sexta-feira, 16 de maio de 2008

A liberdade segundo Luís de Molina

Agradeço ao Martim Avillez Figueiredo a informação sobre Philippe Van Parijs, autor que desconhecia e que, à primeira vista, me parece ter a enorme virtude de querer repensar o marxismo à luz das mudanças económicas e sociais ocorridas durante todo o século XX. O Ocidente, de facto, enquanto não fizer as pazes com o marxismo não poderá afirmar-se verdadeiramente no mundo. Nesse processo, porém, teremos de acertar as contas com o materialismo, pecado original da modernidade pós-cartesiana, de um modo geral, e do marxismo, em particular, que continua a empurrar o homem para baixo daquilo que ele pode e deve ser.
É nesse sentido que já há alguns anos tenho chamado a atenção para os pensadores ibéricos da segunda escolástica, cuja originalidade surge definitivamente expressa no pensamento de Francisco Suárez – autor extraordinário, cuja ineficaz influência no pensamento ocidental advém sobretudo do facto de estar enterrado em Portugal. O referido curso da Universidade Católica dedica-lhe, aliás, penso que uma aula, ao que sei a cargo da Dra. Ivone Moreira.
Ora, no que diz respeito à liberdade (sobre a qual falarei neste post, deixando para o próximo a questão da sua relação com a igualdade), Suárez continua a meditação de Luís de Molina, tal como vem desenvolvida na sua obra «Concórdia do livre arbítrio com os dons da graça, divina presciência, providência, predestinação e reprovação, a partir de alguns artigos da Suma Teológica de São Tomás», publicada em Lisboa, em 1588. Resumirei aqui apenas a disputa II, que justamente pergunta: «O que deve entender-se pelo nome de livre arbítrio?» (traduzo a partir da edição original de Lisboa, que é a que tenho à mão, embora tenha sido recentemente editada uma tradução castelhana, acessível em http://www.filosofia.org/).
Liberdade – diz Molina – pode entender-se de três modos: um, enquanto se opõe à servidão do pecado, isto é, enquanto beatitude – trata-se, neste sentido, de liberdade religiosa; outro, enquanto se opõe à coacção, isto é, enquanto impulso natural, ou espontaneidade – trata-se, neste sentido, de liberdade física; outro, enquanto se opõe à necessidade, isto é, enquanto acção propriamente humana – trata-se, neste sentido, de liberdade moral.
Ora, a liberdade, como se verifica pela experiência, é um acto próprio da vontade, o qual tem de ser antecedido, porém, por um juízo, ou arbítrio, da razão. De facto, para que um acto seja moral, tem que poder imputar-se-lhe ou o mérito ou a culpa, o que só poderá acontecer se aquele que age tiver previamente discernido o bem e o mal moral, relativamente a esse acto, por meio da razão. Depois dessa apreensão racional relativa à bondade ou à maldade do acto, porém, a vontade tem que permanecer livre para agir e para não agir, ou para agir de tal maneira que possa fazer tanto uma coisa como o seu contrário, sem o que esse acto não poderá verdadeiramente dizer-se livre.
É no terceiro sentido, portanto (isto é, enquanto liberdade moral), que a liberdade propriamente se dá, segundo o qual se diz que agente livre é aquele que, estabelecidos todos os requisitos para agir, pode agir e não agir, ou então agir de tal maneira que possa fazer uma coisa tanto quanto o seu contrário. Eis a definição que Molina dá de liberdade, a qual tantas controvérsias haveria de gerar na história.
A liberdade, deste modo, embora dando-se formalmente na vontade, não se identifica absolutamente com ela, já que a vontade não tem este poder de escolha perante todos os seus actos. O acto livre, portanto, é o acto da vontade que, precedido pelo juízo da razão, e com os limites próprios do poder de Deus, por um lado, e da inclinação natural, por outro, pode agir e não agir, e agir de uma determinada maneira ou daquela que lhe é contrária. Ora, este é o acto moral, que é aquele que, segundo Molina, tem plena e perfeitamente a natureza da liberdade (Cfr. Concordia…, disp. II, num. 1-5).
Era isto o que, fundamentalmente, aqui queria relembrar: Falar de liberdade é falar do homem, o qual é matéria e forma, corpo e alma. Reduzir o homem à sua dimensão corporal implica reduzir a liberdade a um mero impulso, ou espontaneidade natural, tal como reduzir o homem à sua dimensão espiritual implica reduzir a liberdade a uma simples obediência a Deus. Num e noutro caso estamos, ainda que diferentemente, no domínio da necessidade. A liberdade física, ou ausência de coacção (segundo a qual a pedra, ao cair, se diz livre), e a liberdade religiosa, ou ausência de pecado (a que imediatamente se adere pela presença de Deus), dizem-se liberdades, portanto, por uma certa analogia com a liberdade moral, que é aquela em que a liberdade própria ou essencialmente se dá.
É esta a pobreza das doutrinas marxistas, que, compreendendo todas as coisas no seio de um desenvolvimento histórico feito a partir de um princípio material, reduzem o homem à sua praxis económica, primeiro, e económico-política, depois, a partir do que reduzem a liberdade à mera ausência de coacção exteriormente imposta aos desejos de cada um (vide a definição de liberdade de Van Parjis vertida no post do Martim Avillez Figueiredo).
Ora, as propostas da chamada terceira via – em que Van Parjis necessariamente se inscreve – não são mais do que o fruto maduro da associação ideológica subterraneamente estabelecida entre o liberalismo e o marxismo, cujo resultado não pode ir além da definição política de limites económicos: rendimentos mínimos garantidos para toda a gente (que em Portugal foram introduzidos por António Guterres), ou rendimentos máximos estabelecidos para alguns (agora em discussão na União Europeia a propósito dos ordenados dos gestores).
Seja como for, neste estado de coisas, a Sofia Galvão tem razão: liberdade e igualdade não são compatíveis, pois que, no mundo das coisas materiais, ou se limita a liberdade em nome da igualdade, ou se limita a igualdade em nome da liberdade. Pretender o contrário é esquecer a questão imposta pela crise ambiental (a única que talvez venha a pôr definitivamente em causa o capitalismo): os recursos não são ilimitados!
Para que liberdade e igualdade possam ser conciliáveis – melhor, possam pôr-se de acordo (assim lembrando, uma vez mais, a obra de Molina: Concordia liberi arbitrii cum gratiae donis…), teremos de compreender o homem e o mundo também a partir da dimensão interior do ser, na qual, apenas, poderemos (re)descobrir a comunidade. Mas isso ficará para o próximo post.

2 comentários:

Manuel Rocha disse...

Soljenitzin dizia da liberdade "ser a capacidade de nos auto-limitarmos em nome de uma ética que reconheça que o interesse colectivo nem sempre será compatível com o interesse do individuo".

Não lhe parece que seria um bom tópico para dar sequência a este seu post?

;)

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Meu caro Manuel, vai-me obrigar a estudar. Mas, em princípio, pode adequar-se ao que queria dizer a seguir sobre a relação entre a liberdade e a igualdade. Vamos ver no que dá.
Um abraço