O paraíso platónico
Quem
confia nos deuses? Sendo incomensurável, quem pode ter a certeza do que nos
desejam e, pior ainda, das suas limitações? Que promessas nos fazem? Que promessas
podem cumprir? O homem moderno já superou isto tudo porque usa telemóvel, telecomando
e televisão, tudo com o prefixo de «longe», porque para ele tudo está longe como
o pensamento, e em consequência desencarnado.
A imaginação
humana, raramente consoladora, se lhe vemos a face insuficiente, dá-nos consolações
coxas. Ou há paraísos para homens, em que as mulheres têm como destino estar de
pernas abertas para os satisfazer, ou andamos todos aos saltinhos a pular uns
com os outros e passamos a ter o arcaboiço intelectual de cabritinho, enquanto
entoamos laudas aos direitos do homem, ou somos atirados à frigidez das
estrelas. É o que homem pode em geral, e é bem pouco, porque o muito que podem
alguns poucos não sobra para atingir os céus impunemente.
E eis
um dos muito poucos que ousa dizer coisas sobre o paraíso. Ou melhor, sobre a
sua entrada e os sinais que dele conseguiu receber. Não entrou no paraíso, nem descreveu
a eternidade porque esta levaria uma eternidade para o fazer. Esse mesmo: Platão.
Um dos raros chamados de divino, seja por hábito, seja por real admiração, seja
por uma lucidez que chama os nomes que podemos chamar a alguém que soube dar nomes
a muitas coisas.
Não se
pode exigir mais da perspectiva humana. Buda fez algo muito diferente, e era também
apenas humano. Mas a sua opção foi não descrever, ou fazer-nos ao menos acreditar
que não descrevia. Aristóteles não descreve, mas apontou com conceitos, ou seja,
com filhos do sentimento, o que seria o mundo da divindade. E outros fazem genealogias,
como Plotino, e em excesso Proclo. Veja-se onde pode ir a imaginação humana. A dos
grandes, dos muito grandes.
A entrada,
porque não é do seio paradisíaco que fala, a entrada é um grande julgamento. Faz
sentido. Também as punições e as recompensas. A mitologia grega já as tinha e muitas
religiões as tinham. É de filósofo não ter medo da religião. E dessa entrada vêm
sinais do que é o paraíso. Quais são esses sinais?
«Ardieu
não veio, nem virá mais aqui. Entre os espectáculos terríveis a que assistimos
também este nos tocou» (Rep. 615d) (PLATONE, Repubblica,
Bompiani, Milano, 2019, pp. 1056-1057). Sem qualquer possibilidade de redenção.
Definitivo. Para quem sorrir perante esta possibilidade que pense o que seria
arder num inferno destes.
No
mito de Er (Rep. 621b) (PLATONE, Repubblica, Bompiani, Milano,
2019, pp. 1074-1075) há um rumor e um terremoto. Platão não o quer dizer, mas é
o que diz: o céu não é um local absolutamente seguro. Não o queria dizer, mas
disse-o. Não conhece um céu sem possibilidade de fissuras, senão de crepúsculo.
O paraíso
platónico é contado desde a Renascença pelo menos, e pela filosofia clássica alemã
de Oitocentos, como o reino da serenidade, da compleição, da satisfação de si,
do saciamento. Tudo isto contra a inquietação cristã, essa insidiosa malandra
que quando é contada por Pessoa é excitante, mas quando se vê cristã é sinal de
espírito masoquista e indiferenciado.
Eis-me
indiferenciado. Contra todas as possibilidades humanas, contra a imaginação
humana, contra a insipidez humana que se julga aventurosa apenas por achar que
supera não se sabe bem o quê, contra tudo isso, percebo que Platão mostra a sua
grandeza que o leva até onde foi, e a sua grandeza meramente humana, quando
mostra que não consegue conceber um paraíso que não seja defectivo, que não perca
pessoas, que não tenha fissuras.
Foi o
mais longe que um ser humano poderia ir com as suas forças. Buda calou, pelo menos
em algumas das suas versões, Platão disse algo. E disse por isso algo mais que Buda.
Falou das brechas do maior dos bens que conseguia imaginar, porque esse maior
bem era imaginado por um ser humano, ou seja, com brechas. Foi até o mais longe
que podia e viu um abismo, ao menos suspeita dele. E não o calou. Que os seus comentadores
não o refiram é problema dos comentadores, não seu.
Porque
quando vai ao fim de si mesmo o ser humano apenas encontra um espelho, e o retrato
de si mesmo. Para ver algo mais tem de aceitar um encontro com alguém que partilha
a sua natureza e a transcende ao mesmo tempo. Os paraísos que o ser humano
consegue imaginar acabam sempre em pesadelos, ou pior ainda, anunciam-nos ao
longe. Onde está Ardieu, o que farão os terremotos? Que anunciam os rumores? Os
que esperam do paraíso uma consolação de remendo e não a verdade acabam na ilusão
e no tremor. E esta ilusão só a revela Quem é em si mesmo a Verdade, mas essa será
dita noutras ocasiões.
Alexandre
Brandão da Veiga
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