Da Visão: Ana Gomes vs. Metternich
Se há coisa de que Portugal se pode orgulhar na sua história diplomática recente é a de não ter embarcado numa estratégia de pragmatismo cínico na questão da autodeterminação do povo timorense. E é bom lembrar que, à época, eram muitas as cabeças pensantes que davam o diferendo por perdido e que, a bem dos superiores interesses do país, defendiam que a diplomacia portuguesa devia deixar cair uma causa que era manifestamente incómoda para uma grande potência regional e para muitos dos nossos (e seus) aliados tradicionais. Era a isso que aconselhavam todos os manuais da «realpolitik» e era esse o único curso de acção considerado minimamente «realista». Do outro lado da barreira, convém não esquecer, resistiram como puderam meia dúzia de então apelidados «idealistas ingénuos». Entre estes sempre esteve a diplomata Ana Gomes. Que está agora na linha da frente da contestação às opções que tomaram Presidente e Governo portugueses no quadro da visita do Dalai Lama. No seu estilo muito pouco diplomático acusa-os de se vergarem aos «interesses chineses» e relembra que «um Estado que não se dá ao respeito não pode ser respeitado».
Como se provou na questão timorense, e como se provará no episódio do Dalai Lama, é Ana Gomes quem vê mais longe. E não se trata aqui de saber quem é mais nobre de sentimentos. Mas tão só de perceber quem entende melhor o Mundo em que vive. Senão vejamos: de um lado desta contenda está uma visão cínica e «realista» da diplomacia, forjada no século XIX, que sobrevaloriza o papel das chancelarias e ignora por completo o papel da opinião pública global. Do outro está uma visão de um mundo globalizado e mediatizado em que não é possível ignorar o poder muito real de uma opinião pública planetária cada vez mais actuante e interventiva. Repare-se portanto que estamos aqui longe da dicotomia clássica idealistas/realistas. Ao invés, estamos sempre a falar de «power politics». Mas enquanto os burocratas do MNE continuam a imaginar o Mundo à imagem do que conheceu Metternich, Ana Gomes é capaz de entender o século XXI em toda a sua complexidade e com toda a sua multiplicidade de actores.
Na questão Timorense Portugal teve a clarividência de perceber que um pequeno país armado de grandes princípios pode, num mundo mediatizado e globalizado, mobilizar a opinião pública internacional e, por essa via, ganhar um estatuto moral capaz de rivalizar com o poder de grandes potências militares e económicas como era a Indonésia. E o que é um facto é que o país saiu do conflito com um prestígio (e portanto um poder) até então desconhecido.
Na questão da visita do Dalai Lama, Portugal portou-se como um vulgar protectorado chinês. Deixou-se pressionar ou, mais ridículo, imaginou pressões que ninguém se deu ao trabalho de fazer e sai da história desprestigiado e enfraquecido aos olhos do Mundo, sem que ninguém lhe agradeça o sermão.
Mas isto, já se vê, é algo que os nossos diplomatas novecentistas jamais conseguirão perceber.
1 comentários:
Pedro, estamos mesmo perante a diferença entre os séculos XIX e XX e o século XXI. Ou seja: a política real passa tembém pelo «abraço» da Opinião Pública, quando mediatizada.
Quanto à justiça das causas na questão de Timor-Leste, aquela que não se rege apenas pela vantagem material, lembro que ela passou em plena Guerra Fria pela solidão, firme e solidária, do Duque de Brangança. E, na transição política da Indonésia, pela coragem e diplomacia de António Guterres ao insistir, implacavelmente, no apoio internacional ao Referendo. Xanana repetiu a ascese de Mandela no Oriente sendo peça fundamental para a atenção mundial e para a liderança interna. E lembro ainda, antes e depois do Referendo, o papel da Igreja que, internamente, levou esperança às resistências domésticas e cá fora atingiu o Nobel e a persistência da diplomacia pontifícia, que muito pode. Também no terreno, no «day after», foi a Igreja quem cerziu interesses e ódios, como pôde. E houve o empurrão de obras concretas como a de João Soares que recuperou o edifício de traça colonial do antigo Liceu de Dili para ali instalar a Universidade, semente do futuro independente e esclarecido. O seu sucessor faria a reconstrução integral do antigo Palácio do Governador (também de traça portuguesa), hoje Residência do Presidente. Mas neste detalhe imagino que me atribui uma «semente dependente, por isso pouco esclarecida»... :)
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