sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Ser e dever ser

Deixei a Faculdade de Direito há um quarto de século. Por isso não posso falar da que actualmente existe. Desconheço. Provavelmente estará cheia de pessoas com verdadeira cultura universitária, ou seja, universal, pessoas que se encontram habilitadas a pensar desde a matemática à filosofia, passando pela História e a física. Ou não. Não interessa.
 
Mas lembro-me de ouvir um dislate, que seria apenas anedota de estudante, se não o encontrasse ainda hoje em dia repetidamente dito. A destrinça ocorre entre ser e dever ser. Uma coisa é o mundo do ser, outra a do dever ser. Esta destrinça surge naturalmente da boca de juristas e de homens públicos como se fosse uma evidência. Mas não é.
 
São várias as razões que me levam a exigir uma outra reflexão sobre esta desgraçada destrinça.
 
Em primeiro lugar, quando vemos a História das línguas mais próximas, podemos verificar que esta coisa chamada “dever” levou muito tempo a construir. Para os Gregos, “Kathekon” é mais “o que é adequado”, “prepe”, o que é conveniente, quase numa perspectiva de etiqueta, o que os franceses traduzem pelo conceito de “bienséance”. Os romanos davam-se bem com o seu gerundivo, e construções com “debet” são sempre pouco clássicas. O seu gerundivo não destrinçava o que resultaria de uma necessidade ou de um dever. As destrinças entre os verbos “must”, “should” e quejandos nas línguas germânicas mostram que o dever, o conveniente, o necessário, o forçoso estão por vezes em fronteiras muito movediças em todas as línguas.
 
Por isso qualquer destrinça entre o ser e o dever ser deveria ser vista sempre com prudência por qualquer pessoa avisada. Quando dizemos que algo “deve” ser estamos a usar uma construção algo misteriosa. Estamos a falar de uma força que impulsiona para que seja? De um espelho do mundo que nos reflecte a verdadeira imagem dele? De um estalão que nos permite medir o erro?
 
Que algo deva ser, seja o que for, convencionemos que seja simples. Como viver supomos ser simples. Seria loucura estar sempre preocupado com o que é viver. Deixar-se-ia de viver. Mas coisa bem diversa é quem se arroga pensar sobre as coisas. Deve ser... Com que descontracção a figura é usada...
 
Em segundo lugar – e que segundo lugar – é curioso que criaturas que se dizem cristãs acabam em fracturas mais ou menos kantianas por via turista, ou simplesmente rotineiras. Ser e dever ser opõem-se? De que forma? Não terão percebido esses eminentes estudiosos um dado muito simples? O acme do ser é o acme do dever ser. Onde não há contradição entre um e outro. Mas mais importante, onde se percebe que a vida plenamente vida, o ser na sua plenitude, e o dever ser, não apenas no seu cumprimento, mas na sua enunciação se encontram totalmente.
 
De quem falo? Que surpresa para cristãos que fazem estas separações. De Cristo, é evidente. N’Ele ser e dever ser são uma e só coisa na sua plenitude. Como pode um cristão em mera rotina separar uma e outra coisa sem perceber que a oposição está a apenas no fenómeno, mas não na coisa em si?
 
 Kant construiu uma maravilhosa máquina que apenas pode suscitar a nossa admiração. Não confundo o mestre com os esbirros. O melhor mestre deixa sempre seguidores menores. Mas os limites dos seguidores já estão em germe no mestre. Obcecado com a separação, Kant sentiu a sua vida iluminada por separações, entre ser e dever ser, númeno e fenómeno e outras quejandas coisas. Mas as suas destrinças eram desafio e agora apenas enfado e repetição.
 
Deixemos Kant dormir em paz o seu sono crítico. Mas que tentemos perceber de uma vez por todas que ele não disse a última palavra, precisamente porque recusou a existência da sua possibilidade de uma palavra que fosse última. Também nisto os ortodoxos nos perceberam melhor nas nossas limitações. Desde Tolstoï a Khomakiov e a Soloviev passando por São Gregório Palamas estas distinções perdem sentido. Por isso, Tolstoï nunca percebeu Kant por mais que se esforçasse para o efeito. O problema de Soloviev e Khomakiov foi o de o terem percebido bem demais.
 
A procura da distinção clara, por mais heróica que seja, é sempre a demanda de uma faca cortante com dois gumes e que se verifica nunca ser suficientemente bem afiada. Um mundo que não distinga o ser do dever ser não é lúcido nem provido de sentimento. Um mundo que assente apenas nesta distinção é destituído de escatologia, ou seja, de destino. Mas isso deixarei para outras núpcias.
 
Alexandre Brandão da Veiga

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