Ineptos e anti-heróis
Para as pessoas que passaram pelo sistema de ensino depois do fim dos anos de 1960 a figura do anti-herói é sobejamente conhecida. Foi-nos inculcado o culto do anti-herói. O herói era um enfado, plano, demasiado liso, preferia-se a complexidade do anti-herói, que reunia o fascínio do herói com uma frescura que este não tinha.
É evidente que este culto não é neutro sob o ponto de vista ideológico nem nos seus efeitos. Criou gerações que se empenhavam a fazer mal para emularem os anti-heróis, ou que se compraziam com o facto de fazer mal as coisas porque tinham exemplos ilustres que os justificavam.
O problema desta mitologia é que esquece muitos aspectos da realidade. Vejamos quais.
Em primeiro lugar o herói. Etimologicamente é palavra que se parece ligar ao de arete grega, de virtude. O herói é o nobre, o melhor. O destino do herói raras vezes é feliz e é sempre trágico. Mesmo que acabe em apoteose como Hércules, ou em destino cósmico, como os Dióscuros Castor e Pólux, o seu destino é atravessado de imensas feridas, trabalhos ou decisões. A destruição do herói é correlato da destruição de todos os paradigmas de nobreza, da ideia do melhor. Muitas vezes o herói falha, perde. Antígona é desses. O que caracteriza o herói não é o sucesso, mas a grandeza, a ânsia pelo melhor e a plena disposição de se sacrificar pelo melhor.
Em segundo lugar os ineptos. A Historia está cheia de personagens ineptas. Esta são trazidas mais pela literatura que pela mitologia. É certo que a mitologia tem alguns exemplos. Cidipe que pede o melhor para os seus filhos e faz com que estes morram em plena flor da juventude porque é esse o melhor destino, como conta Sólon ao rei da Pérsia. Igualmente o amante de Aurora para o qual esta pede a imortalidade sem pedir a eterna juventude, pelo que este envelhece sem parar, inexoravelmente, mas também sem nunca morrer. Tchekov é o grande descritor dos ineptos. Nos seus contos Cervantes cria o paradigma do inepto com Don Quixote. Os ineptos são as figuras mais diversificadas que há, talvez as mais próximas da humanidade comum. Daí que não tenham sido centro de interesse da mitologia. Uns têm a exigência dos heróis como Don Quixote, mas estão condenados pelo riso, porque a sua inadequação é mais saliente que a sua auto-exigência. Outros são apenas pessoas comuns, medíocres, que são apenas ineptas, mesmo que não exijam muito da vida. Cómicos, trágicos, um pouco de tudo, são condenados pela disparidade entre o seu projecto de vida e o projecto que a vida para eles tem.
E só em terceiro lugar os anti-heróis. O que caracteriza o anti-herói é a adequação consigo mesmo e com o seu destino. Por isso para mim Don Quixote não é um anti-herói. O anti-herói é sempre bem sucedido, ou tende a sê-lo pelo menos. Atravessa a vida de forma mais ou menos tortuosa, mas por mais aventuras que viva, por mais dificuldades que atravesse, a vida é-lhe amena, é-lhe pelo menos favorável. A vida sorri-lhe. O maior exemplo de anti-herói na cultura popular dos últimos anos é a Gabriela de Jorge Amado. “Eu nasci assim, vou ser sempre assim” podia ser dado como lema da cultura da segunda metade do século XX: os heróis picarescos que são dados como seus antepassados são mau exemplo. Porque na maioria dos casos os heróis picarescos são mal sucedidos, são apenas ineptos. O facto de a nossa época querer arvorar ineptos em anti-heróis é aliás significativo. Tudo é válido, desde que tenha por efeito recusar os heróis.
Passemos à História. Épocas houve em que a gratidão da Europa em relação a Dom João de Áustria e ao príncipe Eugénio de Sabóia, sobretudo o último exemplo de moderação e sentimentos nobres, a quem devemos a libertação de Viena contra os turcos, ou Jan Sobieski, grande herói polaco da mesma época, ou o culto dos heróis nacionais era motivo evidente, tópico corrente da nossa cultura. O mesmo se passa com cientistas, políticos, escritores, religiosos, que foram heróis da cultura europeia, ou das suas culturas nacionais. É evidente que tudo sofre o risco de cair na sua caricatura. Os heróis do trabalho soviético, a dedicação pia a heróis nacionais cujo papel obnubila outras personagens, estes e outros exemplos explicam-nos que o culto dos heróis não é isento de riscos. Mas que banalidade. Nada do que é vivo o é.
Parecendo flutuar para além destes paradigmas está o super-homem de Nietzsche. Nada tendo a ver com o cruzamento de malabarismo, eficácia tecnológica a instituição de caridade que é o personagem da banda desenhada, o super-homem de Nietzsche é o homem que se supera, em nome da vida, e para além da vida. Mas se bem virmos a Nietzsche segue-se um mundo de equívocos. É apropriado por nazis, por marxistas mas sobretudo por uma mentalidade delicodoce dos pequenos-burgueses que se querem ver isentos de uma moral tradicional porque isso lhes facilita a vida. Mas o super-homem de Nietzsche nada tem de fácil, é trágico, é apenas mais uma das formas do herói.
Entremos no espaço público sem receio de sujarmos os pés. Não sendo por enquanto mesquita podemos ir calçados dos nossos altos coturnos e observar ao longe os escombros que esta paisagem nos mostra. Obviamente que apenas veremos versões reduzidas destes paradigmas.
O discurso do político médio está longe destes paradigmas. O discurso expresso entenda-se. Tirando os extremos à esquerda cultivando os anti-heróis de pacotilha e à direita os heróis de fancaria, o discurso político quer-se razoável, anti-mitológico, ponderado.
Mas uma coisa são as modulação das palavras, outra o que estas dizem e outra ainda as acções. Quando encontram oposição são vítimas de cabalas, como Antígonas defendendo o que é direito contra tudo e contra todos. Quando atacam vestem a armadura guerreira do conquistador ousado como Hércules a caminhar par a apoteose. Perante a guerra fazem-se de heróis.
Perante a prova por excesso, o processo judicial, fazem-se de ineptos quando o papel de heróis, vítima ou conquistador já não lhes quadra. Ignoravam – dizem – que essas seriam as consequências, que nada sabiam sobre a corrupção.
Mas estes são apenas papéis sabiamente doseados ou não. Em boa verdade o seu comportamento é do anti-herói. Uns mais eficazes, outros menos eficazes, fazem atravessar o espaço público da sua auto-satisfação. Adequam-se a um destino de permanente desadequação. Estão muito acima do que imaginaram algum dia, não foram formados para a alta esfera, mas apenas para a oblonga baixeza, Mas passeiam-se no passeio público sendo simplesmente o que são. “Sapato não, seu Nacib”, parecemos ouvi-los dizer.
O problema é que se o anti-herói sem poder pode ser comovente, como a tonta da Gabriela, quando o tem torna-se grotesco e perigoso. O anti-herói não vive, sobrevive, e escora a sua concepção da política na sobrevivência. Para ele o cruzado morto em batalha é um perdedor, um falhado e não alguém que se cobriu de glória. Para ele Aquiles é um exagerado, um pateta, Ulisses um mero turista. Se reza a Cristo é para lhe pedir ajuda, mas não para o acompanhar na sua Paixão, que considera desajustada e pouco razoável.
Ensinados para serem anti-heróis, ou seja nunca aceitando esse título, os mesmos no espaço público mostram ser bons alunos, bem endoutrinados pelo sistema educativo que tão carinhosamente os formou. Se mandam apagar dos programas escolares os paradigmas clássicos não é por terem horror a paradigmas, mas por adorarem com profunda devoção (na medida das suas forças, entenda-se) altares de onde constam Ti Maneis, Ti Jaquinas e agora Bernados e Marias do Mar. É a esse altar que incensam e nos imolam. “Adaptem-se” é a sua palavra de ordem, “sejam conformes”. Se forem de esquerda façam happenings, se de direita procissões, em ambos os casos vigílias contra injustiças que nunca existiram. Tudo desde que desprezem os heróis, e tendo na melhor das hipóteses condescendência em relação aos ineptos.
Deixaram de ser comoventes, estes espécimes que encontramos na savana pública. Os seus paradigmas são o chacal e a hiena, para os que sabem voar o abutre. Se virem esta fauna nos meios de comunicação social podem reconhecê-los facilmente. O seu riso é de hiena, voam para procurar carne caçada por outrem. O seu espaço natural são os despojos. E tudo o que encontram vivo – é superior às suas forças – transformam-no em despojos. Quanto à Europa esta chusma já a dilacera na esperança de a transformar em carcaça. Apoiantes ou opositores oficiais da Europa confundem-se neste festim. Uns por a quererem encher de parasitas, outros por lhe querem tirar a seiva. Não há reais diferenças entres eles, porque só num mundo feito despojo se sentem em casa.
Alexandre Brandão da Veiga
(mais)