O grande sonho crítico
É bem conhecido o lugar-comum de Kant dizendo que se libertou do seu sono dogmático lendo a obra de Hume. Vejo isto repetido, e pode ser mera ladainha, ou importante premissa para um raciocínio mais escorado. Cita-se a frase, e esquece-se o seu efeito encantatório.
É
que uma coisa é dizer que Kant se sentia num sono dogmático, e como ele passava
as noites melhor ele saberia, outra coisa são as ilações que o leitor obediente
desta observação retira. A primeira: os sonos apenas nascem da dogmática. A
segunda: a dogmática conduz forçosamente a sonos.
Comecemos
pela segunda, que é mais fácil de rebater. Toda a revolução científica foi
feita por dogmáticos, no sentido em que foi feita por cristãos convictos e que
aderiam muito conscientemente a dogmas. Galileu, Kepler e Pascal aos dogmas
católicos e mesmo o anti-trinitário Newton aos dogmas de um Deus criador etc.
Dogmáticos, porque o eram também na ontologia. Não eram medíocres como os pós-modernos
negadores de toda ontologia.
A
dogmática conduz a sonos? Cria o torpor? Onde? Onde Bach ou Pergolesi perderam
a lucidez é algo que terão de me explicar, que se me escapa.
Vamos
então à segunda tese, implícita, como tudo o que é nebuloso: os sonos apenas
nascem da dogmática. A crítica nunca gera sonos.
Primeira
fraqueza desta tese: a de acreditar que conseguimos ser plenamente críticos e
auto-críticos sem pressupostos implícitos. Puro irrealismo e infantilidade. Ignorância
da axiomática. Gente sem literacia matemática.
Segunda
fraqueza da tese: nem tudo o que se chama a si mesmo de crítico o é. Ser
crítico de tudo significa apenas não ter critério e ser destruidor. E mais uma
vez esta tese mostra o seu irrealismo. É impossível fazer crítica consistente
sem premissas sólidas, indemonstradas, sem as quais não há demonstração.
O
que acha que a crítica nunca causa o sono vive ele num sono. A prova: vejam-se
quantos académicos dizem que não há verdade, e em tribunal dizem que foram
acusados por mentirosos, quantos dizem que a ciência europeia é ficção mas vão
à urgência médica e não ao marabu.
Tartufos?
Mentirosos? Adormecidos? Que importa? No mundo de torpor que celebram, entre a
vigília e o sono não há fronteiras, como não há fronteiras, e os povos e o que
são e os outros nada é. E por isso já vemos os seus argumentos dissolverem-se
como uma pasta informe. Dormem? Como o saber? Não muda a sua justiça acordados
ou em pesadelo. Putrefacto o seu sentido crítico, gangrenam até na sua respiração.
E não digo paz à sua alma, porque afirmam não a ter. Já o tínhamos visto.
Alexandre
Brandão da Veiga
1 comentários:
“Entre a vigília e o sono não há fronteiras” - aqui está um ponto que me parece basilar e muito se descura.
Invariavelmente em toda produção de pensamento tende-se ou procurar-se um definitivo, nada mais errado. Pela física é fácil observar que não existe, a transformação é permanente (nada se perde tudo se transforma). Pelo espírito será também relativamente fácil descobrir a construção permanente, a infinitude que a emoção transporta.
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