domingo, 6 de outubro de 2013

O monge e a suástica

Num programa de televisão aparece um padre católico português na Coreia do Sul visitando um templo budista. É recebido por um monge, e a conversa vai amena. Ambos parecem mostrar uma grande aceitação mútua e mesmo uma simpatia, e a postura de ambos parece rodeada de grande respeito, talvez nem tanto pelas pessoas respectivas mas antes pelas suas concepções de vida.
 
Mas eis senão quando o padre católico não resiste e pergunta ao monge budista porque existem tantas suásticas nos seus templos, quando, bem sabemos, a suástica é o símbolo do mal. O que o padre católico não conseguia compreender era a razão pela qual uma religião tão doce quanto o budismo admitia ter um símbolo tão sulfuroso. Seria como ver uma igreja contendo no altar os cornos do demo. Refiro-me ao altar, porque é bem sabido que muitas igrejas e capelas representam o diabo sob várias formas, basta pensar na Capela Sistina. Isso seria natural.
 
O monge budista explica que se trata de um símbolo tipicamente budista e que a orientação da sua suástica é a inversa da orientação da nazi, e por isso significa vida e não morte, e mais umas pérolas quejandas. Parecem despedir-se simpaticamente, mas percebe-se que o padre católico não deixou de sentir algum desconforto.
 
O verdadeiramente desconfortável é o facto de nenhum deles ter conseguido sair do seu espaço mental e ir para um terceiro, que está na base da sua discussão. Mais uma vez: os indo-europeus. A História das religiões conheceu fenómenos de inversão múltiplos, mas mais importante ainda de reversão. Os «dev», seres divinos indo-europeus, passam a ser demoníacos entre os persas, num notório caso de reversão. Os «daimones» são espíritos de múltiplas facetas, podendo ser benfazejos, como o «daimon» de Sócrates, e passam a ser apenas demónios com o cristianismo.
 
Mas a inversão não significa sempre reversão. Nem o contrário. Saturno é ao mesmo tempo divindade deposta, mas governante da época de ouro em Itália. E a cruz invertida de São Pedro não significa recusa, mas exaltação da verdadeira cruz. Que a suástica seja levogira ou dextrogira, ao contrário do que certos ideólogos dos anos 70 queriam fazer demonstrar, não é por si só suficiente. O monge budista pecou por ingenuidade.
 
Que a suástica tenha passado a ter uma carga tão negativa no Ocidente diz algo sobre o nazismo e a sua importância, que é constantemente descurado. O fenómeno a que se assistiu com a II Guerra mundial é eminentemente religioso. É um grande momento de criação de tabus. A suástica aparece alegremente numa e noutra ponta do mundo indo-europeu. Desde a Índia à Grécia. No mundo romano não parece estar tão presente e quando o está é por influência grega. Os templos e objectos decorativos gregos e indianos estão alegremente repletos de suásticas e ninguém vê algum problema nisso.
 
Símbolo solar segundo o consenso, não é em si bom ou mau. Tem a equivocidade de todos os símbolos da natureza, como equívoca é ela mesma. Nenhuma novidade nisto.
 
Que o templo budista tenha suásticas não significa em si mesmo que seja herança budista, mas antes do mais que recebeu herança indo-europeia, dado que o budismo é uma religião de matriz indo-europeia. O monge budista pecou pelo desconhecimento das origens da sua própria religião.
 
Mas aqui quem pecou não foi apenas o monge budista. O padre católico não esteve melhor. Dominado por uma visão do mundo que começa pelo tabu do século XX esqueceu-se que, para dialogar com pessoas de outras religiões, tem de as olhar com os olhos dos outros que nelas acreditam, mas também com os olhos de quem criou essas religiões. E isto não foi capaz de fazer.
 
Mas que a II Guerra Mundial tenha definido o início de um novo conjunto de tabus é sintomático de um fenómeno típico da história das religiões. No espaço indo-europeu pelo menos no ocidental existem três padrões para a designação de Deus: os países latinos e gregos usam o original «Deus», mas os germânicos e os eslavos usam o que restou de um tabu linguístico, segundo o consenso mais geral. Entre os germânicos, «Gott» é uma invocação, na impossibilidade de nominar directamente Deus, entre os eslavos «Bog» é parente do sânscrito «Bagha», dádiva, e resulta igualmente de um tabu linguístico. A criação de tabus tem semelhanças com outros fenómenos religiosos fundantes.
 
A inversão como dissemos nunca é neutra, mas pode significar reforço da mensagem original, tanto quanto a sua contestação. A reversão não impede por outro lado que o mesmo deus revertido apareça alhures a governar em boa memória.
 
O tabu, quanto mais tabu é, mais nos faz surgir paradoxos. As suásticas não foram apagadas. Ainda as temos de ver nos monumentos gregos e indianos, sejam eles hindus sejam jinaístas, mas também nos templos budistas. Em todos os casos vistos como símbolos de harmonia, vida, por vezes mesmo paz. O choque que sentimos com isso apenas diz algo sobre nós mesmos, não sobre o que efectivamente significam os símbolos. Fala-nos dos nossos tabus, não da maldade que os símbolos intrinsecamente tenham.
 
Não deixa de ser curioso que uma época que se diz tão relativista afinal tenha tabus tão absolutos, ao ponto de se lhe tornar ilegível o resto do mundo. Esta é uma das razões pelas quais não creio que a doença do século seja o relativismo. O que impera é apenas um relativismo de fachada, que esconde valores absolutos colhidos pela estrada. O problema não é o de relativizar, mas de viver da indigência.
 
Que um monge budista e um padre católico, ambos bem intencionados, não tenham percebido a razão de ser do símbolo que um usa e de que outro é herdeiro mostra que o diálogo entre religiosos (não existe diálogo entre as religiões propriamente ditas, ao contrário do lugar comum) tem de passar pela explicação de cada religião, mas igualmente do que lhe antecedeu. Se este diálogo é frequentemente pobre não é de espantar. É que cada lado acaba por não sair da sua pele precisamente porque, cheio de boa vontade, muitas vezes está vazio de boas ideias.
 
Alexandre Brandão da Veiga

3 comentários:

Anónimo disse...

A suástica aparece também nos monumentos megalítios e na olaria da Europa ocidental; a bandeira de Lisboa (e a sua cópia em Ceuta) também tem uma suástica; mapas portugueses do séc. XV e XVI tem bandeiras com suásticas, representandos as terras portuguesas!

É certo que a romanização portuguesa tem muito de grego, mas os mosaicos romanos em Portugal também ostentam suásticas bem visíveis. Por falar em mosaicos romanos: há mosaicos romanos em sinagogas do séc. I em Israel com suásticas -o que deve embaraçar sobremaneira os arqueólogos israelitas. No entanto não as escondem e explicam-nas como motivos vulgares na época -o que é verdade.

Alexandre Brandão da Veiga disse...

Juntou dados bem interessantes, que eu desconhecia, pelo que só lhe posso agradecer. Seria bom que alguém fizesse um levantamento deles.
A minha preocupação foi em primeiro lugar mostrar que a nossa épcoa tem proibições religiosas tão ou mais poderosas quanto as anteriores. Mas tenho pena que ninguém tenha feito um levantamento geral de símbolos como este. Recentemente vi a suástica entre símbolos budistas, xamânicos e cristãos na Ásia Central (GILLMAN, Ian, KLIMKEIT, Hans-Joachim, Christians in Asia before 1500, Routledge, London, 2006, p. 230)

Napoleão Crispim disse...

Como o texto explica o Monge Budista era desconhecedor da sua religião, mas da mesma forma o Padre também o era pois este desconhecia o uso da suástica pela igreja Católica, em ornamentação, nos mosaicos e ladrilhos de diversos templos, como também em sua vestimentas( Mítra Papal) .Vale salientar que o túmulo que a igreja afirma ser de Jesus é ornado com diversas Suásticas. Que a Suástica é um símbolo de uma origem milenar ( 3.000 a 5.000 anos antes de Cristo )
Napoleão Sobral Crispim
Email: opanleao@ig.com.br 42