terça-feira, 7 de abril de 2015

Não quero ir para o Panteão

Pessoalmente prefiro ser incinerado e as minhas cinzas espalhadas algures num jardim ou num campo em Itália. Mas são gostos.

As formas de lidar com os mortos dariam por si só muito que dizer. Vivemos uma bifurcação semelhante à que se assistiu em Roma entre os séculos I e II d.C., em que a cremação e a inumação viviam em concorrência.

Um tal estado de hesitação funerária anuncia sempre uma profunda, muito profunda, crise espiritual cujos resultados se vão manifestando. Como configurar as modalidades que os problemas e as soluções terão no futuro, deixo para outra reflexão.

Mas neste mundo hesitante há algo que começa a ganhar força em Portugal, um fenómeno estranho tendo em conta o seu passado. O panteão era coisa de que ninguém se lembrava. O Estado criou-o, o Estado atirou para lá os mortos que bem entendeu, e não se falava mais nisso.

Neste momento - sintoma espiritual não tenhamos ilusões – cada vez que morre mais um, lá aparecem pessoas a dizer: «Atiremo-lo ao panteão», como séculos antes se diria: «Atirem-no aos leões».

A ideia de panteão tal como a conhecemos é francesa. Antes era a abadia de Saint-Denis, local de descanso dos Capetos. Com a Revolução Francesa era preciso mudar tudo. Dessacraliza-se uma igreja e faz-se algo de novo. Imitando os antigos. A igreja de Sainte-Geneviève é dessacralizada e passa a ser um panteão. O nome é romano. A ideia de mausoléu colectivo continuação da monarquia dos Capetos.

São assim as revoluções. Originais ao ponto de ir buscar às origens o que lhes falta em imaginação.

Não havendo reis para lá colocar, colocam-se os grandes homens da pátria. Só homens, porque se mantém a tradição sálica. Revolucionários, mas decentes. Nada de mulheres de direito próprio. Até chegar uma polaca, Marie Curie. Depois de morta.

No caso português, o Panteão é ainda pior. É uma imitação do modelo francês. O original já é pobre, a cópia ridícula.

Não sei se o leitor algum dia teve o cuidado de ir ao panteão. Só verá um vazio, um triste vazio. Retirou-se Deus do espaço, colocam-se corpos em substituição. A ironia é que originalmente panteão é o local onde se adoram todos os deuses (não se vá esquecer algum desconhecido) mas passa a ser o local vazio de deuses… e de homens.

Apenas calhaus e ossadas. Nada mais.

Compreende-se. O Estado não governa mortos, não tem poder sobre eles. O pressuposto de um Estado laico é precisamente o de estender o seu reino apenas aos vivos. Os mortos não têm lugar nele. São as suas premissas, e não as pode ultrapassar. Por isso, quando homenageia, nada tem para homenagear. Não conhece o conceito de mortos, apenas pode honrar cadáveres.

O que existe no panteão é pois apenas isso: pedras e cadáveres. Nada mais. Nem mais um sinal deles. Nem mortos, nem almas. Apenas a pedra fria e corpos a apodrecer.

Com boa intenção as pessoas querem atirar cadáveres para esse panteão vazio. As intenções são boas mas com elas se calça o inferno. Uma fúria atiradiça apoderou-se de Portugal. Hoje em dia a população quer atirar para o panteão as ossadas dos mais amados.

Quem visitar o panteão nacional – refiro-me ao português, mas poderia dizer algo semelhante do francês em grau diverso - pode verificar que está muito mal frequentado. Criaturas estranhas entre si, que em vida provavelmente se odiaram, juntam-se na putrefacção a outros estranhos. Os Capetos nunca foram exemplo de unidade familiar, bem o sabemos. Ao menos eram da mesma família, representavam uma mesma ideia de base. Em Saint-Denis sabia-se com o que contar.

A marquesa de Pompadour era plebeia, não é novidade para ninguém. O seu nome real era Poisson, em bom português, era a senhora Peixe. Por isso, quando morreu, Luís XV conseguiu colocá-la no mausoléu dos nobilíssimos Montmorency, mas com um custo. Na época dizia-se que «lá foram as espinhas da Peixe juntar-se aos ossos dos Montmorency».

A intenção é boa, mas tendo em conta a péssima frequência do local, o seu vazio, sempre que se afirma que se quer mandar alguém para o panteão, temo pela minha vida, ou melhor pela minha morte, que um dia haverá um maduro qualquer que me queira atirar para tal local de desgraça. O panteão não é um local de celebração, mas um espinheiro, um depósito inerte. Para onde se atiram restos em putrefacção de pessoas que nada tem a ver umas com as outras, que nunca se amaram entre si e são obrigadas a um perene convívio mortal com estranhos, que nunca são venerados em tal monte de calhaus.

Estando na moda fazer o testamento vital, aconselho o leitor que não queira ter a mesma triste sorte que junte, em anexo à disposição dos seus órgãos e dos seus restos mortais, a expressa menção do que pretende quanto à sua panteanização – até a palavra é bárbara. No que me respeita, declaro-o desde já: eu não quero ir para o panteão. Antes na boa companhia de flores que crescem, que rodeado de cadáveres, uns com espinhas, e outros que em boa verdade é duvidoso que possamos dizer sequer que algum dia as tiveram.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

 

 

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