos no ocidental existem três padrões para a designação de Deus: os países latinos e gregos usam o original «Deus», mas os germânicos e os eslavos usam o que restou de um tabu linguístico, segundo o consenso mais geral. Entre os germânicos, «Gott» é uma invocação, na impossibilidade de nominar directamente Deus, entre os eslavos «Bog» é parente do sânscrito «Bagha», dádiva, e resulta igualmente de um tabu linguístico. A criação de tabus tem semelhanças com outros fenómenos religiosos fundantes.
 
A inversão como dissemos nunca é neutra, mas pode significar reforço da mensagem original, tanto quanto a sua contestação. A reversão não impede por outro lado que o mesmo deus revertido apareça alhures a governar em boa memória.
 
O tabu, quanto mais tabu é, mais nos faz surgir paradoxos. As suásticas não foram apagadas. Ainda as temos de ver nos monumentos gregos e indianos, sejam eles hindus sejam jinaístas, mas também nos templos budistas. Em todos os casos vistos como símbolos de harmonia, vida, por vezes mesmo paz. O choque que sentimos com isso apenas diz algo sobre nós mesmos, não sobre o que efectivamente significam os símbolos. Fala-nos dos nossos tabus, não da maldade que os símbolos intrinsecamente tenham.
 
Não deixa de ser curioso que uma época que se diz tão relativista afinal tenha tabus tão absolutos, ao ponto de se lhe tornar ilegível o resto do mundo. Esta é uma das razões pelas quais não creio que a doença do século seja o relativismo. O que impera é apenas um relativismo de fachada, que esconde valores absolutos colhidos pela estrada. O problema não é o de relativizar, mas de viver da indigência.
 
Que um monge budista e um padre católico, ambos bem intencionados, não tenham percebido a razão de ser do símbolo que um usa e de que outro é herdeiro mostra que o diálogo entre religiosos (não existe diálogo entre as religiões propriamente ditas, ao contrário do lugar comum) tem de passar pela explicação de cada religião, mas igualmente do que lhe antecedeu. Se este diálogo é frequentemente pobre não é de espantar. É que cada lado acaba por não sair da sua pele precisamente porque, cheio de boa vontade, muitas vezes está vazio de boas ideias.
 
Alexandre Brandão da Veiga

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