sábado, 31 de maio de 2008

Maio 68 (1)

Para ser sincero o Maio de 68 não está no meu imaginário. Tinha 5 anos e ouvia a música dos anos 60 nas festas dos mais velhos: Beatles, Neil Young, Rolling Stones, Melanie, Cat Stevens. Pressentia a clivagem das gerações mas a política ainda não existia para mim.
O Maio de 68 também não terá sido perceptível em toda a sua extensão nesses tempos em que ocorreu. Os idealistas de então não tinham ainda completado o ciclo que viria a revelar as suas plenas intenções e os seu plenos interesses. Ser de esquerda, mesmo com reservas aos regimes comunistas plenamente implantados na altura, era ser marxista, leninista, maoista, trotskista, etc... O que verdadeiramente importava naquela sinestesia ambiental não era tanto a experiência desses ismos mas a teoria que lhes estava na raiz. A realidade teórica poderia, então, ainda, superar o falhanço evidente.

A via da legitimação dessas ficções era de algum modo a destruição pela força da vontade popular das estruturas organizadas do poder, um poder sempre negativo que o anarquismo conveniente à data estava disposto, mesmo sem modelo organizacional e por isso mesmo, deitar por terra. À distância há quem diga que naqueles dias, semanas de Maio e dos meses seguintes, pelo menos até às eleições, se viveu numa autêntica sociedade sem classes em que todos, sem hierarquia, faziam um pouco de tudo e comungavam as alegrias e o pão sem o vil metal de permeio. Todos? Não todos os que participavam e queriam provar que era possível. Pelo menos até se fartarem. Mais tarde, feito o balanço, não terá sido bem assim, e os que pilotavam a refrega, sempre com estatuto especial, acabaram engagés nas estruturas de poder que não se abalaram. A caravana passa..., em terra de cegos..., muito sabem os provérbios...
Dois grupos teriam interesse directo nas lutas: os estudantes e os operários. Os estudantes, burgueses, filhos de uma classe média em ascendência em tempos de abundância, vislumbravam uma saída para uma sociedade em que não queriam participar, diga-se, produzir. Por outro lado, os operários, sentindo uma oportunidade para reivindicar direitos, cavalgaram a onda com um capital moral que os estudantes não tinham no plano político-laboral: eles, os estudantes, iriam ser doutores e engenheiros, teriam as suas carreiras mais tarde ou mais cedo garantidas e eles, os operários, teriam de continuar a reivindicar os seus direitos e os seus benefícios numa luta contra o patronato, contra o Estado e contra uma sociedade que os fazia viver do seu trabalho (proletários). Ou seja, a luta dos estudantes poderia ser uma festa temporária e sem consequências, a luta dos operários (proletários, porque vivem apenas do seu trabalho) teriam de manter, permanentemente, a luta.
Também os partidos e os grupos de esquerda politicamente organizados tentaram tirar partido, senão mesmo instigar e promover, o clima de desordem pública e de fervor revolucionário, para, aproveitando as simpatias ideológicas, irem ajudando a ampliar a onda de revolta, municiá-la de instrumentos de acção que dominavam, e poder vir a controlá-la segundo os seus interesses. Essencialmente, tratava-se de lançar as grandes questões da esquerda na discussão como forma de pressão na opinião pública, tratava-se de conduzir o condicionamento mental de toda uma geração de estudantes e com eles de jovens, e de instruir e ampliar no mundo operário o princípio reivindicativo e de subversão do poder e da ordem num anarquismo perpétuo e sempre possível se o princípio da desconfiança ficasse bem enraizado. No fundo interessava que o ideário da esquerda se tornasse transversal à esquerda e à direita, ou à esquerda e na organização tradicional da sociedade, ainda que as “políticas” continuassem as mesmas, mais liberais, porque apesar de tudo é necessário criar riqueza antes de pretender nacionalizá-la e começar a distribui-la sem mérito nem justiça.
Ao fim de algumas semanas tudo se esvaiu. Ch. de Gaulle venceu retumbantemente as eleições que a democracia popular não queria realizar e aquele mito que o povo estava com os revolucionários desfez-se. A revolução enrolou as suas bandeiras e foi para casa. Afinal tinha sido uma festa, talvez até, para muitos um sonho, mas que acabou quando desceram à realidade, regressaram às aulas, finalizaram os seus cursos, integraram-se no mundo laboral, e muitos dos seus líderes radicais, integraram-se nas estruturas políticas, governamentais e públicas onde continuaram as suas actividades políticas bem menos exaltados. Com o tempo percebeu-se que, no fundo eram burgueses que queriam apenas realizar o ideal de todas as burguesias: ter uma vidinha organizada e, de preferência, com sucesso, viver de amizades e de grupos que lhes dêem uma identidade, e poderem alardear uma superioridade moral pelos cargos que ocupam nas Empresas, no Estado, em Institutos, nos Media e em Partidos, ou se não for o caso, alardearem a superioridade moral (e estética) de terem lá estado, de terem conhecido os que triunfaram, de terem tido o seu momento de participação na história e poderem contá-lo na primeira pessoa aos netos.
Os operários, mais realistas, acataram a ordem e mantiveram com os seus aliados de sempre, as lutas que as esquerdas radicais e as esquerdas moderadas quando na oposição, sempre mantêm, para justificação da sua existência, sejam os partidos sejam os sindicatos. Participaram, desconfiados, da festa, não sei se lhes aproveitou alguma coisa objectivamente.
E o mundo? O que ficou desse Maio? Se a alteração da ordem económica não era no fundo uma possibilidade realista, que outra ordem veio a alterar-se no rescaldo do Maio de 68?

0 comentários: