Pátroclo e Aquiles II
Mas há Briseide. Aquiles
afinal tem apego por uma mulher, que é suficientemente importante na sua vida
para largar a sua arte principal, a luta contra os troianos. Suficientemente importante
para cortar a sua relação com o groso das tropas dos aqueus.
Sim, Briseide é
importante na história. Mas a que título? Vemos a sua importância por três
vias.
Em primeiro lugar, do que
se queixa Aquiles é ter sido retirado o seu despojo de guerra, não o seu amor.
A ofensa que lhe fazem é militar, uma ofensa e militar, não um desgosto de
amor.
Em segundo lugar, Agamémnon
tem de jurar, quando devolve (lietralmenet0 Briseide a Aquiles que não a levou
para o leito. Também Agamémnon, que gosta d mulheres, não sua sexualmente do despojo
de guerra forçosamente. Repare-se que Agamémnon tem de o jurar perante os deuses
e perante o povo dos aqueus, a forma mais solene de juramento. Não poderia
incorrer qualquer ira divina. A situação era ariscada demais para o fazer. Agamémnon
diz portanto a verdade. Não foi para a cama com Briseida. Assim sendo é natural
que Aquiles também não a tenha usado sensualmente. É menos certo mas não deixa de
ser provável.
O terceiro elemento é Briseide
chorar sobre os despojos de Pátroclo. Tem por Pátroclo uma ternura, uma exposição
da sua doçura que não seria muito verosímil se partilhassem ambos o leito com Aquiles.
É certo, tudo é possível, e à falta de juramentos solenes com risco da derrota
total e ira dos deuses e vergonha absoluta como o de Agamémnon apenas podemos
colocar hipóteses. Ménage à trois, a
muitos (há outras escravas junto de Aquiles), amor entre Briseida e Aquiles e Pátroclo
apenas amigo…
As hipóteses são muitas
mas ficam reduzidas. Aquiles não lutou de morte pelo retorno de Briseida,
queixa-se do dom de guerra, do despojo, não teve desgosto, mas despeito, ira, a
boa da «menis». A «menis» é uma ira sagrada. Mas já com a morte de Pátroclo a
sua ira é bem humano é o «cholkos». Nunca chorou por Briseida, apenas amua. Chora,
e chora precisamente por Pátroclo.
Pátroclo não era um
amante ritualizado, já o vimos. Não era o «eromenes» de Aquiles. Não o podia ser.
Não era mais novo. Mas era sobretudo um guerreiro já preparado e que guerreio.
Quando usa as armas de Aquiles, que guerreiro… Mata e mata e mata. Pátroclo não
é morto por ser um presunçoso que decide pôr-se nos calcanhares de Aquiles.
Morreu porque até os grandes guerreiros morrem. Heitor, o próprio Aquiles,
embora isso nãos seja contado na Ilíada, mas seja nela muitas vezes anunciado. Pátroclo
morreu porque chamou a si as atenções, a sua exibição foi a sua forma de sacrifício.
Morreu porque se tornou fascinante, presa de todos os troianos, porque os deuses
o decidiram, porque assim acontece com os melhores guerreiros.
Pátroclo não é um amante
ritualizado, portanto. O primeiro casal da cultura europeia, o primeiro cujo
amor e dificuldades, eros comuns e tragédia aperce em toda a sua glória é o que
forma Pátroclo e Aquiles. São eles o paralelo de Ulisses e Penélope na
odisseia.
A questão não passa por ideologias
simplistas que orgulhos, de orientações, de opções sexuais. Não passa pelo discurso
igualmente vácuo sobre a natureza, o valor das instituições, ou dos sacramentos.
Os problemas existem, porque existe uma coisa chamada realidade. Invocar a
complexidade é vácuo, enunciá-la necessário. Inútil, aceito, inútil muitas
vezes numa época que se delícia com os brocardos e a chamada rápida de atenção,
que não gosta do fundamento.
Mas é sobre esta obra
poderosa, muitas vezes crua, outras delicada, de guerreiros que fazem sacrifícios
humanos – Dólon no Canto X é morto de forma indigna porque é feio e deseja
acima do seu nível – de guerreiros mortos selvaticamente despojados das suas armas,
como animais a quem se retiram os cornos, ou a pele, de Aquiles levando Heitor arrastado
por correntes enfiadas nos seus tendões. Os calcanhares mais uma vez. É neste
mundo com uma relação directa coma violência, com o mundo que nos invade de forma
dura, que assenta toda a cultura europeia. Não apenas sobre ele. Também nós
somos mais complexos. Mas também e muito fundamentalmente sobre ele.
E desse mundo faz parte o
primeiro casal que partilha destinos, a tenda o barco, a glória, a vida. Pátroclo
e Aquiles. Aquiles o homem da dor, seguido de Ulisses, o odiado, nome dado pelo
seu avô materno. De onde vem o amor? Procurar as origens é sempre contemplar o
abismo.
Alexandre Brandão da Veiga.
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